quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

[0336] Haverá mesmo 9 milhões de bicicletas em Pequim?

Tratar-se-á tal número, deste instrumento quotidiano, naquele preciso sítio, de:

um facto indesmentível?
um conhecimento estatístico (possivelmente já não actualizado)?
uma aproximação razoável que podemos usar numa conversa?
um palpite de viajante que se interroga?
ou uma mera crença de quem nunca esteve na China?

O que é a realidade, mesma se apenas nos referirmos à «realidade objectiva»?
E como podemos descrever a «realidade subjectiva» e a sua interacção com a «realidade objectiva»??

A resposta de Katir Melua, em Nine Million Bicycles (álbum «Piece by Piece», lançado em 2005) foi esta:

There are nine million bicycles in Beijing
That's a fact
It's a thing we can't deny
Like the fact that I will love you till I die

We are twelve billion light years from the edge
That's a guess
No one can ever say it's true
But I know that I will always be with you
I'm warmed by the fire of your love everyday
So don't call me a liar
Just believe everything that I say

There are six billion people in the world
More or less
And it makes me feel quite small
But you're the one I love the most of all

We're high on the wire
With the world in our sight
And I'll never tire
Of the love that you give me every night

There are nine million bicycles in Beijing
That's a fact
It's a thing we can't deny
Like the fact that I will love you till I die

And there are nine million bicycles in Beijing
And you know that I will love you till I die!

Para quem quiser ouvir estas palavras cantadas (depois de aturar um pouco de publicidade): 
https://www.youtube.com/watch?v=rrPUJsZQSkw


quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

[0335] Platibandas, Etnologia e Geometria

As platibandas são uma forma de encimar alguns edifícios, geralmente baixos.


Não sendo exclusivas do Algarve, é aí que se tornaram, de 1870 a 1970, um forte meio de expressão etnológica, em particular no barrocal (a faixa que separa o litoral algarvio da serra).
Situadas no topo frontal de cada edifício, afirmam-lhe a individualidade, em detrimento da solidariedade com os edifícios confinantes.

Geometricamente, as platibandas são objectos finitos, contrariamente aos frisos, que são idealizados como infinitos.
A maior parte das platibandas são simétricas, ou em relação a um espelho vertical, ou a um espelho horizontal, ou a ambos.

Fonte: livro de Costa, Correia, Tojal, Prista e Palma (2020)
Imagem: capa do livro

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

[0334] O Sobre o décimo terceiro Objectivo do Desenvolvimento Sustentável: Acção Climática

Trata-se de um objectivo que tem estado particularmente em foco nos últimos anos.

Em https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel ele foi-nos apresentado assim:

Objetivo 13: Ação Climática
Reforçar a resiliência e a capacidade de adaptação a riscos relacionados com o clima e as catástrofes naturais em todos os países
Integrar medidas relacionadas com alterações climáticas nas políticas, estratégias e planeamentos nacionais
Melhorar a educação, aumentar a consciencialização e a capacidade humana e institucional sobre medidas de mitigação, adaptação, redução de impacto e alerta precoce no que respeita às alterações climáticas
Implementar o compromisso assumido pelos países desenvolvidos na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas [UNFCCC, em inglês] de mobilizarem, em conjunto, 100 mil milhões de dólares por ano, a partir de 2020, a partir de variadas fontes, de forma a responder às necessidades dos países em desenvolvimento, no contexto das ações significativas de mitigação e implementação transparente; e operacionalizar o Fundo Verde para o Clima por meio de sua capitalização o mais cedo possível
Promover mecanismos para a criação de capacidades para o planeamento e gestão eficaz no que respeita às alterações climáticas, nos países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento, e que tenham um especial enfoque nas mulheres, jovens, comunidades locais e marginalizadas
Reconhecer que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas é o principal fórum internacional, intergovernamental para negociar a resposta global às alterações climáticas

No entanto, em 2017, cerca de 15 mil cientistas de 184 países publicaram um artigo na revista «BioScience», conhecido como o «Segundo Aviso dos Cientistas à Humanidade», em que descrevem, conforme descrito num jornal, como estando “em curso danos ambientais «irreversíveis» e «substanciais» na Terra. Algumas das principais destruições (muitas provocadas por nós) são a crescente extinção de espécies, a desflorestação, o aumento da temperatura ou das emissões de dióxido de carbono (CO2).”
O Primeiro Aviso, intitulado «Alerta dos Cientistas do Mundo à Humanidade»foi assinado, em 1992, por 1700 cientistas de todo o mundo (muitos deles premiados com o Nobel) e publicado na revista da organização «Union of Concerned Scientists». Nele se lê: “Os seres humanos e o mundo natural estão em colisão. As actividades humanas causam danos severos e, por vezes, irreversíveis no ambiente e nos recursos.” E se enumera uma série de danos ao planeta, se sugerem passos a seguir e se pede que os países desenvolvidos ajam com urgência e reduzam o seu “superconsumo”.
O Segundo Aviso envolveu mais cientistas e apresentou dados preocupantes sobre a evolução havida desde 1992: a redução de 26% na quantidade de água doce disponível per capita; a queda na captura de peixe selvagem, apesar do crescimento do esforço de pesca; o aumento de 75% do número de zonas mortas nos oceanos; a perda de 121 milhões de hectares de floresta, muitos convertidos para a agricultura; o aumento contínuo e significativo nas emissões globais de CO2 e nas temperaturas médias do planeta; um aumento de 35% da população humana; e a redução de 29% nos mamíferos, répteis, anfíbios, aves e peixes. “Além disso, desencadeámos uma extinção em massa, a sexta em cerca de 540 milhões de anos, em que muitas formas de vida actuais podem ser aniquiladas ou condenadas à extinção até ao final do século”, assinala-se no artigo.

Eis quatro dos gráficos que resumem algumas destas preocupações:


Ilustrando as preocupações com o «superconsumo», o jornal «Guardian» divulgou um relatório da «Oxfam» onde se atribui aos 77 milhões de pessoas mais ricas do mundo (onde se incluem bilionários e milionários, mas também os que ganham mais de 128 mil euros por ano) a responsabilidade por 16% do total das emissões de CO2 ao longo do ano de 2019. Estas emissões terão sido responsáveis por mais de um milhão de mortes devido ao calor, cálculo feito a partir da fórmula usada pela agência norte-americana de proteção do ambiente (EPA), que atribui um excesso de mortalidade de 226 pessoas por cada milhão de toneladas de carbono.
O uso intensivo do ar condicionado pelas pessoas mais ricas protegem-nas das alterações climáticas, que provocou emissões de 5,9 mil milhões de toneladas de CO2 em 2019. A pessoa mais pobre do mundo precisaria de 1.500 anos para conseguir causar o mesmo nível de emissões que o bilionário mais rico produz num ano.

Neste blogue, os dezassete Objectivos do Desenvolvimento Sustentável foram genericamente apresentados na mensagem «0080».
Depois foi feita uma apresentação específica, com um comentário, aos seguintes objectivos: erradicar a pobreza (mensagens «0154», «0196» e «0206»), erradicar a fome («0157»), saúde de qualidade («0169»), educação de qualidade («0176»), igualdade de género («0178»), água potável e saneamento  («0239»), energias renováveis e acessíveis («0244»), trabalho digno e crescimento económico («0267»), indústria, inovação e infraestruturas («0275»), reduzir as desigualdades («0294»), cidades e comunidades sustentáveis («0314») e produção e consumo sustentáveis («0324»)

Fontes: artigo de Serafim (2017 b), no jornal «Público»; e artigo no sítio Esquerda (20 de Novembro de 2023) https://www.esquerda.net/artigo/elite-poluidora-causa-mais-emissoes-que-os-dois-tercos-mais-pobres/88532

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

[0333] Três tipos de relógio de Sol

No Parque do Tempo do Planetário da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), estado de Rio Grande do Sul (Brasil), existem três relógios de Sol, representados no seguinte figura:

Da direita para a esquerda:

Relógio de Sol Equatorial e Horizontal

Foi inaugurado no 40º aniversário da UFSM (que foi fundada em 14 de Dezembro de 1960) e idealizado por Francisco José Mariano da Rocha, então director do Planetário, e projectado por Hugo Gomes Blois Filho, professor de Arquitectura e Urbanismo, em parceria com Débora Sartori, na época estudante do mesmo curso.
É composto por dois marcadores, um equatorial, em formato circular, e responsável por apresentar o correr das horas, a partir da projecção da sombra de um gnómon (haste perpendicular ao círculo); e outro horizontal, construído no solo, onde também é possível observar o passar das horas pela projecção das sombras.

Relógio solar Intihuatana

Foi inaugurado no 45º aniversário da UFSM e no 34º do seu Planetário.
Trata-se de uma representação da pedra inca encontrada no ponto mais alto da cidade sagrada de Machu Picchu (Peru). A palavra «Intihuatana» significa, no idioma quechua, «onde se amarra o Sol». A pedra marca as estações do ano por meio da projecção de sombras na parte superior do monumento (o gnômon),
Esta pedra permite determinar a passagem meridiana, instante em que os astros atingem a máxima altura. Também marca os equinócios, dias do ano em que dia e noite têm exactamente a mesma duração – início do Outono e início da Primavera.

Relógio Solar Tupi-Guaraní

Tem por base um estudo realizado em 1991por investigadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi inaugurado no 50º aniversário da UFSM.
A equipa que efectuou o estudo analisou um monólito vertical, encontrado num sítio arqueológico situado nas margens do Rio Iguaçu, concluindo que tinha quatro faces talhadas artificialmente, apontando para os quatro pontos cardeais Norte, Sul, Leste e Oeste. As duas faces menores apontavam na direcção Norte-Sul e as maiores apontavam para a direcção Leste-Oeste. Além disso, em torno do monólito havia uma circunferência e alguns alinhamentos de rochas menores que, partindo dele, aparentemente indicavam os pontos cardeais e as direcções do nascer e do pôr-do-sol nos solstícios e equinócios.
Na versão construída na UFSM, o monólito vertical é de alvenaria, com 1,50 metros de altura. E as pedras de basalto, distribuídas ao redor do monólito, marcam as linhas Norte-Sul, Leste-Oeste, além do nascer e do pôr do sol nos solstícios de Verão e Inverno.

É possível ver uma animação do passar das horas nestes três relógios em:
https://www.ufsm.br/midias/arco/voce-sabia-que-existem-tres-tipos-de-relogios-do-sol-na-ufsm

Eis uma pequena história sobre relógios de Sol história contada por um antropólogo: “Há anos algures na Madeira um camponês contou-me que «antigamente» quando estavam a trabalhar no campo e queriam saber a aproximação da hora em que chegaria a água de rega, liam o tempo pela sombra do cabo de uma enxada que deixavam propositadamente de pé sobre a lâmina. Engenhoso. Nunca vi. Só me contaram. Nos dias nublados ...!?

Que acontece à sombra desta enxada, se for colocada sobre um plano infinito sobre o qual o Sol passa, de Leste para Oeste?

A extremidade da sombra vai-se deslocando de Oeste para Leste, havendo um momento em que o seu comprimento é mínimo (a amarelo, na imagem), momento que corresponde ao «meio-dia solar».
Este modelo é uma primeira aproximação do que se passa na realidade. De facto, a Terra não é plana, mas esférica; e o Sol aparenta circular em volta dela. Mas, para as principais horas do dia, esta simplificação serve.

Se em torno da base enxada fosse desenhado um pequeno rectângulo e aí construído um relógio de Sol, ele seria do
tipo Horizontal.
Existem outras duas possibilidades principais de construir relógios de Sol: o tipo Vertical, muito frequente em edifícios públicos, encontra-se, por exemplo, numa na Igreja do Seixal (primeira fotografia inserida abaixo); e o tipo Equatorial (pois o plano onde a sombra é projectada é paralelo ao equador terrestre), que é mais raro, tanto pode ser exemplificado pelo que existe na UFSM (ver figura acima) como pelo que existe nas margens do Meno, em Frankfurt (segunda fotografia abaixo):




Outra mensagem sobre «relógios de Sol: ver «0170»

Fontes: https://www.ufsm.br/midias/arco/voce-sabia-que-existem-tres-tipos-de-relogios-do-sol-na-ufsm (para a UFSM); Jorge Freitas Branco (antropólogo que contou a história da enxada-que-é-relógio-de-Sol)

Fotografias: Eva Blum (Seixal, 30 de Dezembro de 2022) e Pedro Esteves (Frankfurt am Main, 8 de Abril de 2008)

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

[0332] Jogos para os quais há material em casa (X): o Jogo do Assalto

O tabuleiro deste jogo, em forma de cruz, é constituído por 33 casas circulares, ligadas por diversos caminhos.

Num dos braços da cruz há um quadrado de 3 x 3 casas que se destaca, para simbolizar uma fortaleza.

No princípio do jogo há 24 peões atacantes, colocados nas casas exteriores à fortaleza, e 2 peões defensores, colocados nas casas da fortaleza que o jogador que defende escolher.
O objectivo dos defensores é eliminar os atacantes. E o objectivo dos atacantes é ocupar as 9 casas da fortaleza, ou cercar os defensores, impedindo-os de jogar.

Os jogadores alternam-se a jogar, cabendo ao que ataca iniciar o jogo. Cada jogada é constituída pelo movimento de um peão, de uma para outra casa.
Os atacantes podem deslocar-se entre duas casas vizinhas, ligadas por uma linha vermelha, não lhes sendo permitido recuar. Os defensores podem deslocar-se entre duas casas vizinhas, ligadas por uma linha vermelha ou azul, sendo-lhes permitido avançar, recuar ou deslocar-se lateralmente.

O movimento de um peão defensor pode consistir em saltar sobre um ou mais peões atacantes, eliminando-os do tabuleiro, tal como se faz no jogo das damas, podendo haver mudanças de direcção em cada salto. Este tipo de movimento do defensor é obrigatório, quando for viável executá-lo, e deve ser escolhido o (ou um dos) caminho(s) que elimina o maior número de atacantes.




Se, num dado momento do jogo restarem menos de 9 atacantes, os defensores são considerados vencedores, o mesmo sucedendo se os atacantes não puderem mover-se.

Neste jogo não podem ocorrer empates.

A partir da página «Documentos» deste blogue é possível aceder a um ficheiro (clicando em «Jogos de Reflexão») com as regras e o tabuleiro deste jogo.
Para o jogar, será necessário imprimir o tabuleiro e arranjar 24 peões atacantes e 2 peões defensores.

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

[0331] Luís Miguel Cintra e a profissão de actor

Numa série de entrevistas publicadas em livro em 2020, Luís Miguel Cintra (nascido em 1949) reflecte sobre diversos aspectos da profissão de actor ao longo de mais de meio século, em Portugal.


Eis alguns excertos dessas entrevistas (organizados a meu modo):

Ontem e hoje

Antes do 25 de Abril, “A relação com o material, com o que se queria dizer e com o que se queria fazer, era uma relação experimental no melhor sentido da palavra. Nós não tínhamos certezas, arriscávamos! Era uma aposta numa coisa diferente. E é disso que tenho muitas saudades … é isso que, acho eu, está hoje completamente banido das artes em Portugal. […] Atualmente sinto que é como se fosse proibido fazer isso, e que se fazes isso arrisca-te a não comer, a não ter dinheiro para pagar nada.” (p. 64)
A “profissionalização do próprio ofício” de actor decorre de estar “tudo muito mais organizado. Há os agentes, há as regras de subsídio - que no fundo são contestadas, não na sua essência, mas nos seus aspectos secundários … Portanto, implicitamente, toda a gente está a aceitar que existe uma estruturação da sociedade. Mal de nós se dissermos mal da sociedade actual, que foi a conquista do 25 de Abril … - muito mais pessoas têm acesso a muito mais coisas, e por aí adiante … As pessoas têm medo de não aproveitar as oportunidades, e de, se não aproveitarem as oportunidades, serem completamente esquecidas.” (p. 69) “Estão constantemente a aparecer atores que depois desaparecem. Atores e mais atores …, que se não se portarem bem desaparecem imediatamente. Têm, pois, toda a conveniência em portar-se bem! E «portar-se bem» o que é que significa? Significa representar como os outros querem que ele represente.” (p. 70)
Tenho a impressão que hoje em dia a ligação das pessoas à própria arte que praticam, ao próprio ofício, não é tão essencial como era para nós. […] Mais importante do que ter uma ideia qualquer é curtirem. Não gostam de sofrer.” (p. 70)
Antes do 25 de Abril estávamos “empenhados numa transformação do mundo, em descobrir qual é a maneira de ser feliz, e de sofrer, se for preciso, para que as pessoas todas sejam felizes”, mas hoje está-se numa “época mais superficial”, e “não me sinto bem nela.” (p. 91)

Aprender e fazer

A melhor maneira de aprender é pela experiência. Mas agora sinto que há uma espécie de obsessão pela técnica. Aparece uma quantidade de pessoas convencidas que já têm técnica e que portanto sabem fazer tudo. Na área da representação também.” (p. 240)
Quando se está numa situação em que o grupo não sabe o que se fará a seguir, surge “uma espécie de risco, ou de invenção em conjunto. E eu acho que isso é muito importante para que haja um sentido novo … […]. Porque queremos dizer coisas aos outros, e não podemos viver sem os outros … Para mim isso é fundamental. […] Porque se for o que os outros já sabem, não faz avançar ninguém.” (p. 67)
No Teatro, “As pessoas vão-se influenciando umas às outras. O que é importante é que sejam elas próprias, como gostam de ser, e que confiem nos outros. É um espírito lúdico! Não pode ser como quem vai de repente prestar provas num exame e tem de fazer o melhor possível porque está a prestar provas.” (p. 54)
No Cinema, os actores “Precisam é de fazer aquilo que os liga a si próprios, aquilo que os leva a envolverem-se pessoalmente.” (p. 161)

Estética, ética e comunicação

Há uma espécie de objetivo [ou “moral estética”] no cinema deles [Hitchcock; Tati; Oliveira; Dreyer], que é o de representar o mundo inteiro. E cada filme é uma espécie de alegoria ou de representação de toda a vida do mundo.” (p. 89)
Há outros filmes que são “uma maneira de veicular uma posição ética, política, perante a vida, mas já sem a ambição de representar o mundo inteiro. Nesses [filmes, como são quase todo os do Rossellini], o que se trata é de representar-se a si próprio e os nossos iguais.” (p. 90)
Quando,  num filme, “há uma relação vital, verdadeira, com o que se está a fazer, isso aparece sempre com uma qualidade interessante. E é isso que a torna num instrumento de comunicação. É comunicação! Tudo o que se faz, as obras de arte todas! E existe a tendência para se achar que são coisas de artistas, «eles é que sabem» … Eles não sabem, não! Eles estão a falar connosco!” (p. 196)

Actor e espectador

No início da Cornucópia a companhia optou pelo seguinte princípio: “o ator não tem de que chegar ao público, o público é que tem que chegar ao ator. Não é o ator que representa a personagem, é a personagem que representa o ator. O que, no fundo, é a ideia de destruir a passividade do espectador perante o trabalho do ator. Porque o espectador é obrigado a fazer um trabalho de análise sobre o que o ator está a fazer, que implica, por outro lado, uma relação que não é autoritária.” (p. 105)

Fonte: livro com entrevistas a Cintra (2020)
Fotografia: obtida através de uma pesquisa via Google, estando associada a uma outra entrevista de Cintra, em que este afirma “Não me apercebi de que estava a envelhecer

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

[0330] A Matemática e as Ludotecas (V): diferença entre «táctica» e «estratégia» nos jogos de reflexão

Para exemplificar o que distingue a «táctica» da «estratégia» podemos observar o que se passa no Jogo do Galo.

O Jogo do Galo é o parente mais simples de três outros jogos de alinhamento já referidos noutras mensagens, o Quatro em Linha (mensagem «265»), o Cinco em Linha (mensagem «4») e o Jogo do Moinho (mensagens «55», «296» e «315»).

Nos jogos de reflexão a táctica pode ser definida como o cálculo exacto de um pequeno número de lances; baseia-se, portanto, na lógica, e equivale, na Matemática, a uma demonstração. Já a estratégia não é exacta, tendo no entanto a vantagem de olhar para o médio e longo prazo; ela equivale a uma heurística (ver a mensagem «265»), um procedimento que se baseia na experiência e que não tem equivalente na Matemática formal.

Quem já jogou um bom número de vezes ao Jogo do Galo sabe que o único resultado razoável que há a esperar é o empate. Mas também sabe que há neste jogo algumas distrações que podem ser fatais. Por isso, o jogador experiente, e que não gosta de perder, costuma ter uma estratégia

Admitamos, meramente como exemplo, que a estratégia do primeiro jogador é: «jogar de modo a maximizar o potencial das peças que já jogou». E admitamos ainda que o segundo jogador escolhe os seus lances sem grande cuidado.
Ora, neste jogo, existem 8 alinhamentos de peças que ganham: cada uma das 3 linhas verticais, cada uma das 3 linhas horizontais e cada uma das 2 diagonais. E há três possibilidades de colocar a primeira peça no tabuleiro: ou num dos seus 4 vértices, ou no meio de um dos seus 4 lados, ou no seu centro.
Que decisão deve então tomar o primeiro jogador para seu lance inicial? Se jogar num vértice, dispõe de 3 alinhamentos ganhantes (um horizontal, um vertical e um diagonal); se jogar a meio de um dos lados apenas dispõe de 2 (um vertical e outro horizontal); e se jogar no centro do tabuleiro dispõe de 4 (um vertical, um horizontal e as duas diagonais. Joga, então, no centro do tabuleiro (a marca X no diagrama seguinte): ele não fez nenhum cálculo, apenas aplicou uma «estratégia» que achou ser prometedora e que já terá sido por ele experimentado, com sucesso, noutras ocasiões.
Como mínimo, ao jogar assim, o primeiro jogador já impediu que o segundo utilize com êxito 4 dos 8 alinhamentos ganhantes!

Face a este lance, o segundo jogador, que não pensa estrategicamente, tem duas possibilidades distintas, ou jogar num dos 4 vértices, ou jogar no meio de um dos 4 lados (marcas O no diagrama):


Em ambos os casos, restam ao primeiro jogador 3 alinhamentos ganhantes com a sua única peça (no primeiro caso, um vertical e dois diagonais; e, no segundo, um vertical, um horizontal e um diagonal).
Mas no primeiro caso ele pode calcular rigorosamente o que vai seguir-se: se jogar numa das três casas de cima, ou numa das três de baixo, ele tem a certeza de ganhar: apenas não tem a certeza de o conseguir se jogar na casa situada a meio do lado esquerdo. Dispõe, agora, de um lance táctico.
O próximo diagrama mostra o que acontece depois de o primeiro jogador jogar num dos vértices e de o segundo jogador apenas jogar para não perder de imediato:

Agora o segundo jogador não pode responder a duas ameaças de ganho do primeiro jogador e este ganhará com o seu quarto lance.
O leitor desta mensagem pode imaginar o que acontecerá se o segundo lance do primeiro jogador for outro.

E que acontecerá se o segundo jogador tiver escolhido uma das casas de vértice para seu primeiro lance?
Pensando de acordo com a sua estratégia, o primeiro jogador apenas deve recusar jogar na diagonal onde já se encontram uma peça de cada jogador, pois essa diagonal já não é ganhante para nenhum deles; qualquer outro lance do primeiro jogador alinha duas suas peças, estando a terceira casa ainda por preencher. O diagrama seguinte mostra o que sucede após um desses lances (ambos os jogadores, estando atentos, vêem-se obrigados a impedir que o outro coloque uma terceira peça alinhada):


É claro que o segundo jogador impede também esta última tentativa de alinhamento do primeiro jogador, terminando o jogo com um empate.

Se o segundo jogador usasse a estratégia do primeiro, nunca efectuaria o primeiro lance a meio de um lado do tabuleiro, casa que só lhe permite um alinhamento, mas sim num vértice, pois aí a peça jogada dispõe de dois alinhamentos potenciais.
Se os dois jogadores optassem por seguir esta estratégia, empatariam sempre!

E se o primeiro jogador decidisse jogar o seu segundo lance fora da sua estratégia, ou seja, alinhando três peças (duas dele e uma do adversário) na mesma diagonal?
Há também quem chame táctico a este lance, não lógico. É que o segundo jogador dispõe agora de dois maus lances (a meio de um lado) e de apenas um bom lance (num dos vértices), pelo que o seu modo descuidado de jogar o coloca em risco. O último diagrama mostra o que lhe sucede após uma das más escolhas:

E agora o segundo jogador não pode responder a duas ameaças de ganho do primeiro.

O leitor pode imaginar o que acontecerá se o segundo lance do segundo jogador for outro.
Nem sempre jogar com estratégia é o melhor lance …

A Lógica (e a Matemática) não explica(m) tudo nos Jogos de Reflexão.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

[0329] Três problemas de Matemática formulados no barrocal algarvio

A aldeia da Nave do Barão situa-se no barrocal algarvio, na freguesia de Salir, concelho de Loulé.


O livro em que os actuais residentes partilham as memórias centenárias desta comunidade inclui três dos desafios matemáticos que João Serra redigiu num caderninho que deixou à sua filha e que colocava a crianças e a jovens da aldeia.
Eis esses desafios:

1. Quanto ovos se partiram?
Uma camponesa foi à praça de Loulé vender ovos mas um polícia sem querer fez cair o cesto num encontrão e os ovos que tinha lá dentro partiram-se todos.
A senhora disse para o polícia … tenha paciência mas vai ter que pagar os ovos com outros tantos ovos.
O polícia perguntou-lhe … então quantos ovos tinha no cesto?
Ela respondeu: Eu sei que contando de dois em dois sobra um, contando de três em três sobram dois, contando de quatro em quatro sobram três, contando de cinco em cinco sobram quatro, contando de seis em seis sobram cinco e contando de sete em sete sobram seis.
Quantos ovos estavam no cesto?

2. Onde se cruzam os carros?
Partiram dois carros ao mesmo tempo para fazer um percurso de 320 km. Um partiu de Lisboa a 120 km à hora e o outro do Algarve a 80 km. Supondo que mantinham a mesma velocidade onde se irão encontrar?


3. O cão galgo e a lebre
Um caçador foi à caça com seu cão, levantou-se uma lebre e o cão correu atrás da lebre. A distância do cão à lebre era 40 saltos do cão, enquanto o cão dava 7 saltos a lebre dava 9 saltos, 3 saltos do cão valia como 5 da lebre. Quantos saltos deu o cão para apanhar a lebre?

Quais as razões pelas quais pessoas que não usam profissionalmente a Matemática gostam de uns «problemas» (e não de outros) e os fazem circular entre amigos e conhecidos?
E que nos dizem essas razões sobre o modo como a Matemática poderá, um dia, ser «melhor» ensinada?

SOLUÇÕES DOS TRÊS PROBLEMAS DE JOÃO SERRA:

No caderninho doado à sua filha João Serra também registou os métodos pelos quais resolveu os problemas que colocou. Não há neles preocupações com formalidades matemáticas, que plausivelmente o autor não dominaria, mas sim uma tendência para aquilo que pode ser designado por «método experimental». Esta é uma escolha não chocaria muitos dos que, ao longo da História, estiveram na origem dos progressos da Matemática …

Problema dos ovos.
O método experimental recorre à comparação dos diferentes conjuntos enunciados pela camponesa.
Se contarmos «de dois em dois» de modo a sobrar sempre «um», teremos o conjunto dos ímpares (excepto o «1»): 3, 5, 7, 9, 11, etc.;
Se contarmos «de três em três» de modo a sobrar sempre «dois», teremos o conjunto 5, 8, 11, etc.; este conjunto tem em comum com o anterior o número «11»:
Contando «de quatro em quatro» de modo a sobrar sempre «três», geramos o conjunto 7, 11, 15, etc.; tal como no caso anterior, ele tem o «11» em comum com os conjuntos já descritos;
Se contarmos «de cinco em cinco» de modo a sobrar sempre «quatro», geramos o conjunto 9, 14, 19, etc.; para descobrirmos um número em comum com os conjuntos anteriores será necessário prolongarmos todos eles até chegarem ao «59»;
Se contarmos «de seis em seis» de modo a sobrar sempre «cinco», geramos o conjunto 11, 17, 23, 29, 35, 41, 47, 53, 59, etc.; até aqui todos estes conjuntos têm em comum o «59»;
A contagem «de sete em sete», de modo a sobrar sempre «seis», é um desafio maior, pois será necessário prolongar todos os conjuntos até «419» (o leitor interessado pode verificar que este número cumpre as condições descritas pela camponesa).

Mas há algo mais a esclarecer: além do «419», também o «839», o «1259», etc. (números separados por «420») cumprem essas condições, pelo que é preciso explicar a «razão» de haver «uma só solução» - ninguém levaria «num cesto» mais do que um número limitado de ovos!

Problema dos dois carros.
A soma das velocidades é 200 km por hora. A esta velocidade, são necessários 96 minutos para percorrer 320 km. Então o carro mais rápido contribuiu com 192 km e o mais lento com 128 km.

Problema do Galgo e da Lebre.
As comparações entre a «dimensão dos saltos» do Galgo e da Lebre (3 do primeiro equivalem a 5 da segunda) e o «ritmo a que os saltos são feitos» (7 do Galgo duram tanto como 9 da Lebre) são difíceis de equacionar matematicamente:
O autor do problema simplificou-o ao admitir que o salto do Galgo é de 2 metros e que o salto da Lebre é de 1,20 metros (a proporção está correcta: 3 x 2 metros = 5 x 1,20 metros).
Mas o que vai decidir a corrida é o ritmo a que Galgo e Lebre correm (o primeiro é mais rápido do que a segunda): a cada 7 saltos do Galgo (equivalentes a 7 x 2 metros = 14 metros corridos) a Lebre corresponde com 9 saltos (equivalentes a 9 x 1,2 metros = 10,8 metros corridos); portanto, em cada «unidade de tempo», o Galgo recupera 14 – 10,8 = 3,2 metros do seu atraso inicial em relação à Lebre.
Então, para recuperar esse atraso, que era de 40 dos seus saltos (ou seja, 40 x 2 metros = 80 metros), o Galgo precisa de 80 : 3,2 «unidades de tempo», o que dá 25 «unidades de tempo». Como em cada uma delas o Galgo dá 7 saltos, o número total de saltos de que precisa para apanhar a Lebre é de 25 x 7 = 175 saltos!
A distância corrida pelo Galgo será de 175 x 2 metros = 350 metros. E a distância corrida pela Lebre será de 25 x 9 x 1,2 = 270 metros, precisamente menos 80 metros do que a do Galgo.

COMENTÁRIO:

Há filósofos da Matemática que defendem que esta disciplina é quasi-experimental: a educação, sobretudo no Ensino Básico, deveria tê-lo em conta!

No testemunho Nº 5 do blogue «Aprendizagens» (ver https://aprendizagens2023.blogspot.com/2023/01/005-o-interesse-pela-resolucao-de.html) há alguns exemplos de problemas trazidos para as aulas por alunos do Ensino Básico.


Fonte (capa e problemas): livro coordenado por Joaquim Guerreiro (p. 107)

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

[0328] Factos e argumentos sobre a Educação (IV): Isaac Asimov e o futuro

Há cerca de quarenta anos, numa recolha de diversas visões sobre o futuro da humanidade, Isaac Asimov (1920 - 1992) descreveu-nos o que então imaginava (ou desejava?) virem a ser os efeitos dos computadores na educação.


Para ele, o conhecimento existente nas bibliotecas poderia ser transformado em conhecimento disponível e pesquisável a partir de terminais dos computadores, devendo os custos ser suportados pelo Estado, já que aprender não é menos importante do que ter segurança pública.
Os professores poderiam propor aos alunos tarefas abertas, o que levaria os alunos a achar tudo mais divertido, a ser criativos, a poderem ensinar uns aos outros e, até, a poderem ensinar aos professores coisas que só eles conheceriam - por as terem pesquisado.

Se os computadores forem programados para «aprender», a partir dos dados que lhe forem fornecidos pelos seus utilizadores, argumenta agora Asimov, eles passarão a ser «máquinas de ensinar». E se as bibliotecas estiverem «automatizadas» e ligadas umas às outras, elas transformar-se-ão numa «biblioteca planetária», à qual as «máquinas de ensinar» estarão ligadas, e que por isso terão acesso a qualquer livro, periódico, documento, gravação ou vídeo nela disponíveis, assim os colocando ao alcance dos utilizadores humanos.
Nada disso, assegura Asimov, eliminaria os professores humanos, pois a aprendizagem exige uma diversidade de formas de interacção.

Portanto, os computadores tanto nos podem livrar de trabalhos repetitivos como nos podem dispensar de muitos dos esforços mentais que até agora têm sido garantidos pelos cérebros humanos. Isso permite-nos dispor de tempo livre para nos divertirmos e para sermos criativos. Em vez de nos preocuparmos com a inevitabilidade de o computador nos poder ganhar no jogo do Xadrez, conclui Asimov, podemos encarar o computador como uma oportunidade para aprendermos a jogar melhor do que jogávamos antes – e o mesmo poderemos fazer em muitos outros campos da nossa vida.

Outras referências a Isaac Asimov neste blogue: mensagens «109» e «311».

Fontes: Asimov (1986; pp. 70-78); Wikipédia

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

[0327] Quebra-cabeças: o célebre «Quinze», de Sam Loyd

O matemático norte-americano Samuel Lloyd (1841-1911) foi sobretudo conhecido como xadrezista e como inventor de quebra-cabeças.

A sua criação mundialmente mais conhecida surgiu por volta de 1870. Na sua versão actual, ela pode ser descrita assim: quinze peças quadradas, numeradas de 1 a 15, estão dispostas aleatoriamente no seguinte tabuleiro:


Como um dos quadrados está por preencher, e como as peças podem deslizar (ou verticalmente, ou horizontalmente), é possível deslocar para o quadrado livre uma das peças que lhe é adjacente, deixando assim outro quadrado por preencher.
Continuando a proceder deste modo, pretende-se ordenar as quinze peças, por exemplo assim:


Loyd ofereceu um prémio de 1000 dólares (que valiam, naquela altura, muito mais do que hoje) a quem conseguisse resolver este quebra-cabeças. Mas ninguém o conseguiu.
Mas a versão comercializada por Loyd tinha, intencionalmente, um problema: os quadrados já estavam ordenados, como na figura anterior, com o «14» e o «15» trocados, sendo objectivo do quebra-cabeças colocá-los na posição certa, o que é impossível!

Fonte: Wikipédia (sobre Loyd); livro de Criton (1997; p. 55)

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

[0326] O planeta, a economia … e as pessoas



Há, neste cartoon, uma ponta de pessimismo.
Gostaria que o actor que nele está nele implícito, as «pessoas», fosse dotado de «alma».
Tal como está pressuposto no breve diálogo, as «pessoas» tanto podem consumir desenfreadamente, como podem recusar-se a fazê-lo. Se apenas procederem assim, a relação que estabelecem com a «economia» é ditada nos termos desta: «consumir». É pouco para as «pessoas»; pois podem fazer mais, e estão a tentar fazê-lo, exigindo que a economia seja outra, virada para aqueles que nela trabalham, e não para aqueles que dela lucram.

E há ainda, neste cartoon, duas relações que estão em falta: entre as «pessoas» e o «planeta»; e entre a «economia» e o «planeta»:

Era bom que não nos esquecêssemos de quanto a maioria de nós ainda gosta de viver neste planeta e que não perdêssemos de vista o modo destruidor com a actual «economia» (e os que dela lucram) o destrói.


Imagem: cartoon de Afonso (2023)

sábado, 26 de agosto de 2023

[0325] Que se escreveu, no «Estado da Nação» (de 2023), sobre a educação?

Este «diagnóstico da educação» foi redigido por Isabel Flores, do ISCTE.


Eis um selecção do que esta académica escreveu:

A grande meta do acesso está hoje alcançada e em Portugal muitos passos foram dados no sentido de garantir o direito à educação, como demonstra a permanência na escola até aos 18 anos e o indicador do abandono escolar. A qualidade das aprendizagens a nível médio é agora comparável com os parceiros internacionais revelando que a apropriação de conhecimento e sua mobilização tem tido também uma evolução positiva para a maioria dos que frequentam a escola.
Temos agora de virar as políticas para o cumprimento das restantes objetivos: desenvolvimento integral; direito à diferença; mobilidade social e oportunidades de construção de um espírito crítico. Portugal continua a ser um dos países em que o estatuto socioeconómico das famílias mais determina o sucesso das aprendizagens. Temos também uma larga percentagem de alunos que chega aos 15 anos com um nível demasiado baixo de competências.
Novos e complexos desafios aconselham a que o sistema de gestão escolar adote conceitos e modelos pedagógicos alternativos. O objetivo maior é construir uma escola em que cada aluno seja distinto. Uma escola potenciadora de uma sociedade mais rica, criativa e produtiva. A escola que queremos no futuro deve moldar as políticas públicas no presente. Em Portugal, pouco poder é ainda confiado às escolas e esta gestão muito centralizada, com políticas iguais para todos os contextos, tem dificuldade em criar mecanismos de adaptação rápida e resposta a necessidades específicas.
Os diretores das escolas portuguesas consideram que o seu poder é muito limitado […] De facto, os professores são colocados através de uma lista ordenada a nível nacional; os salários são tabelados; as rescisões de contrato são muito complicadas; a organização do número de docentes é calculada em função de um rígido número de turmas, com pequenas majorações de crédito horário, a gestão de outros recursos humanos está também fora da esfera dos diretores, o orçamento de uma escola esgota-se nos salários e pouco ou nada sobra para acrescentar outras despesas, e os alunos são colocados de acordo com critérios previamente definidos iguais para todas as escolas.
As áreas onde os diretores reconhecem alguma capa[1]cidade de decisão no seio da escola são partes do currículo e avaliação, no que se refere à avaliação interna.
Por contraste, na República Checa, Países Baixos e Reino Unido, 90% dos diretores declaram ter poder para contratar e despedir os seus professores, são inteiramente responsáveis pela gestão dos seus orçamentos e tomam decisões sobre o currículo e os critérios de avaliação dos alunos. Nestes países, a maioria das decisões que as escolas podem assumir estão inseridas em linhas diretrizes e são discutidas e analisadas a diversos níveis de governança – local, regional e nacional – permitindo chegar a soluções mais robustas e minimizando os riscos de disparidade entre escolas.
O exemplo dos Países Baixos é de realçar. Os diretores não têm de seguir uma regra em relação ao número de alunos por turma, estas podem ter configurações variáveis conforme os assuntos que estão a ser tratados. Os diretores podem delegar nas mãos dos docentes o planeamento das aulas e os conteúdos que são lecionados. A maioria dos docentes opta por não ter um manual e adapta‑se a cada grupo, por vezes lecionando conteúdos distintos a alunos que frequentam a mesma disciplina. O regime de avaliação interna obriga apenas à realização de um exame no final de ciclo. Os professores não estão obrigados a cobrir uma dada quantidade de matéria entre testes. O que é considerado relevante é que os alunos cheguem ao fim de um certo número de anos e consigam aplicar o conhecimento acumulado, sendo a sequência e a forma como são ensinados pouco relevantes, ainda que haja inspeções e as escolas devam responder pelas suas opções. O objetivo é que as escolas consigam olhar para si mesmas e melhorar as suas práticas. O desempenho médio nos testes internacionais é elevado e a relação entre estatuto socioeconómico e aprendizagem é pouco acentuada. A percentagem de comunidades imigrantes tem vindo a crescer nos últimos anos e, por agora, as escolas mostram‑se capazes de responder à diferença.
A evidência vai demonstrando que a decisão de proximidade, com responsabilização, permite respostas de maior qualidade e mais adequadas ao dinamismo dos contextos.

A OCDE encontra resultados mais elevados nos testes PISA nos países onde as escolas têm poder de decisão sobre os currículos, os critérios de avaliação e as metodologias de ensino. A diferença encontrada é particularmente expressiva quando a autonomia vem acompanhada de responsabilização e prestação de contas.

A gestão de recursos é a responsabilidade que se mantém mais concentrada nas mãos do Ministério da Educação, especialmente no que se refere à contratação, remuneração e cessação de contratos de professores.”
“A colocação por lista ordenada tem cumprido o seu objetivo primário – ter professores distribuídos pelo intricado tecido de escolas e percursos de aprendizagem. A questão coloca-se para o futuro num ambiente de mudança e modernização. Os sindicatos, na sua competência como representantes dos professores, não aceitam que esse poder passe para a mão das escolas ou de outras estruturas locais, ainda que apenas parcialmente. As tensões nesta área são muitas e capazes de trazer uma classe inteira para a rua.

Em relação à autonomia curricular, avaliativa e pedagógica, onde se consegue encontrar maiores ligações com o desempenho das aprendizagens, Portugal tem feito algum progresso. As tentativas políticas de caminhar para um quadro de autonomia têm surgido nas agendas de diversos governos nas últimas três décadas, sendo suportadas por partidos à direita ou à esquerda. Esta é uma área onde é menos visível a contestação por parte dos sindicatos, mas que gera insegurança e medo a nível dos professores que a devem aplicar.
No passado, a autonomia curricular assumiu a figura de disciplinas sem currículo pré-estabelecido, como foi o caso da Área de Projeto. Desde 2017, as escolas foram desafiadas a aderir a um novo projeto de descentralização curricular, Autonomia e Flexibilidade Curricular (AFC), que faz parte de um plano alargado que visa colocar a escola no centro de decisão, tentando quebrar com o modelo prescritivo em vigor. A legislação prevê a autorização para a gestão flexível e contextualizada do currículo, podendo as escolas criar novos domínios ou disciplinas e também desenvolver novas práticas avaliativas. No âmbito da regulamentação, o governo elaborou um despacho que rege esta autonomia de forma bastante detalhada, balizando as possibilidades de autonomia, constituindo‑se como um menu de escolhas alternativas. Este projeto foi iniciado como um projeto-piloto de adesão voluntária e como tal continua a ser: só as escolas que se sentem preparadas ou que encontram vantagens neste modelo se abalançam a acolhê‑lo.
O governo tentou num segundo momento redesenhar o modelo, que em 2019 foi estendido a todas as escolas que o desejassem implementar, tendo sido então lançado um projeto mais exigente – os planos de inovação contratualizados, cuja autonomia de redesenho curricular podiam ser mais originais, podendo as escolas submeter currículos ao Ministério da Educação para aprovação. Arrancou com 83 escolas/agrupamentos em 2019 e neste momento já chegou a 240. Estes planos podem ter uma abrangência muito distinta (apenas uma turma ou o agrupamento inteiro) e a duração pode também ser variável, pelo que é ainda difícil compreender os impactos da sua implementação.

O relatório nacional de avaliação externa da autonomia e flexibilidade curricular identifica novas dinâmicas pedagógicas e alteração do discurso, dando primazia aos interesses do aluno. Recomenda que este processo seja continuado mantendo o apoio de especialistas, incrementando a formação de professores e mantendo a confiança nas escolas. As opções adotadas são ainda as mais fáceis, como a da organização de calendário por semestres, mas já é possível identificar práticas alternativas e disciplinas que acrescentam ou substituem o currículo tradicional, como por exemplo a criação da disciplina de Ciências da Terra que substitui Ciências Naturais, Geografia e Físico‑química no 7.º ano, ideia dos professores numa escola de Sintra. O Ministério da Educação criou um site para partilha de experiências em autonomia curricular, onde surgem atividades diversas tais como aprender ciências no meio envolvente, criar estufas de experimentação ou explorar informação em forma analógica e digital.

Dois comentários muito breves a este diagnóstico:

Parecem certeiras as escolhas da «qualidade» e, para a atingir, da «flexibilidade».

Portanto, não é compreensível que não seja questionado o papel que os «directores» têm nas escolas, onde são um dos principais obstáculos à «flexibilidade» e à «qualidade», por reduzirem a «democracia» e a «participação».

Citações e imagem: Flores (PDF de 2023)

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

[0324] O décimo segundo Objectivo do Desenvolvimento Sustentável: Produção e Consumo Sustentáveis

Este objectivo é assim apresentado em https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel:


Objetivo 12: Produção e Consumo Sustentáveis

Implementar o Plano Decenal de Programas sobre Produção e Consumo Sustentáveis, com todos os países a tomar medidas, e os países desenvolvidos assumindo a liderança, tendo em conta o desenvolvimento e as capacidades dos países em desenvolvimento.
Até 2030, alcançar a gestão sustentável e o uso eficiente dos recursos naturais.
Até 2030, reduzir para metade o desperdício de alimentos per capita a nível mundial, de retalho e do consumidor, e reduzir os desperdícios de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo os que ocorrem pós-colheita.
Até 2020, alcançar a gestão o ambientalmente saudável dos produtos químicos e todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de vida destes, de acordo com os marcos internacionais acordados, e reduzir significativamente a libertação destes para o ar, água e solo, para minimizar seus impactos negativos sobre a saúde humana e o meio ambiente.
Até 2030, reduzir substancialmente a geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reciclagem e reutilização.
Incentivar as empresas, especialmente as de grande dimensão e transnacionais, a adotar práticas sustentáveis e a integrar informação sobre sustentabilidade nos relatórios de atividade.
Promover práticas de compras públicas sustentáveis, de acordo com as políticas e prioridades nacionais.
Até 2030, garantir que as pessoas, em todos os lugares, tenham informação relevante e consciencialização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida em harmonia com a natureza.
Apoiar países em desenvolvimento a fortalecer as suas capacidades científicas e tecnológicas para mudarem para padrões mais sustentáveis de produção e consumo.
Desenvolver e implementar ferramentas para monitorizar os impactos do desenvolvimento sustentável para o turismo sustentável, que gera empregos, promove a cultura e os produtos locais.
Racionalizar subsídios ineficientes nos combustíveis fósseis, que encorajam o consumo exagerado, eliminando as distorções de mercado, de acordo com as circunstâncias nacionais, inclusive através da reestruturação fiscal e da eliminação gradual desses subsídios prejudiciais, caso existam, para refletir os seus impactos ambientais, tendo plenamente em conta as necessidades específicas e condições dos países em desenvolvimento e minimizando os possíveis impactos adversos sobre o seu desenvolvimento de uma forma que proteja os pobres e as comunidades afetadas.


O seguinte texto de opinião, de Vítor Belanciano, O mundo da obsolescência programada, ajuda-nos a perceber um dos obstáculos que o cumprimento deste objectivo enfrenta:

 Quando a qualidade e durabilidade são inimigas da produção de grande escala, da economia e do lucro.

 Está ligada num quartel de bombeiros de uma pequena cidade californiana, Livermore, desde 1901. É uma lâmpada. Pode ser vista a qualquer hora no sítio da Internet BulbCam. Trata-se de um pequeno e vulgar exemplar, com cerca de 120 anos, criado por um dos pioneiros da electricidade, Adolphe Chaillet, o que no mundo actual onde as lâmpadas se fundem com assiduidade, se tornou numa curiosidade exótica. Naquela época toda a gente queria o durável. Agora valoriza-se o novo.

Há dias, quando tentei pôr a arranjar um electrodoméstico não muito usado, e do outro lado do balcão ouvi duas frases recorrentes em situações análogas, lembrei-me disso: “Sabe, há muitos fabricantes que fazem isto assim para resistir apenas um certo tempo”. E, logo de seguida: «Olhe, sai-lhe mais barato agora comprar um novo do que pôr isso a arranjar». Bem-vindos ao fenómeno da obsolescência que é projectada.

Nunca ouviremos um fabricante assumir que o objecto por si executado foi estrategicamente delineado para ter um ciclo de vida menor do que poderia ter, mas a verdade é que esses períodos parecem cada vez mais reduzidos, forçando os consumidores a adquirirem assiduamente novos produtos. Longe vão os tempos em que havia objectos, como a lâmpada de Livermore, que duravam uma vida. Hoje quando ouvimos os gurus das diversas indústrias — com destaque para a tecnologia — em nenhum momento escutamos que aspiram a aumentar a qualidade dos produtos através da duração ou até da perenidade. Essa hipotética conquista resultaria em excedente de produção e diminuição de vendas e ganhos.

A obsolescência técnica planificada é a confirmação de que a estrutura produtiva, na maioria dos casos, não satisfaz as necessidades humanas, criando uma gigante indústria que se esforça por estimular necessidades artificiais, para satisfazer esse mesmo sistema produtivo e a finança. Para além da técnica, existe a obsolescência cognitiva ou simbólica, que consiste em considerar determinado utensílio — os telemóveis são um bom exemplo — como desactualizado, apesar de funcionar na perfeição. Não é o objecto que é inútil, é o sujeito que se sente invalidado se não tiver um novo modelo, mais de acordo com os seus padrões sociais.

A estratégia não é, evidentemente, nova. A ideia de criar produtos que precisem de ser eternamente substituídos tem barbas — por falar nelas, as máquinas de barbear têm muito que se lhe diga — com inúmeras perversões à mistura, como aquelas grandes empresas que limitam o direito de reparação ao consumidor, com sistemas operacionais que impedem interferências ou acesso a componentes. Para já não falar dos sistemas operacionais actualizados que não comportam aparelhos sem a mesma actualização. Essas multinacionais acabam por deter o monopólio das receitas com a assistência técnica de aparelhos que ajudaram a tornar ultrapassados, alterando o princípio de propriedade. Resultado? Já não se tenta reparar, na época em que todos falam em reciclar. Ao menor incidente com um aparelho o que se tenta de imediato é a sua troca.

Vivemos numa era de fé cega na tecnologia. Olhamos para ela como forma de salvar o futuro de problemas que a nossa relação com a mesma tecnologia acaba por criar. Como o exemplo da lâmpada demonstra, há mais de 100 anos os produtos fabricados tinham maior longevidade, apesar de a tecnologia ser menos avançada. Eis, então, o paradoxo. No mundo actual, a qualidade e durabilidade são inimigas da produção de grande escala, da economia e do lucro, com todas as questões de ordem social, ambiental e comportamental, com relações interpessoais cada vez mais descartáveis, que tais assuntos também transportam. Faça-se luz.


Neste blogue, os dezassete Objectivos do Desenvolvimento Sustentável foram genericamente apresentados na mensagem «0080».
Depois foi feita uma apresentação específica, com um comentário, aos seguintes objectivos: erradicar a pobreza (mensagens «0154», «0196» e «0206»), erradicar a fome («0157»), saúde de qualidade («0169»), educação de qualidade («0176»), igualdade de género («0178»), água potável e saneamento  («0239»), energias renováveis e acessíveis («0244»), trabalho digno e crescimento económico («0267»), indústria, inovação e infraestruturas («0275»), reduzir as desigualdades («0294») e cidades e comunidades sustentáveis («0314»)

Fontes: opinião publicada em jornal por Belanciano (2020 [?])

segunda-feira, 31 de julho de 2023

[0323] Quatro recensões de livros sobre a escola e a educação, por Paulo Guinote

 


Estou habituado a ser acusado de ser pessimista, de só ver o lado menos positivo das coisas. De não ver os evidentes “conseguimentos”, nomeadamente na área da Educação, e de estar sempre pronto e com teclado ligeiro para apontar o que correu menos pior ou francamente mal. Há mesmo quem se vitimize com algumas críticas, por muito que eu as fundamente de forma factual, não me refugiando apenas no domínio da “opinião”.
Discordo interiormente, porque considero que o que a nossa Escola Pública conseguiu fazer nas últimas décadas do século XX foi excepcional em termos de recuperação de um atraso educacional estrutural do país, não negando que mais algumas coisas positivas aconteceram nos últimos vinte anos. Mas não me importo de, para o exterior, ficar essa imagem por uma razão que acho simples e lógica… quem vê o copo meio vazio tem mais urgência em encher o que falta do que quem o vê meio cheio e, de certa forma, descansa e encara com maior calma o que há ainda por fazer.
Por outro lado, o pessimista alegra-se com pouco, pois espera quase sempre o pior, mesmo se não pula de contentamento, de nenúfar em nenúfar, todos os dias, como se vivesse no melhor dos lagos floridos, onde nenhum perigo espreita.
Existem formas diferentes de olhar para a mesma realidade, até de interpretar indicadores aparentemente objectivos de modos diversos e mesmos conflituantes. Compreendo isso, assim como o domínio mais subjectivo das “intenções” com que as coisas são ditas, escritas ou mesmo legisladas, mas como nos diz a sabedoria popular de boas intenções está o mais quente dos infernos repleto. Claro que as intenções são sempre as melhores, mesmo quando não o são verdadeiramente, incluindo certas medidas apresentadas como de uma justiça social e superioridade moral sem contestação possível.
A este propósito gostava de fazer aqui uma espécie de apresentação crítica de um conjunto de livros que, nos últimos meses, foram publicados por gente que vive ou viveu por “dentro” o quotidiano escolar há mais ou menos tempo, mas em todos os casos com experiência de várias décadas. Em comum têm quase todos um tom de crónica dorida e a publicação na periferia dos grandes grupos editoriais com negócios avultados com o Ministério da Educação. Em comum revelam a necessidade de exorcizar dores acumuladas, não inventadas, não ficcionadas para atingir qualquer governante, e que conduziram a momentos de perplexidade, desânimo, mas também de reflexão e resistência.

Não é por acaso que um desses livros tem como título, Resistir – Crónicas de uma Tragédia Educativa (Artelogy, 2023), de Fernando Alva, pseudónimo de professor com 43 anos de idade e 21 de profissão, actualmente docente da Educação Especial. O mais jovem desta amostra, talvez seja o que tem o olhar mais duro sobre o que o cerca, mas ainda e sempre com vontade de resistir contra as ameaças e demagogias de quem muito fala em Educação Pública, mas apenas de forma instrumental. As suas palavras podiam ser as minhas, que sou já de uma outra geração.
“Apesar de todos os seus defeitos, a escola pública portuguesa continua a ser um dos raros faróis da sociedade, pelo qual vale a pena lutar. Grande parte do que somos, mas também do que não nos deixaram ser, é aquela que se lhe deve. Por isso, é por tanto amá-la que o autor destas palavras passou grande parte da vida a criticá-la, sonhando-a para além da sua mesquinha existência quotidiana.” (p. 9)

Não é por acaso que Victor Correia publicou um volume com o título Injustiças e Abusos no Ensino em Portugal (Mosaico, 2023). Com 60 anos, 30 de carreira, professor de Filosofia, o seu retrato, que se estende do Ensino Básico ao Superior, é igualmente dorido e amargurado. Na introdução pode ler-se que:
“Actualmente, a importância da Escola e do papel do professor diminuíram muito. Com o aumento da escolaridade obrigatória e a massificação do ensino, o professor tornou-se quase um mero funcionário para guardar alunos dentro de um edifício, em vez de ser um expoente de cultura e conhecimentos, que muitos preferem ir buscar à Internet (..) e muita gente confunde transmissão com ensino, confunde conhecimentos com mera informação, confunde cultura geral com sabedoria, confunde informação com formação” (p. 5)
E esta situação não melhora quando existe um claro divórcio entre quem assume o papel de decisor e quem está no terreno e Victor Correia aponta uma das razões para isso: a origem da generalidade de quem ocupa o cargo de ministr@ é o ensino universitário, tendo uma formação demasiado teórica e quase nunca formação pedagógica (p. 6).

Já Pedro Esteves, 77 anos, professor aposentado, escolheu como tema O conflito sobre as escolas – Hierarquização versus Participação. Testemunho de um Professor (Ulmeiro, 2023), revelando desde logo uma das fracturas expostas no sistema de ensino público, condicionado nas últimas duas décadas pela lógica de dominação hierárquica na gestão e escolar e pela imposição de uma obediência acrítica a formulações únicas e inquestionáveis que tomam a escola como uma empresa gerida à moda de um neoliberalismo que entrou em força na administração educativa.
Já fora do delírio quotidiano, Pedro Esteves consegue uma abordagem mais analítica da evolução da Educação Pública nas últimas décadas, das tendências que marcaram a passagem de uma lógica “horizontal”, democrática, efectivamente colaborativa, para um paradigma (termo muito usado na novilíngua a que Marçal Grilo chamou “eduquesa”) em que predomina o modelo “vertical”, autocrático e em que a colaboração se define pela anuência à implementação do que é imposto a partir do topo das “lideranças”, nacionais ou locais. Na síntese do debate sobre a apresentação da obra, o autor apresenta um depoimento com muitos pontos em comum com o de Fernando Alva, 34 anos mais novo:
“Trata-se de uma história de amor à escola, nos caminhos sinuosos da sua dignificação; mas também se trata de um percurso crítico e de resposta.
Proporciona uma visão de conjunto sobre as políticas educativas e sobre o que se passou nas escolas nos últimos 50 anos. Foca-se, sobretudo, a organização das escolas, pois esta decide a arte de ensinar dos professores. Permite compreender o «mal-estar» subjacente à actual luta dos professores (a qual só pode ser compreendida a partir dos seus testemunhos).”

No caso de José Calçada, também 77 anos, formado em História, professor com um longo trajecto como inspector pedagógico, o livro publicado (O Herói e doze coisas mais. Primeiro Capítulo, 2023) é mais diversificado nos temas e no registo usado, mas alguns capítulos devolvem-nos um quotidiano bem revelador do clima vivido na Educação nas primeiras décadas do século XXI. Inspector até 2009, descreve-nos como as políticas seguidas se definem e alteram de acordo com os humores e interesses particulares dos governantes. Do capítulo “O Desafio da qualidade Educativa”, extraio o excerto, de uma intervenção pública feita em 2016, sobre a forma como as coisas são feitas, nem interessando qual o governo ou o ministro específico, porque a pulsão para usar os organismos do Estado como aparelhos de imposição ideológica é transversal e marca a História dos últimos 20 anos da nossa Educação Pública.
“E a pergunta que agora se deve colocar é: porque é que, depois de percorrermos cerca de 800 escolas com a aplicação do Programa de Avaliação Integrada, este trabalho foi subitamente suspenso, de um momento para o outro. Bem, há muitas respostas para esta pergunta, e nenhuma delas é de natureza pedagógica, nenhuma delas em rigor tem a ver com as escolas ou a Inspecção – todas elas resultaram de uma opção política definida.” (p. 89)
José Calçada continua explicando que muitos dos “pontos fracos” que os relatórios apresentavam se deviam, em regra, a factores ou organismos exteriores às escolas, pelo que o governante em causa terá considerado que isso era uma espécie de rebelião contra a sua forma de encarar as coisas… “estou à espera que eles venham de lá e nos digam que os professores são culpados de tudo e mais alguma coisa, e os gajos vêm dizer que afinal não é assim?” (p. 90)

Será que estes docentes, com trajectos profissionais muito diversos, de diferentes gerações, estão todos errados, partilhando de uma qualquer conspiração global contra uma Educação Maravilhosa que recusam reconhecer? Acaso não se tratará do contrário, pois, por diversas razões, nada têm a ganhar com tal diagnóstico? Estarão todos equivocados, estando certos aqueles que, tendo nas suas mãos as redes do poder, se fecham a olhares divergentes e recusam a aceitação do pensamento crítico que anunciam promover nos alunos? Olhem que não, olhem que não…

 

Fonte: opinião de Guinote publicada no «Jornal de Letras» (2023)