sábado, 29 de abril de 2017

[0037] O manuscrito «Libros de Ajedrez, Dados y Tablas» (século XIII)

O único original conhecido do «Libro de los juegos» (designação pela qual este manuscrito é habitualmente referido) encontra-se na Biblioteca do Mosteiro do Escorial, perto de Madrid, sendo composto por 98 páginas, encadernadas em pele de ovelha, com 42 x 30 cm, que incluem 150 ilustrações a cores.
Este manuscrito foi encomendado por Afonso X, o Sábio, rei de Castela, Leão e Galiza entre 1252 e 1284, sendo nele defendido (segundo o catálogo da exposição «Pedras que Jogam») que “Deus quis que os Homens fossem naturalmente alegres. Alegria que os levou a criar actividades e jogos para que pudessem sobreviver aos trabalhos e aborrecimentos do dia a dia.”

Um dos jogos nele referido é o Alquerque de 3, hoje conhecido por Jogo do Galo:


E um outro é o Alquerque de 9, já conhecido na Grécia Antiga, tendo plausivelmente sido através do comércio fenício que ele se difundiu pelo Mediterrâneo, de onde se espalhou por toda a Europa, tendo hoje os nomes de Mill ou Morris (no Reino Unido), Mérelles (em França), Morels (em Espanha), Mühle (na Alemanha), Molle (na Noruega) e Moinho (em Portugal):


Se o «Libro de los juegos» foi fundador da reflexão erudita sobre os jogos, é importante ter em atenção a via popular pela qual estes se difundiram e se praticaram. A exposição «Pedras que Jogam» deu-nos desta via o interessante testemunho dos tabuleiros gravados em pedra e utilizados publicamente durante centenas de anos, de que os seguintes são exemplos:

Tabuleiro no claustro da Igreja de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães
Tabuleiro romano, encontrado nas escavações da cidade de Conímbriga

Fontes: Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa & Museu da Cidade da Câmara Municipal de Lisboa, para a citação e outras informações (2004; pp. 2 e 3) e para as imagens dos jogos em pedra (pp. 51 e 92); http://games.rengeekcentral.com/ (acedido em 10 de Abril de 2016), para as imagens do «Libro de los Juegos»

domingo, 23 de abril de 2017

[0036] «Uma História do Mundo em 100 Objetos»

O British Museum foi desafiado pela BBC a escolher 100 objectos da sua colecção, que tivessem origem no mundo inteiro e que abrangessem a história humana, desde os seus começos, há dois milhões de anos, até ao presente. E, sobre cada um deles, realizar uma palestra radiofónica.
O que aconteceu ao longo de 2010, durante vinte semanas, correspondendo a cada uma cinco palestras.
E depois foi publicado o correspondente livro.

Nesse livro, a primeira das vinte partes foi intitulada “Fazendo de nós humanos (2 000 000 – 9 000 a.C.)” e o seu quarto objecto designado por “Renas nadadoras”:


Estas renas foram esculpidas numa presa de mamute por volta de 11 mil anos a.C., nos finais da Idade do Gelo. A peça tem cerca 20 centímetros de comprimento e foi encontrada na margem de um rio, num abrigo de rocha em Montastruc, em França. Por ser muito delicada, está guardada numa caixa de ar climatizado.

Neil MacGregor, director do British Museum, comentou assim o contexto do seu surgimento:

Há mais ou menos cinquenta mil anos, algo notável parece ter acontecido ao cérebro humano. Pelo mundo fora, os humanos começaram a criar maravilhosos padrões decorativos, a fazer joalharia para enfeitar o corpo e a produzir representações de animais com os quais partilhavam o planeta. Faziam objetos destinados menos à mudança física do mundo do que a explorar a ordem e os padrões que nele podem ser observados. Em resumo, faziam arte.

Fonte bibliográfica: MacGregor (2014; pp. 43-47)

terça-feira, 18 de abril de 2017

[0035] Um painel de azulejos que é possível ver no Castelo de S. Jorge

Os seguintes azulejos de revestimento, executados segunda a técnica de aresta, são polícromos, têm motivos vegetalistas, geométricos, foram importados do Sul de Espanha na 1ª metade do século XVI e estão agora expostos na Exposição Permanente que está patente no Castelo de S. Jorge (Lisboa):

Fotografia: Eva Maria Blum

Eles são belos, só por si, e também são belos sob o ponto de vista da interpretação matemática que pode ser hoje usada para compreender a complexidade da sua concepção.

Qualquer azulejo de padrão (ver a definição de Eduardo Néry na mensagem «0011») pode ser interpretado como um padrão que sofre sucessivas translações (verticais e horizontais). Mas apenas num caso essa é a sua única propriedade matemática (ver um exemplo na mensagem «0016»).
Há outros casos em que o azulejo de padrão tem mais uma, e apenas mais uma outra propriedade matemática: ou só rotações, ou só simetrias axiais (ver exemplo na mensagem «0011»).

Neste painel de azulejos o padrão é constituído por um só azulejo (há exemplos em que o é por um grupo de azulejos):


Tal como em todos os outros casos de azulejo de padrão, a translação (horizontal e vertical) deste padrão gera todo o painel. Mas neste surgem, acumuladas, também as rotações (quatro famílias de centros para meias voltas: os pontos centrais dos azulejos; os pontos em que dois vértices de azulejo se tocam; e os pontos médios em que duas arestas de azulejo se tocam, ou verticalmente, ou horizontalmente) e as simetrias axiais (duas famílias verticais e outras duas horizontais):


sábado, 15 de abril de 2017

[0034] Os desenhos na areia: cultura ou etnomatemática?

Paulus Gerdes (1952-2014), que já referi a propósito do conceito de etnomatemática (mensagem «0010»), descreveu num dos seus livros os «desenhos na areia» dos cokwe, um povo de caçadores que vive no nordeste de Angola, que também se dedica à agricultura e que é famoso pela sua arte.

Para que os jovens cokwe aprendam com a sabedoria dos mais velhos, estes traçam um sona na areia (assim são designados aqueles desenhos na língua local) e contam uma história. Uma dessas histórias (que toda a gente associará a uma outra da nossa cultura) é a seguinte:

O galo Kanga e o raposo Mukuza pretendiam a mesma mulher. Pediram-na em casamento ao pai dela, que exigiu de ambos pagamento adiantado. Eles concordaram prontamente.

De repente, correu o boato de que a prometida havia falecido. Kanga rompeu num choro inconsolável, enquanto Mukuza apenas lamentava ter perdido o pagamento adiantado. Então o pai, que de propósito tinha espalhado o boato para ver quem merecia a sua filha, entregou-a ao galo, que revelou ter bom coração.


Uma importante diferença entre uma «cultura» e as «etnociências» que ela pode encerrar, é que estas tendem a dividir a realidade em fatias, à semelhança do que acontece com as «ciências» na «civilização ocidental» (haverá então uma «etnociência» para cada «ciência»), enquanto que as «culturas» tendem a integrar diversos aspectos da realidade (a memória ética, os modelos interpretativos, …).

Sob um ponto de vista ocidental, este desenho tanto evoca a geometria (por exemplo, para o estudo das simetrias) como a topologia (por exemplo, para o estudo dos percursos numa cidade).

Referência bibliográfica: Gerdes (2013; p. 10)


terça-feira, 11 de abril de 2017

[0033] Adivinhar um número usando tabelas

A Magia:

O público que assiste a este truque escolhe um número natural, inferior ou igual ao mais alto número que figura num conjunto de cartões de que o mágico dispõe. Toda a gente sabe qual foi o número escolhido, excepto o mágico, que o pretende adivinhar.
O mágico mostra então os seus cartões com números ao público, um de cada vez. E é-lhe respondido se o número escolhido «figura» ou «não figura» em cada um dos cartões.

Se o número limite for o «63», são precisos 6 cartões, que são os seguintes:


Conhecendo o «sim ou não» do público sobre cada cartão, o mágico pode agora dizer qual foi o número escolhido …

A explicação:

Qualquer número natural pode ser escrito como soma de uma ou mais das seguintes parcelas:

20 + 21 + 22 + 23 + 24 + 25

ou

1 + 2 + 4 + 8 + 16 + 32 + …

Por exemplo, como escrever «37» desta forma?
Começa-se pela maior daquelas parcelas que cabe em «37»: é o «32».
Depois prossegue-se com a maior parcela que cabe no que sobra (37 – 32 = 5): é o «4».
E procede-se sempre assim até ao fim: neste caso basta adicionar a parcela «1».
Então, 37 = 32 + 4 + 1.

Há um cartão com os números que utilizam a parcela «1» (é aquele que tem o «1» em cima, à esquerda); outro para os que precisam da parcela «2» (é aquele que tem o «1» em cima, à esquerda); e assim sucessivamente.
O «37» figura então nos cartões dos números que têm em cima, à esquerda, o «1», o «4» e o «32».

O mágico apenas tem de adicionar os números que figuram em cima, à esquerda, dos cartões onde o público disser que o número escolhido figura.

Inspiração: Gardner (1991; pp. 109-110)


terça-feira, 4 de abril de 2017

[0032] As ferramentas analógicas e digitais na construção do nosso conhecimento

Existe uma tendência recente para reduzir as ferramentas educativas às «digitais», confundindo-se assim a realidade com a novidade.

No Museu Botânico da Universidade de Coimbra, um museu ainda tradicional, podemos compreender porque foram as ferramentas analógicas tão poderosas durante tanto tempo:

Aveia comum (Avena sativa)














Amendoim (Arachis hipogaea)



































E no Museu Monográfico de Conímbriga podemos compreender como actualmente se combina a eloquência das ferramentas analógicas com a irreverência das digitais:




Indo um pouco mais longe: será que, para além destas ferramentas, alguma vez poderemos prescindir da observação directa se quisermos compreender as coisas e as pessoas que nos rodeiam?

Fotografias: Eva Maria Blum

sábado, 1 de abril de 2017

[0031] O papel central do Azulejador

A propósito da mensagem «0029»:

Houve uma época em que o Azulejador (ou Ladrilhador) era o principal responsável pela execução das obras de azulejo.

Segundo a investigadora Rosário Salema de Carvalho, o mais antigo regulamento conhecido desta profissão em Portugal data de 1608, tendo a sua capa o seguinte aspecto:

Regimento do Ofício de Ladrilhadores (1608)

E, acrescenta, há provas de que durante o período barroco (1675 – 1750) a cadeia operatória entre a «encomenda» e a «aplicação» do azulejo seria, frequentemente, a seguinte (a interpretação é minha):


Uma das preocupações do Azulejador, continua Rosário Salema de Carvalho, visava garantir a localização de cada azulejo no respectivo painel, para que o pintor os pintasse já nessa posição. Para tal, o Azulejador marcava no verso (ou «tardoz») dos azulejos a letra e o número correspondentes às suas posições (como num sistema de coordenadas matemáticas), acrescentando um sinal identificador do painel a que pertenciam.
Em 1985 o pintor Manuel Cargaleiro, pretendendo homenagear os Azulejadores, executou um painel de azulejos em que representou esta sua discreta mas central tarefa:

Composição de tardoz

Questões:

Haveria outras profissões que utilizavam sistemas de representação semelhantes? Desde quando o fariam?
E que inspiração mútua terá ocorrido entre esses sistemas de representação e o sistema de coordenadas matemáticas proposto por René Descartes (1596 – 1650) no seu «Discurso do Método» (1637)?

Curiosidades:

O sistema de notação algébrico usado no Xadrez baseia-se num sistema de coordenadas semelhante ao dos Azulejadores:


O mesmo acontece com o sistema usado para localizar ruas no mapa de uma cidade e com o sistema de notação usado no jogo da «Batalha Naval».

Apoio bibliográfico («pdf») para o texto e para a 1ª e a 3ª imagens: Carvalho (2015)