segunda-feira, 30 de setembro de 2019

[0192] Professor: em quem vai votar?


Esta pergunta não é de modo algum absurda numa escola: hoje os jovens estão muito mais próximos do mundo dos adultos e querem compreendê-lo, diversificando as fontes de informação e de opinião que acham serem credíveis.
No entanto, como os adultos sabem, também o modo como as perguntas lhes são colocadas pelos jovens devem ser encaradas como tentativas de conversar sobre assuntos que eles estão à procura de saber formular.


Uma possível conversa, a partir de uma pergunta tão frontal:

·      votar é um dos actos da democracia, mas não é o único, nem é o central;
·      o que é central na democracia é a participação dos cidadãos, individualmente e em grupo;
·      os enormes desafios que hoje se colocam a todos nós exigem que estejamos atentos ao que se situa para além dos espaços que habitualmente percorremos, ao que aconteceu antes e ao que acontecerá depois do  tempo em que estamos a viver e a todos aqueles com quem não estamos em contacto directo;
·      a educação é um dos meios que nos pode ajudar a alargar estes horizontes.

sábado, 28 de setembro de 2019

[0191] Uma tabela usada na cozinha de um hospital nos finais do século XVII


Atribuído a Gabriel del Barco, existe no actual Museu do Hospital, nas Caldas da Rainha, um painel de azulejos que, quando foi produzido e colocado, em 1667-1668, se destinava a informar os cozinheiros do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo da quantidade de carneiro que seria preciso cozinhar diariamente para servir os doentes internados:


Trata-se de uma tabela com 4 colunas, cada uma delas subdividida em duas. À esquerda para o número de doentes, à direita para a respectiva quantidade de carneiro.
Observa-se que o número máximo de doentes é 184 e conclui-se que a quantidade a cozinhar para cada um era de 3 / 4 de arrátel:


O arrátel, desde o tempo de D. Manuel (1469 – 1521), equivalia a 0, 459 quilogramas actuais.

Gabriel del Barco, nasceu em Espanha em 1649 e trabalhou em Portugal a partir de 1669, tendo pintado tectos e depois azulejos, sendo considerado precursor do chamado Ciclo dos Mestres (entre fins do século XVII e inícios do século XVIII).

Fontes: sítios do Museu do Hospital (Caldas da Rainha), do Grupo Azulejos de Portugal (Facebook) e da Wikipédia

Fotografias: colocadas por Carlos Oliveira Costa no grupo do Facebook «Azulejos de Portugal», tendo o respectivo texto o título TÁBUA DO ALMOXARIFE PARA A CONTA DO CARNEIRO

terça-feira, 17 de setembro de 2019

[0190] Um exemplo simples de aplicação da Geometria na Arqueologia


Há já muito tempo apresentei aos meus alunos a possibilidade de a geometria se poder aplicar à determinação do centro de uma peça fabricada num torno e que, durante trabalhos arqueológicos, é encontrada mais ou menos danificada.
Essa peça poderia, por exemplo, ser a seguinte:


Tal como é descrita no catálogo da exposição que a apresentou no Museu Gulbenkian, em 1987, trata-se de uma tigela do século XI, procedente das escavações feitas na Alcáçova do Castelo de Mértola, e está decorada centralmente por uma cena de caça em que um corso, ou gazela, é simultaneamente atacado por um galgo e um falcão.
Depois de recuperada, ela foi representada através de um desenho que lhe salientou os aspectos arqueologicamente relevantes. Foi este o desenho arqueológico que a representou:


Onde terá sido o centro em torno do qual a peça rodou quando estava a ser fabricada?
Ou, perguntando de outro modo: qual é o raio da circunferência que o desenhador traçou e através da qual verificou que a peça era circular?
Era aqui que avançava o contributo da geometria, protegida por alguma ingenuidade, pois eu não tinha a certeza de ser assim que os desenhadores procediam, traçando duas cordas, não paralelas, com os seus extremos apoiados no perímetro do desenho (traços vermelhos a cheio), e depois as respectivas mediatrizes (traços vermelhos a tracejado), que se interceptam no centro de circunferência:



Tive há dias a possibilidade de confirmar, aliviado, que de facto o desenho arqueológico se socorre deste procedimento. Mas, disse-me o arqueólogo que mo confirmou, o Jorge Raposo, há outros métodos para determinar o raio desta circunferência, o que é necessário tanto para o desenho como para a descrição rigorosa da peça, descrição que, mais tarde, é estudada sob o ponto de vista estatístico (de modo a comparar cada peça com muitas outras peças).
Um desses métodos é o uso de um escantilhão, onde estão desenhados arcos de circunferências com muitos raios. E um outro é desenhar uma corda e a respectica flecha, medir ambas e calcular o raio através de uma fórmula – se introduzirmos esta numa folha de Excel, nem é preciso tratar do cálculo, o raio é dado automaticamente!

Fazendo um desenho da situação genérica em que este método se aplica, chega-se à conclusão de que é simples deduzir uma fórmula que o traduza, sendo até interessante desafiar os alunos a descobri-la (ou a uma das suas variantes): se a corda tiver o comprimento c e a respectiva flecha o comprimento f, …


… existe um ponto X no prolongamento da flecha (a preto tracejado) que será centro da circunferência:


O comprimento do raio da circunferência, r, é igual a x + f.
E, como o triângulo figurado é rectângulo, pode escrever-se (c/2)2 + x2 = r2.
Substituindo x por r – f e resolvendo a equação chega-se a:

r = (c2 + 4f2) : 8f.

Ou, preferindo expressar o diâmetro da peça, a

d = (c2 + 4f2) : 4f.

Fonte das duas primeiras imagens: catálogo com textos de Torres (1987; capa e objecto 79)

terça-feira, 10 de setembro de 2019

[0189] Lembrar, registar e sistematizar as memórias de uma comunidade: o exemplo das favelas da Grande Tijuca


A Grande Tijuca é uma das regiões administrativas do Rio de Janeiro, situando-se nela diversos bairros e várias favelas.
Visando desenvolver políticas públicas inclusivas nesta região, algumas instituições estatais e organizações civis promoveram aí projectos de intervenção social e urbana, tendo um deles despertado o interesse dos moradores para a história local. Foi neste contexto que três moradoras nas favelas, Mauriléa Januário Ribeiro, Ruth Pereira Barros e Maria Aparecida Coutinho, conceberam o projeto Condutores(as) de Memória, com o objectivo de “resgatar, registrar e sistematizar a memória das comunidades da Grande Tijuca, permitindo que moradores e moradoras dessa região conhecessem a história da ocupação e luta que garantiu o direito à moradia nessas áreas. Nesse sentido, o projeto objetivava não só a eliminação do estigma atribuído ao espaço da favela, mas também sua afirmação como parte da cidade.”



O primeiro passo foi dado na favela do Borel, através de uma “oficina de memória” intitulada Recordando a História, onde foram registados depoimentos e recuperadas fotografias e documentos na posse dos moradores mais velhos.
Seguiu-se uma segunda oficina, Buscando a História, “reunindo, dessa vez, jovens da comunidade. Para despertar-lhes o interesse pela história local, recorreram a diferentes linguagens e fontes, introduzindo-os inicialmente à história do desenvolvimento urbano da cidade como um todo, até chegarem às suas próprias comunidades. Assim, além dos depoimentos orais, também utilizaram músicas, jornais e fotografias. O resultado dessa oficina foi a elaboração conjunta de um roteiro de entrevistas que seriam realizadas por tais jovens com moradores(as) mais antigos(as), a fim de permitir uma importante troca e interação social envolvendo jovens e pessoas idosas e reforçar a sociabilidade local.”
Na terceira oficina, Vivências Passadas, “foram recuperadas, pelas lembranças dos(as) próprios(as) moradores(as), as condições socioeconômicas da época de ocupação da favela, com destaque para a questão ambiental e a produção de lixo domiciliar.”
E na quarta, Construindo a História, em que participaram jovens e “moradores(as) mais antigos(as), particularmente aqueles(as) interessados(as) em dar continuidade ao trabalho conjunto”, foram “organizados pequenos grupos de trabalho que ficaram responsáveis pelo planejamento das atividades e estratégias para a realização das próximas etapas do projeto”, assim juntando as duas pontas da mesma realidade: “os(as) moradores(as) mais antigos(as), que, com o passar do tempo e as mudanças ocorridas, sentem-se, muitas vezes, perdendo suas referências e seu espaço tanto físico como subjetivo dentro das comunidades; e os(as) jovens, que, embora não tenham acompanhado muitas das lutas que construíram suas comunidades, atuarão de forma decisiva oferecendo respostas aos desafios futuros.”

Surgiu depois a ideia de organizar um pequeno jornal, “um informativo que relatasse a experiência do projeto e os resultados das oficinas realizadas em cada comunidade, reunindo histórias, eventos e datas marcantes para a história local (…).” “Depois de finalizado, esse informativo passou a ser distribuído em todas as comunidades, transformando-se em importante instrumento de divulgação e contribuindo para dar visibilidade à iniciativa do Condutores(as) de Memória. Ao longo do desenvolvimento do projeto, foram produzidos cinco informativos (Borel, Chácara do Céu, Morro do Andaraí, Salgueiro e Formiga) e distribuídos um total de 6 mil exemplares em eventos comunitários das favelas onde foram realizadas as oficinas e em palestras dadas em escolas, ONGs e universidades.”

Outra etapa foi a realização de um vídeo com o registo da “experiência do projeto nas duas primeiras comunidades onde foi desenvolvido, Borel e Chácara do Céu. O vídeo reuniu depoimentos de moradores(as) antigos(as) dessas comunidades, que relembraram histórias relacionadas à ocupação da área, reivindicações por água e luz, além de «casos» e histórias pitorescas sobre o dia-a-dia da comunidade. Contou também com a participação dos(as) jovens moradores(as) da comunidade, que falaram sobre a experiência das oficinas de memória e expressaram suas expectativas para o futuro. Intitulado Condutores(as) de Memória, o vídeo passou a funcionar como um instrumento de dinamização das outras oficinas realizadas, servindo de ponto de partida para o trabalho de reconstrução da história de cada comunidade. Além disso, outro desdobramento das oficinas foi a participação das educadoras responsáveis pelo projeto em vários eventos comunitários, além da participação em programas de rádios comunitárias. Dessa forma, a partir das oficinas, a equipe foi desenvolvendo novas formas de interação com a comunidade, inserindo a discussão sobre a importância da memória local em outros espaços coletivos.”

“Em 2002, após consolidar o trabalho das oficinas de memória nas comunidades do Borel, da Chácara do Céu e do Morro do Andaraí, o projeto Condutores(as) de Memória partiu para a rede pública de ensino. O objetivo desse trabalho nas escolas públicas e comunitárias da região era levar a discussão sobre a memória das favelas da Grande Tijuca para o espaço de construção do saber formal, buscando estabelecer uma relação entre o trabalho realizado nas comunidades por meio das oficinas e aquele desenvolvido por professores e professoras com crianças e adolescentes no espaço escolar.”
“Os informativos elaborados pelas educadoras sobre cada comunidade já trabalhada e o vídeo realizado nas comunidades do Borel e da Chácara do Céu serviram de ponto de partida para que os(as) próprios(as) professores(as) fizessem o trabalho com os(as) alunos(as). A partir daí, a metodologia utilizada ficou a critério de cada estabelecimento de ensino. Algumas escolas organizaram debates com as responsáveis pelo projeto, outras realizaram dinâmicas com os(as) alunos(as) e outras ainda inseriram o tema da memória local no calendário escolar. Também houve aquelas que convidaram as avós dos(as) alunos(as) para uma tarde de conversas sobre as histórias da comunidade, valorizando, desse modo, a cultura local. Essa foi uma importante etapa de desenvolvimento do projeto, já que o processo de trabalho sobre o tema da memória com alunos e alunas das escolas públicas possibilitou a construção de um outro olhar sobre a história de suas comunidades de origem, para além da «história oficial» encontrada nos livros didáticos.”
“Acima de tudo, a entrada do projeto Condutores(as) de Memória nas escolas contribuiu para desfazer o preconceito e diminuir a distância existente entre «favela» e «asfalto», fornecendo aos(às) professores(as), geralmente oriundos(as) da classe média, informações que permitem compreender a realidade social dos alunos e das alunas, em sua maioria residentes em favelas e bairros populares.”

Para elaborar o conhecimento adquirido a partir das oficinas de memória e de todas as outras atividades realizadas ao longo do desenvolvimento do projecto, as equipas “participaram de uma primeira etapa de capacitação por meio do curso Memórias Urbanas, ministrado pelas antropólogas Neiva Vieira da Cunha e Anamaria Fagundes. O curso foi realizado na Escola Oga Mitá, na Tijuca, de junho a agosto de 2004. Uma segunda capacitação das educadoras do projeto foi o curso Memória, Espaço e Cultura Material, ministrado pelo professor Marcelo Abreu, também na Escola Oga Mitá, em maio de 2005. Esses dois cursos reuniram não só as educadoras do projeto, mas também outros(as) gestores(as) sociais, lideranças e outros(as) moradores(as) das comunidades da Grande Tijuca, e isso permitiu qualificar melhor o grupo para a execução de suas atividades. O objetivo dessas capacitações era fornecer elementos teórico-metodológicos, além de uma perspectiva histórica e socioantropológica, que pudessem auxiliar o trabalho de levantamento e análise de dados coletados.”

Fonte bibliográfica: Cunha, organizadora (2006; pp. 11-17, 47-48 e 53)