Estou
habituado a ser acusado de ser pessimista, de só ver o lado menos positivo das
coisas. De não ver os evidentes “conseguimentos”, nomeadamente na área da
Educação, e de estar sempre pronto e com teclado ligeiro para apontar o que
correu menos pior ou francamente mal. Há mesmo quem se vitimize com algumas
críticas, por muito que eu as fundamente de forma factual, não me refugiando
apenas no domínio da “opinião”.
Discordo interiormente, porque
considero que o que a nossa Escola Pública conseguiu fazer nas últimas décadas
do século XX foi excepcional em termos de recuperação de um atraso educacional
estrutural do país, não negando que mais algumas coisas positivas aconteceram
nos últimos vinte anos. Mas não me importo de, para o exterior, ficar essa
imagem por uma razão que acho simples e lógica… quem vê o copo meio vazio tem
mais urgência em encher o que falta do que quem o vê meio cheio e, de certa
forma, descansa e encara com maior calma o que há ainda por fazer.
Por outro lado, o pessimista alegra-se com pouco, pois espera quase sempre o
pior, mesmo se não pula de contentamento, de nenúfar em nenúfar, todos os dias,
como se vivesse no melhor dos lagos floridos, onde nenhum perigo espreita.
Existem formas diferentes de olhar para a mesma realidade, até de
interpretar indicadores aparentemente objectivos de modos diversos e mesmos conflituantes.
Compreendo isso, assim como o domínio mais subjectivo das “intenções” com que
as coisas são ditas, escritas ou mesmo legisladas, mas como nos diz a sabedoria
popular de boas intenções está o mais quente dos infernos repleto. Claro que as
intenções são sempre as melhores, mesmo quando não o são verdadeiramente,
incluindo certas medidas apresentadas como de uma justiça social e
superioridade moral sem contestação possível.
A este propósito gostava de fazer aqui uma espécie de apresentação crítica de
um conjunto de livros que, nos últimos meses, foram publicados por gente que
vive ou viveu por “dentro” o quotidiano escolar há mais ou menos tempo, mas em
todos os casos com experiência de várias décadas. Em comum têm quase todos um
tom de crónica dorida e a publicação na periferia dos grandes grupos editoriais
com negócios avultados com o Ministério da Educação. Em comum revelam a
necessidade de exorcizar dores acumuladas, não inventadas, não ficcionadas para
atingir qualquer governante, e que conduziram a momentos de perplexidade,
desânimo, mas também de reflexão e resistência.
Não é por acaso que um desses livros tem como título, Resistir
– Crónicas de uma Tragédia Educativa (Artelogy, 2023), de
Fernando Alva, pseudónimo de professor com 43 anos de idade e 21 de profissão,
actualmente docente da Educação Especial. O mais jovem desta amostra, talvez
seja o que tem o olhar mais duro sobre o que o cerca, mas ainda e sempre com
vontade de resistir contra as ameaças e demagogias de quem muito fala em Educação
Pública, mas apenas de forma instrumental. As suas palavras podiam ser as
minhas, que sou já de uma outra geração.
“Apesar de todos os seus defeitos, a escola pública portuguesa continua
a ser um dos raros faróis da sociedade, pelo qual vale a pena lutar. Grande
parte do que somos, mas também do que não nos deixaram ser, é aquela que se lhe
deve. Por isso, é por tanto amá-la que o autor destas palavras passou grande
parte da vida a criticá-la, sonhando-a para além da sua mesquinha existência
quotidiana.” (p. 9)
Não é por acaso que Victor Correia publicou um volume com o título Injustiças
e Abusos no Ensino em Portugal (Mosaico, 2023). Com 60 anos, 30
de carreira, professor de Filosofia, o seu retrato, que se estende do Ensino
Básico ao Superior, é igualmente dorido e amargurado. Na introdução pode ler-se
que:
“Actualmente, a importância da Escola e do papel do professor
diminuíram muito. Com o aumento da escolaridade obrigatória e a massificação do
ensino, o professor tornou-se quase um mero funcionário para guardar alunos
dentro de um edifício, em vez de ser um expoente de cultura e conhecimentos,
que muitos preferem ir buscar à Internet (..) e muita gente confunde
transmissão com ensino, confunde conhecimentos com mera informação, confunde
cultura geral com sabedoria, confunde informação com formação” (p. 5)
E esta situação não melhora quando existe um claro divórcio entre quem
assume o papel de decisor e quem está no terreno e Victor Correia aponta uma
das razões para isso: a origem da generalidade de quem ocupa o cargo de
ministr@ é o ensino universitário, tendo uma formação demasiado teórica e quase
nunca formação pedagógica (p. 6).
Já Pedro Esteves, 77 anos, professor aposentado, escolheu como tema O
conflito sobre as escolas – Hierarquização versus Participação. Testemunho de
um Professor (Ulmeiro, 2023), revelando desde logo uma das
fracturas expostas no sistema de ensino público, condicionado nas últimas duas
décadas pela lógica de dominação hierárquica na gestão e escolar e pela
imposição de uma obediência acrítica a formulações únicas e inquestionáveis que
tomam a escola como uma empresa gerida à moda de um neoliberalismo que entrou
em força na administração educativa.
Já fora do delírio quotidiano, Pedro Esteves consegue uma abordagem mais
analítica da evolução da Educação Pública nas últimas décadas, das tendências
que marcaram a passagem de uma lógica “horizontal”, democrática, efectivamente
colaborativa, para um paradigma (termo muito usado na novilíngua a que Marçal
Grilo chamou “eduquesa”) em que predomina o modelo “vertical”, autocrático e em
que a colaboração se define pela anuência à implementação do que é imposto a
partir do topo das “lideranças”, nacionais ou locais. Na síntese do debate
sobre a apresentação da obra, o autor apresenta um depoimento com muitos pontos
em comum com o de Fernando Alva, 34 anos mais novo:
“Trata-se de uma história de amor à escola, nos caminhos sinuosos da
sua dignificação; mas também se trata de um percurso crítico e de resposta.
Proporciona uma visão de conjunto sobre as políticas educativas e sobre
o que se passou nas escolas nos últimos 50 anos. Foca-se, sobretudo, a
organização das escolas, pois esta decide a arte de ensinar dos professores.
Permite compreender o «mal-estar» subjacente à actual luta dos professores (a
qual só pode ser compreendida a partir dos seus testemunhos).”
No caso de José Calçada, também 77 anos, formado em História, professor com
um longo trajecto como inspector pedagógico, o livro publicado (O
Herói e doze coisas mais. Primeiro Capítulo, 2023) é mais
diversificado nos temas e no registo usado, mas alguns capítulos devolvem-nos
um quotidiano bem revelador do clima vivido na Educação nas primeiras décadas
do século XXI. Inspector até 2009, descreve-nos como as políticas seguidas se
definem e alteram de acordo com os humores e interesses particulares dos
governantes. Do capítulo “O Desafio da qualidade Educativa”, extraio o excerto,
de uma intervenção pública feita em 2016, sobre a forma como as coisas são
feitas, nem interessando qual o governo ou o ministro específico, porque a
pulsão para usar os organismos do Estado como aparelhos de imposição ideológica
é transversal e marca a História dos últimos 20 anos da nossa Educação Pública.
“E a pergunta que agora se deve colocar é: porque é que, depois de
percorrermos cerca de 800 escolas com a aplicação do Programa de Avaliação
Integrada, este trabalho foi subitamente suspenso, de um momento para o outro.
Bem, há muitas respostas para esta pergunta, e nenhuma delas é de natureza
pedagógica, nenhuma delas em rigor tem a ver com as escolas ou a Inspecção –
todas elas resultaram de uma opção política definida.” (p. 89)
José Calçada continua explicando que muitos dos “pontos fracos” que os
relatórios apresentavam se deviam, em regra, a factores ou organismos
exteriores às escolas, pelo que o governante em causa terá considerado que isso
era uma espécie de rebelião contra a sua forma de encarar as coisas… “estou
à espera que eles venham de lá e nos digam que os professores são culpados de
tudo e mais alguma coisa, e os gajos vêm dizer que afinal não é assim?”
(p. 90)
Será que
estes docentes, com trajectos profissionais muito diversos, de diferentes
gerações, estão todos errados, partilhando de uma qualquer conspiração global
contra uma Educação Maravilhosa que recusam reconhecer? Acaso não se tratará do
contrário, pois, por diversas razões, nada têm a ganhar com tal diagnóstico?
Estarão todos equivocados, estando certos aqueles que, tendo nas suas mãos as
redes do poder, se fecham a olhares divergentes e recusam a aceitação do
pensamento crítico que anunciam promover nos alunos? Olhem que não, olhem que
não…
Fonte: opinião
de Guinote publicada no «Jornal de Letras» (2023)