domingo, 26 de setembro de 2021

[0289] Êxodos

John Steinbeck (1902 - 1968) precisou de cerca de cem dias para escrever o livro «As Vinhas da Ira» (publicado em 1939). O contexto da história que ele conta é assim resumido numa das edições em língua portuguesa:
Na década de 1930, as grandes planícies do Texas e de Oklahoma foram assoladas por centenas de tempestades de poeira que causaram um desastre ecológico sem precedentes, agravaram os efeitos da Grande Depressão, deixaram cerca de meio milhão de americanos sem casa e provocaram o êxodo de muitos deles para oeste, rumo à Califórnia, em busca de trabalho.

O documentário «Vinhas da Ira – O Fantasma da América Moderna», de Priscilla Pizzato, comenta o processo de escrita deste livro e lembra-nos que o êxodo nele descrito nem foi o primeiro, nem o último. Todos sabemos os êxodos que ainda hoje estão a acontecer, um pouco por todo o mundo, expondo aqueles que procuram sobreviver a uma indiferença, e por vezes a uma cruel exploração, pelos seus semelhantes.

Ver em: https://www.rtp.pt/play/p7914/e568917/the-grapes-of-wrath-the-ghost-of-modern-america


Fontes: livro de Steinbeck (2021, contracapa); documentário de Priscilla Pizzato (data desconhecida)
Imagem: RTP Play (acerca do documentário de Pizzato)

domingo, 19 de setembro de 2021

[0288] Progresso e estagnação no Salto com Vara

O estudo matemático dos máximos mundiais em provas desportivas está relacionado com o problema da previsão do limite para que esses máximos tendem, admitindo, como pressuposto, que o corpo humano é invariante.
O Salto com Vara, talvez a prova do Atletismo mais dependente da componente técnica, é, por esta razão, particularmente interessante.
Na história desta disciplina, a Vara começou por ser de Bambu (máximos mundiais, ao ar livre, desde os 4,02 metros, em 1912, até aos 4,77 metros, em 1942), depois teve dois breves períodos em que foi de Alumínio (4,78 metros em 1957) e de Aço (4,80 metros em 1960), sendo a partir daí em Fibra de Carbono (desde os 4,83 metros, em 1961, até aos 6,15 metros, em 2021).

Na tabela seguinte figura, para cada década, o período em que se verificaram máximos mundiais (coluna A), o correspondente número de vezes em que estes foram superados (B), o melhor resultado obtido (C), o progresso verificado em relação ao período anterior (D) e o tipo de Vara utilizado (E):

O atleta que mais vezes estabeleceu um máximo mundial, ao ar livre, foi o russo Sergey Bubka. Fê-lo por 17 vezes, desde os 5,85 metros, em 1984, até aos 6,14 metros, em 1994. Portanto, antes deste atleta, em cerca de duas décadas e meia com a Fibra de Carbono, o máximo mundial do salto com Vara tinha subido 105 centímetros; e, com Bubka, ao longo de dez anos, subiu mais 29 centímetros. Assim, pode-se arriscar a hipótese de a alteração do material da Vara ter proporcionado grande parte do progresso desde 1960 e de a excepcionalidade do atleta ter proporcionado o restante, a partir de 1984.
Já agora: o máximo de Bubka foi batido vinte e seis anos depois, em 2020, pelo jovem sueco Armand Duplantis, que lhe acrescentou mais 1 centímetro: é agora de 6,15 metros.

Neste blogue já foram abordados os seguintes casos de evolução das melhores marcas mundiais: no Atletismo (100 metros, masculinos, mensagem «0068»; 10 mil metros, masculinos e femininos, mensagem «0194»; Salto em Altura, masculinos, mensagem «0271») e na Natação (100 metros, masculinos, mensagem «0102»).

 

Fonte: sítio da Track and Field Statistics

Imagem: adaptada de http://auladehistorianaweb.blogspot.com/2016/08/salto-com-vara.html

domingo, 12 de setembro de 2021

[0287] A Matemática e as Ludotecas (III): qual o valor relativo das peças de Xadrez?

Lembro-me de num dos meus primeiros livros de Xadrez ter lido uma argumentação matemática para fundamentar o valor relativo que os jogadores habitualmente atribuem às peças deste jogo.

O início dessa argumentação era o seguinte: colocadas no centro do tabuleiro, sem os entraves resultantes da presença de outras peças, cada uma delas dispõe aí do seu número máximo de movimentos possíveis, a Dama com 27, a Torre e o Bispo com 14 e o Cavalo com 8:



Mas se estas peças se aproximarem dos bordos do tabuleiro, o seu número de movimentos reduz-se, excepto no caso da Torre. O seguinte mapa mostra o número de movimentos possíveis de cada uma delas a partir das 64 casas do tabuleiro (no caso do Bispo são apenas 32 casas, pois ele só se movimenta ou em casas brancas, ou em casas pretas):



Esta quantificação justifica um dos princípios que costumam ser ensinados aos jogadores principiantes: quase sempre, as peças colocadas no centro do tabuleiro são mais valiosas.

A partir daqui já não me recordo como prosseguia a argumentação matemática que li naquele velho livro de Xadrez. Talvez fosse parecida com a que se segue.
No tabuleiro em geral, o valor de cada peça pode ser traduzido pela adição dos movimentos possíveis nas 64 casas, que é igual a 1456 no caso da Dama, a 896 no da Torre, a 280 no do Bispo e a 336 no do Cavalo.
Agora, para transformar estes valores absolutos em importância relativa, pode-se dividir todos eles, sucessivamente, pelos mesmos divisores, até que todos os dividendos sejam inferiores a 10. Por exemplo:


Esta valorização relativa das peças é próxima daquela que é tradicionalmente ensinada no caso das duas peças mais fortes, e não tão próxima no caso das duas mais fracas: a Dama valerá 9, a Torre 5 e o Bispo, tanto como o Cavalo, 3, valores que oscilarão com as particularidades estruturais de cada jogo e com o potencial das peças (e dos Peões e dos Reis) à medida que o jogo se desenrola.

O raciocínio meramente quantitativo não explica as razões pelas quais o Bispo e o Cavalo são mais valorizados pela experiência do que pela argumentação que desenvolvi acima. Talvez seja suficiente dizer que estas duas peças têm maiores oportunidades para se movimentar quando as posições de jogo são mais fechadas. E que os Bispos têm uma grande facilidade em se articular com os seus Peões.
Este é um bom exemplo para mostrar que o «conhecimento» se origina na «experiência», e não na «ciência», sendo esta apenas uma das fronteiras em que o «conhecimento» é socialmente validado.

sábado, 4 de setembro de 2021

[0286] Mudar a Escola: uma reflexão de António Nóvoa

Os regressos às aulas são os mais importantes momentos para se pensar o futuro da Educação.
Vem pois a propósito a seguinte reflexão de António Nóvoa:

E agora, Escola?


Um novo ambiente educativo
Há muito tempo que a educação escolar revela sinais de fragilidade. Por vezes, ouve-se mesmo dizer que “as escolas do século XIX não servem para educar as crianças do século XXI”. Como reinventar o modelo escolar, tal como o conhecemos nos últimos 150 anos?
Correndo o risco de uma simplificação excessiva, recordo uma série de palestras que fiz no Brasil, há cerca de dez anos, nas quais recorri às metáforas do quadro-negro e do celular[= telemóvel] para comparar dois ambientes de aprendizagem.
O quadro-negro é um objeto vazio (precisa de ser escrito), fixo (não se pode mover) e vertical (destina-se a uma comunicação unidirecional). O celular é um objeto cheio (contém as enciclopédias do mundo), móvel (desloca-se conosco) e horizontal (facilita uma comunicação multidirecional).
Quer isto dizer que o quadro-negro é inútil? Não. Nada substitui uma boa lição. Quer isto dizer que, a partir de agora, tudo será digital? Não. Nada substitui um bom professor.
Precisamos de construir ambientes educativos favoráveis a uma diversidade de situações e de dinâmicas de aprendizagem, ao estudo, à cooperação, ao conhecimento, à comunicação e à criação. Nesse sentido, a metáfora do celular é mais inspiradora do que a metáfora do quadro-negro.

Reações à pandemia
Em educação, a covid-19 não trouxe nenhum problema novo. Mas revelou as fragilidades dos sistemas de ensino e do modelo escolar. O que era assunto de debate entre especialistas passou a interessar toda a gente, sobretudo as famílias confinadas com os seus filhos que, de repente, se transformaram também em seus “alunos”.
Como têm sido as reações à pandemia?

Os governos têm sido imprudentes e até insensatos. Devemos reconhecer o esforço para manter uma certa “continuidade educativa”, com resultados aceitáveis para as classes médias, mas desfavoráveis para as classes populares. Todos referem que o recurso ao digital provoca ainda mais desigualdades, mas pouco, ou nada, tem sido feito para ultrapassar esta situação.
Muitas instituições, e também universidades, sobretudo públicas, ficaram bloqueadas numa discussão inútil sobre o uso ou desuso do digital e do “ensino remoto”. Outras, sobretudo privadas, transformaram o digital no novo Deus da educação. São dois disparates, do mesmo tamanho, ainda que de sinais contrários.
O melhor foram as reações de muitos professores que, em condições dificílimas, conseguiram inventar respostas úteis e pedagogicamente consistentes, através de dinâmicas de colaboração dentro e fora das escolas. A Unesco identificou e divulgou essas experiências, que constituem uma base importante para repensar o ensino e o trabalho docente.

E agora?
Alguns, advogam um “regresso à normalidade”, opção impossível e indesejável. Libertaram-se energias que não conseguimos colocar de novo dentro da caixa. E, de todas as formas, não seria desejável voltar a rotinas desinteressantes.
Outros, aproveitam a oportunidade para explicar que “tudo vai mudar”, rapidamente, com a desintegração das escolas e a transição para o digital. Na verdade, esta solução já era defendida, pelo menos desde a viragem do século, em discursos de “personalização” das aprendizagens, cientificamente legitimados pelas neurociências e com recurso à inteligência artificial.
Não me revejo nessas opções. Defender o imobilismo da “normalidade” é o pior serviço que podemos prestar à educação pública. Sustentar o confinamento, para sempre, da educação em espaços domésticos ou familiares seria abdicar de uma das mais importantes missões da escola: aprender a viver com os outros.
Acreditar que nada vai mudar ou que tudo vai mudar rapidamente são duas ilusões igualmente absurdas. Em educação, as mudanças são sempre longas, fruto do trabalho de várias gerações.
O recurso ao digital não é inocente, pois este “meio” influencia o acesso e a organização do conhecimento. Para além disso, o seu uso público é condicionado por ser controlado pelas grandes empresas privadas. Torna-se urgente assegurar o acesso de todos ao digital e valorizar o software livre, universal e gratuito. Mas a questão essencial nunca é sobre os instrumentos, é sempre sobre o sentido da mudança.

O sentido da mudança
Duas perguntas principais marcam o ritmo das interrogações pedagógicas do nosso tempo: como construir um ambiente educativo estimulante? Como entrelaçar o trabalho educativo dentro e fora das escolas?
À primeira pergunta responde-se com a metáfora da biblioteca. O novo ambiente escolar será parecido com uma grande biblioteca, na qual os alunos podem estudar, sozinhos ou em grupo, podem aceder e construir o conhecimento com o apoio dos seus professores, podem realizar projetos de trabalho e de pesquisa… A pandemia mostrou que não se aprende apenas através de aulas.
À segunda pergunta responde-se com a metáfora da cidade. Há 50 anos, uma geração notável de educadores construiu duas utopias: a educação faz-se em todos os tempos e em todos os espaços. A primeira, deu lugar à educação permanente, à educação ao longo da vida, que se tornou o mantra dos discursos e das políticas. A segunda, ficou largamente por cumprir, até que a pandemia mostrou que não se aprende apenas dentro das escolas. A educação faz-se em todos os espaços, na cidade.
Nas mãos de professores e alunos, com sensibilidade e tato pedagógico, o digital pode ser um instrumento importante para apoiar as mudanças necessárias na educação e no ensino.

E as universidades?
Quando era reitor da Universidade de Lisboa perguntaram-me onde estava o futuro das universidades. Respondi: na educação básica, no reforço de uma educação pública de qualidade para todos. Sem isso, dificilmente teremos boas universidades.
Mas é preciso fazer também a pergunta inversa: onde está o futuro da educação básica? A minha resposta é simples: está, em grande parte, nas universidades, porque são elas que formam os professores, porque são elas que têm a “massa crítica” necessária para reforçar a educação como bem público e bem comum.

Os problemas educativos, agora expostos com nitidez pela pandemia, não são novos. Estamos, sim, a assistir a uma aceleração da história. Os próximos tempos vão ser marcados por mudanças profundas. Hoje, mais do que nunca, precisamos de universidades com grande autonomia e liberdade, com espírito crítico, comprometidas com a inovação pedagógica e o reforço do espaço público da educação. É por aqui que passa grande parte do futuro das sociedades do século XXI.


Fonte (texto e fotografia): https://jornal.usp.br/?p=347369, no portal da Universidade de São Paulo (aí publicado em 19 de Agosto de 2020)