Numa série de entrevistas publicadas em livro em 2020, Luís Miguel Cintra (nascido em 1949) reflecte sobre diversos aspectos da profissão de actor ao longo de mais de meio século, em Portugal.
Eis alguns excertos dessas entrevistas (organizados a meu modo):
Ontem e hoje
Antes do 25 de Abril, “A relação com o material, com o que se queria dizer e com o que se queria fazer, era uma relação experimental no melhor sentido da palavra. Nós não tínhamos certezas, arriscávamos! Era uma aposta numa coisa diferente. E é disso que tenho muitas saudades … é isso que, acho eu, está hoje completamente banido das artes em Portugal. […] Atualmente sinto que é como se fosse proibido fazer isso, e que se fazes isso arrisca-te a não comer, a não ter dinheiro para pagar nada.” (p. 64)
A “profissionalização do próprio ofício” de actor decorre de estar “tudo muito mais organizado. Há os agentes, há as regras de subsídio - que no fundo são contestadas, não na sua essência, mas nos seus aspectos secundários … Portanto, implicitamente, toda a gente está a aceitar que existe uma estruturação da sociedade. Mal de nós se dissermos mal da sociedade actual, que foi a conquista do 25 de Abril … - muito mais pessoas têm acesso a muito mais coisas, e por aí adiante … As pessoas têm medo de não aproveitar as oportunidades, e de, se não aproveitarem as oportunidades, serem completamente esquecidas.” (p. 69) “Estão constantemente a aparecer atores que depois desaparecem. Atores e mais atores …, que se não se portarem bem desaparecem imediatamente. Têm, pois, toda a conveniência em portar-se bem! E «portar-se bem» o que é que significa? Significa representar como os outros querem que ele represente.” (p. 70)
“Tenho a impressão que hoje em dia a ligação das pessoas à própria arte que praticam, ao próprio ofício, não é tão essencial como era para nós. […] Mais importante do que ter uma ideia qualquer é curtirem. Não gostam de sofrer.” (p. 70)
Antes do 25 de Abril estávamos “empenhados numa transformação do mundo, em descobrir qual é a maneira de ser feliz, e de sofrer, se for preciso, para que as pessoas todas sejam felizes”, mas hoje está-se numa “época mais superficial”, e “não me sinto bem nela.” (p. 91)
Aprender e fazer
“A melhor maneira de aprender é pela experiência. Mas agora sinto que há uma espécie de obsessão pela técnica. Aparece uma quantidade de pessoas convencidas que já têm técnica e que portanto sabem fazer tudo. Na área da representação também.” (p. 240)
Quando se está numa situação em que o grupo não sabe o que se fará a seguir, surge “uma espécie de risco, ou de invenção em conjunto. E eu acho que isso é muito importante para que haja um sentido novo … […]. Porque queremos dizer coisas aos outros, e não podemos viver sem os outros … Para mim isso é fundamental. […] Porque se for o que os outros já sabem, não faz avançar ninguém.” (p. 67)
No Teatro, “As pessoas vão-se influenciando umas às outras. O que é importante é que sejam elas próprias, como gostam de ser, e que confiem nos outros. É um espírito lúdico! Não pode ser como quem vai de repente prestar provas num exame e tem de fazer o melhor possível porque está a prestar provas.” (p. 54)
No Cinema, os actores “Precisam é de fazer aquilo que os liga a si próprios, aquilo que os leva a envolverem-se pessoalmente.” (p. 161)
Estética, ética e comunicação
“Há uma espécie de objetivo [ou “moral estética”] no cinema deles [Hitchcock; Tati; Oliveira; Dreyer], que é o de representar o mundo inteiro. E cada filme é uma espécie de alegoria ou de representação de toda a vida do mundo.” (p. 89)
Há outros filmes que são “uma maneira de veicular uma posição ética, política, perante a vida, mas já sem a ambição de representar o mundo inteiro. Nesses [filmes, como são quase todo os do Rossellini], o que se trata é de representar-se a si próprio e os nossos iguais.” (p. 90)
Quando, num filme, “há uma relação vital, verdadeira, com o que se está a fazer, isso aparece sempre com uma qualidade interessante. E é isso que a torna num instrumento de comunicação. É comunicação! Tudo o que se faz, as obras de arte todas! E existe a tendência para se achar que são coisas de artistas, «eles é que sabem» … Eles não sabem, não! Eles estão a falar connosco!” (p. 196)
Actor e espectador
No início da Cornucópia a companhia optou pelo seguinte princípio: “o ator não tem de que chegar ao público, o público é que tem que chegar ao ator. Não é o ator que representa a personagem, é a personagem que representa o ator. O que, no fundo, é a ideia de destruir a passividade do espectador perante o trabalho do ator. Porque o espectador é obrigado a fazer um trabalho de análise sobre o que o ator está a fazer, que implica, por outro lado, uma relação que não é autoritária.” (p. 105)
Fonte: livro com entrevistas a Cintra (2020)
Fotografia: obtida através de uma pesquisa via Google, estando associada a uma outra entrevista de Cintra, em que este afirma “Não me apercebi de que estava a envelhecer”
Gostei muito das ideias desta entrevista.
ResponderEliminarFizeram-me pensar na profissão de professor (aprender pela experiência) e também na técnica.
No caso do professor que ensina matemática, um aspeto da técnica será
o saber matemático?
Qual poderá ser a relação da técnica com o aprender pela experiência?
O que me ficou de «essencial» na entrevista do Cintra é mais ou me nos isto: ele e outros envolveram-se no teatro porque «tinham coisas a dizer»; e uma grande parte da sua aprendizagem foi feita em grupo, experimentalmente.
ResponderEliminarMas ele admira em particular as escolhas de alguns indivíduos (não forçosamente actores), e também a capacidade que tiveram para o expressar (caso dos filmes que «abarcam o mundo todo» e dos que têm uma «dimensão ética / política»).
E não me parece que o Cintra esteja contra a «técnica», mas sim contra a castração que a fundamentação exclusiva na técnica causa, o que estará associado a qualquer coisa da época actual que pretende amestrar actores / realizadores / produtores.
De notar, ainda, que a Cornucópia, terá criado as suas próprias «técnicas»!
A comparar com os professores, diria: que é bom que a formação inicial proporcione «técnicas» (Matemática; didácticas; …), mas que também proporcione um suporte mais geral (Filosofia da Educação; História da Pedagogia; …); e que é bom ter em conta a «vocação» («ter coisas a dizer») e a capacidade de «experimentação» (individual, em grupo), pois é aí que as professores se afirmam e as coisas evoluem.
E a experimentação não melhorará as técnicas? Desenvolve-as certamente. E não proporcionará a criação ou surgimento de novas técnicas?
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