segunda-feira, 31 de julho de 2023

[0323] Quatro recensões de livros sobre a escola e a educação, por Paulo Guinote

 


Estou habituado a ser acusado de ser pessimista, de só ver o lado menos positivo das coisas. De não ver os evidentes “conseguimentos”, nomeadamente na área da Educação, e de estar sempre pronto e com teclado ligeiro para apontar o que correu menos pior ou francamente mal. Há mesmo quem se vitimize com algumas críticas, por muito que eu as fundamente de forma factual, não me refugiando apenas no domínio da “opinião”.
Discordo interiormente, porque considero que o que a nossa Escola Pública conseguiu fazer nas últimas décadas do século XX foi excepcional em termos de recuperação de um atraso educacional estrutural do país, não negando que mais algumas coisas positivas aconteceram nos últimos vinte anos. Mas não me importo de, para o exterior, ficar essa imagem por uma razão que acho simples e lógica… quem vê o copo meio vazio tem mais urgência em encher o que falta do que quem o vê meio cheio e, de certa forma, descansa e encara com maior calma o que há ainda por fazer.
Por outro lado, o pessimista alegra-se com pouco, pois espera quase sempre o pior, mesmo se não pula de contentamento, de nenúfar em nenúfar, todos os dias, como se vivesse no melhor dos lagos floridos, onde nenhum perigo espreita.
Existem formas diferentes de olhar para a mesma realidade, até de interpretar indicadores aparentemente objectivos de modos diversos e mesmos conflituantes. Compreendo isso, assim como o domínio mais subjectivo das “intenções” com que as coisas são ditas, escritas ou mesmo legisladas, mas como nos diz a sabedoria popular de boas intenções está o mais quente dos infernos repleto. Claro que as intenções são sempre as melhores, mesmo quando não o são verdadeiramente, incluindo certas medidas apresentadas como de uma justiça social e superioridade moral sem contestação possível.
A este propósito gostava de fazer aqui uma espécie de apresentação crítica de um conjunto de livros que, nos últimos meses, foram publicados por gente que vive ou viveu por “dentro” o quotidiano escolar há mais ou menos tempo, mas em todos os casos com experiência de várias décadas. Em comum têm quase todos um tom de crónica dorida e a publicação na periferia dos grandes grupos editoriais com negócios avultados com o Ministério da Educação. Em comum revelam a necessidade de exorcizar dores acumuladas, não inventadas, não ficcionadas para atingir qualquer governante, e que conduziram a momentos de perplexidade, desânimo, mas também de reflexão e resistência.

Não é por acaso que um desses livros tem como título, Resistir – Crónicas de uma Tragédia Educativa (Artelogy, 2023), de Fernando Alva, pseudónimo de professor com 43 anos de idade e 21 de profissão, actualmente docente da Educação Especial. O mais jovem desta amostra, talvez seja o que tem o olhar mais duro sobre o que o cerca, mas ainda e sempre com vontade de resistir contra as ameaças e demagogias de quem muito fala em Educação Pública, mas apenas de forma instrumental. As suas palavras podiam ser as minhas, que sou já de uma outra geração.
“Apesar de todos os seus defeitos, a escola pública portuguesa continua a ser um dos raros faróis da sociedade, pelo qual vale a pena lutar. Grande parte do que somos, mas também do que não nos deixaram ser, é aquela que se lhe deve. Por isso, é por tanto amá-la que o autor destas palavras passou grande parte da vida a criticá-la, sonhando-a para além da sua mesquinha existência quotidiana.” (p. 9)

Não é por acaso que Victor Correia publicou um volume com o título Injustiças e Abusos no Ensino em Portugal (Mosaico, 2023). Com 60 anos, 30 de carreira, professor de Filosofia, o seu retrato, que se estende do Ensino Básico ao Superior, é igualmente dorido e amargurado. Na introdução pode ler-se que:
“Actualmente, a importância da Escola e do papel do professor diminuíram muito. Com o aumento da escolaridade obrigatória e a massificação do ensino, o professor tornou-se quase um mero funcionário para guardar alunos dentro de um edifício, em vez de ser um expoente de cultura e conhecimentos, que muitos preferem ir buscar à Internet (..) e muita gente confunde transmissão com ensino, confunde conhecimentos com mera informação, confunde cultura geral com sabedoria, confunde informação com formação” (p. 5)
E esta situação não melhora quando existe um claro divórcio entre quem assume o papel de decisor e quem está no terreno e Victor Correia aponta uma das razões para isso: a origem da generalidade de quem ocupa o cargo de ministr@ é o ensino universitário, tendo uma formação demasiado teórica e quase nunca formação pedagógica (p. 6).

Já Pedro Esteves, 77 anos, professor aposentado, escolheu como tema O conflito sobre as escolas – Hierarquização versus Participação. Testemunho de um Professor (Ulmeiro, 2023), revelando desde logo uma das fracturas expostas no sistema de ensino público, condicionado nas últimas duas décadas pela lógica de dominação hierárquica na gestão e escolar e pela imposição de uma obediência acrítica a formulações únicas e inquestionáveis que tomam a escola como uma empresa gerida à moda de um neoliberalismo que entrou em força na administração educativa.
Já fora do delírio quotidiano, Pedro Esteves consegue uma abordagem mais analítica da evolução da Educação Pública nas últimas décadas, das tendências que marcaram a passagem de uma lógica “horizontal”, democrática, efectivamente colaborativa, para um paradigma (termo muito usado na novilíngua a que Marçal Grilo chamou “eduquesa”) em que predomina o modelo “vertical”, autocrático e em que a colaboração se define pela anuência à implementação do que é imposto a partir do topo das “lideranças”, nacionais ou locais. Na síntese do debate sobre a apresentação da obra, o autor apresenta um depoimento com muitos pontos em comum com o de Fernando Alva, 34 anos mais novo:
“Trata-se de uma história de amor à escola, nos caminhos sinuosos da sua dignificação; mas também se trata de um percurso crítico e de resposta.
Proporciona uma visão de conjunto sobre as políticas educativas e sobre o que se passou nas escolas nos últimos 50 anos. Foca-se, sobretudo, a organização das escolas, pois esta decide a arte de ensinar dos professores. Permite compreender o «mal-estar» subjacente à actual luta dos professores (a qual só pode ser compreendida a partir dos seus testemunhos).”

No caso de José Calçada, também 77 anos, formado em História, professor com um longo trajecto como inspector pedagógico, o livro publicado (O Herói e doze coisas mais. Primeiro Capítulo, 2023) é mais diversificado nos temas e no registo usado, mas alguns capítulos devolvem-nos um quotidiano bem revelador do clima vivido na Educação nas primeiras décadas do século XXI. Inspector até 2009, descreve-nos como as políticas seguidas se definem e alteram de acordo com os humores e interesses particulares dos governantes. Do capítulo “O Desafio da qualidade Educativa”, extraio o excerto, de uma intervenção pública feita em 2016, sobre a forma como as coisas são feitas, nem interessando qual o governo ou o ministro específico, porque a pulsão para usar os organismos do Estado como aparelhos de imposição ideológica é transversal e marca a História dos últimos 20 anos da nossa Educação Pública.
“E a pergunta que agora se deve colocar é: porque é que, depois de percorrermos cerca de 800 escolas com a aplicação do Programa de Avaliação Integrada, este trabalho foi subitamente suspenso, de um momento para o outro. Bem, há muitas respostas para esta pergunta, e nenhuma delas é de natureza pedagógica, nenhuma delas em rigor tem a ver com as escolas ou a Inspecção – todas elas resultaram de uma opção política definida.” (p. 89)
José Calçada continua explicando que muitos dos “pontos fracos” que os relatórios apresentavam se deviam, em regra, a factores ou organismos exteriores às escolas, pelo que o governante em causa terá considerado que isso era uma espécie de rebelião contra a sua forma de encarar as coisas… “estou à espera que eles venham de lá e nos digam que os professores são culpados de tudo e mais alguma coisa, e os gajos vêm dizer que afinal não é assim?” (p. 90)

Será que estes docentes, com trajectos profissionais muito diversos, de diferentes gerações, estão todos errados, partilhando de uma qualquer conspiração global contra uma Educação Maravilhosa que recusam reconhecer? Acaso não se tratará do contrário, pois, por diversas razões, nada têm a ganhar com tal diagnóstico? Estarão todos equivocados, estando certos aqueles que, tendo nas suas mãos as redes do poder, se fecham a olhares divergentes e recusam a aceitação do pensamento crítico que anunciam promover nos alunos? Olhem que não, olhem que não…

 

Fonte: opinião de Guinote publicada no «Jornal de Letras» (2023)

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