quarta-feira, 28 de junho de 2017

[0052] As três histórias contadas por uma pedra

A Pedra de Roseta, o 33º objecto descrito por Neil MacGregor em «Uma História do Mundo em 100 Objetos», provém de al-Rashid, no Egipto.
Trata-se de uma pedra de granito, partida. Foi gravada em 196 a.C. com três textos: um em grego clássico (usada pelos administradores públicos), outro em demótico (usada então pelo povo) e o último em hieróglifos (usados pelos sacerdotes).
Depois da morte de Alexandre, o Grande, um dos seus generais, Ptolomeu, assenhoreou-se do poder em Alexandria (a nova capital que Alexandre fundou para o Egipto, depois de o ter conquistado na segunda metade do século IV a.C.) transformando o Egipto no primeiro império europeu em África.

A dinastia dos Ptolomeus durou até Cléopatra VII e António terem sido derrotados pelo romano Augusto (na segunda metade do século I a.C.).


Segundo MacGregor, esta pedra conta-nos três histórias: a dos Ptolomeus (que, a certa altura, para sobreviver, foram obrigados a usar outras línguas para além do grego); a da competição entre franceses e ingleses (a pedra foi encontrada pelos soldados de Napoleão quando este invadiu o Egipto com a intenção de cortar a rota inglesa para a Índia); e a da decifração dos hieróglifos (pois os três textos são traduções uns dos outros).

Fonte bibliográfica: MacGregor (2014; pp. 211-216)

sábado, 24 de junho de 2017

[0051] Análise indutiva do truque de Kardini

Voltando ao desafio da mensagem «47» (ao qual não houve a coragem de uma simples resposta …).

Pensando indutivamente (isto é, dos exemplos para a visão geral):
(1º) os números de dois dígitos vão de 10 a 99 (percebe-se que Kardini se refere apenas aos números naturais);
(2º) se escolhermos vários destes números e procedermos às respectivas subtracções de «dígitos», chega-se sempre um dos seguintes números: 9, 18, 27, 36, 45, 54, 63, 72 e 81;

(3º) observando qualquer das tabelas apresentadas por Kardini (a seguir figura a segunda) estes números estão sempre associados ao mesmo sinal (neste caso o f); procedendo assim … o mágico acerta sempre!


Podíamos ficar, espantados, por aqui.
Interessante (pelo menos para alguns) é perceber porquê as subtrações de Kardini chegam sempre a um daqueles números e que números são esses.
Quem tentar compreendê-lo está a entrar na … Matemática!

Aqui vai:
(1º) um número de dois dígitos pode ser escrito assim: ab (sendo a maior que 0);
(2º) como nós sabemos (todos escrevemos números destes há muitos anos), escrever ab é o mesmo que escrever 10 vezes o dígito a mais o dígito b (exemplo: 74 = 70 x 7 + 4);
(3º) subtrair a 10 a + b os próprios dígitos é igual a 10 a + b – a – b;
(4º) simplificando (o b corta com o – b), resulta 10 a – a = 9 a, o que nos diz que esta subtração é sempre um múltiplo natural de 9 (ou seja, um dos números que Kardini associou ao seu sinal mágico: 9, 18, 27, 36, 45, 54, 63, 72 e 81).

Já agora, dois pormenores psicológicos (muito importantes em qualquer magia): em cada tabela, que sinais associou Kardini aos outros números? e que modificou ele de tabela para tabela?

E também um pormenor matemático: em ambas as tabelas da mensagem «47» Kardini associou o seu sinal mágico ao 0, mas não ao 90; terá procedido bem?

quarta-feira, 21 de junho de 2017

[0050] Voltando às Torres de Hanói: uma estratégia e uma fórmula

Recordando o quebra-cabeças Torres de Hanói (mensagem nº 44):

·      O seu objectivo é: estando N discos encaixados numa das três colunas (a figura seguinte exemplifica-o para N = 3 discos) pretende-se encaixá-los noutra coluna, com o apoio da terceira;

·      E a única regra para deslocar os discos de uma coluna para outra coluna é: um disco não pode ser colocado sobre outro disco com diâmetro inferior.


Uma estratégia para resolver este quebra-cabeças (admitindo que o número de discos é tão grande quanto se quiser):


E assim sucessivamente …
Quantos movimentos são necessários para executar esta estratégia?
Sem o demonstrar, apenas para verificar (até N = 6):

Nº de discos (N):
1
2
3
4
5
6
Nº de movimentos (MN = 2N – 1):
1
3
7
15
31
63

sábado, 17 de junho de 2017

[0049] A música e a harmonia social, segundo Confúcio

Neil MacGregor, director do Museu Britânico, destacou assim, em «Uma História do Mundo em 100 Objetos», a grande tendência que se verificou entre 500 e 300 a.C.:

em todo o mundo, diferentes civilizações desenvolviam modelos de governo da sociedade que iam influenciar os milhares de anos seguintes. Enquanto Sócrates ensinava o povo de Atenas a discordar, na China, Confúcio propunha a sua filosofia política da harmonia, e os persas descobriam um modo de coexistência de vários povos no seu vasto império. Na América Central, os olmecas criaram sofisticados calendários, religião e artes que iriam marcar mais de um milénio a civilização centro-americana. No Norte da Europa não havia vilas ou cidades, Estados ou impérios, nem escrita ou moeda, mas os seus objetos mostram que, apesar de tudo, essas civilizações tinham uma visão sofisticada delas próprias e do seu lugar no mundo global.


O 30º objecto que MacGregor descreveu, um sino chinês de bronze do século V a. C., provém dessa época. A China vivia uma grande instabilidade social, como consequência da luta entre os feudos que procuravam obter uma posição de supremacia. E para fazer face a essa instabilidade, debatia-se vivamente como a sociedade ideal deveria ser, e Confúcio destacava-se entre os que participavam desse debate. “Diz-se – escreve MacGregor – que um dos seus mais célebres pensamentos era: «A música produz uma espécie de prazer sem o qual a natureza humana não pode passar.»” A música era, pois, para Confúcio, uma metáfora de uma sociedade harmoniosa.


Este sino tem o tamanho de uma barrica de cerveja e não é circular, é elíptico. Possuir um sino com esta dimensão e decorações era um sinal de poder, mas também poderia revelar o que o seu proprietário pensava da sociedade e do cosmos.

Os mais antigos sinos chineses têm 5 mil anos. Inicialmente possuíam um badalo, mais tarde abandonado a favor do batimento com um martelo. Este sino deve ter pertencido a conjunto de nove ou de catorze sinos, cada um de seu tamanho e produzindo dois tons diferentes, de acordo com o local onde era batido.
Na Europa, só foi possível fundir um sino com estas dimensões no final da Idade Média, um milénio e meio depois da fundição deste sino chinês.

Fontes bibliográficas: MacGregor (2014; pp. 169 e 193-197)

quarta-feira, 14 de junho de 2017

[0048] A terrível verdade da guerra

Os relevos de Lachish são o 21º objecto descrito em «Uma História do Mundo em 100 Objetos» por Neil MacGregor, director do Museu Britânico. Foram encontrados no palácio do rei Senaqueribe, em Nínive (perto da actual Mossul), tendo sido esculpidos entre 700 e 692 a. C.. Por essa altura o império assírio estendia-se desde o Irão ao Egipto, cobrindo quase todo o território a que hoje se chama Médio Oriente.
Lachish (actualmente Tell ed-Duweir) era então a segunda cidade do reino da Judeia, a seguir a Jerusalém, situada no ponto crucial onde o Mediterrâneo e o Egipto se ligavam à Mesopotâmia. Nos finais do século VIII a. C., Ezequias, o seu rei, rebelou-se contra os assírios. E Senaqueribe invadiu-lhe o reino, conquistando a cidade de Lachish.

Este painel, em baixo-relevo, tem cerca de 2,5 metros de altura e estaria situado a toda a volta de uma sala do palácio de Senaqueribe, em Nínive, provavelmente pintado a cores. Nele se conta, como num filme épico, a marcha do exército assírio, as lutas resultantes do cerco de Lachish, a sangrenta conquista da cidade, a fuga dos sobreviventes, a cidade em chamas, o desfile dos prisioneiros, Senaqueribe triunfante …


Consciente do persistente paralelismo histórico deste episódio, MacGregor pediu um testemunho a Lorde Ashdown, longamente experiente no custo humano da guerra, especialmente pelo seu trabalho nos Balcãs:

Vi campos de refugiados por todos os Balcãs e, francamente, nunca consegui evitar que as lágrimas me viessem aos olhos, porque o que via era a minha irmã, a minha mãe, a minha mulher e os meus filhos. Vi sérvios expulsos por bósnios, e bósnios expulsos por croatas, croatas expulsos por sérvios e por aí adiante. Vi ainda o mais infame de tudo, os refugiados ciganos, um grande campo de refugiados, talvez 40 a 50 mil, a cargo do meu exército, a NATO. E ficámos a olhar enquanto as suas casas eram queimadas e eles eram expulsos dos seus lares. E isso fez-me sentir não só desesperadamente triste, mas também envergonhado. O que é verdade, e o relevo [de Lachish] mostra, é, em certo sentido, o carácter imutável e inalterável da guerra. Há sempre guerras, há sempre mortes, há sempre refugiados. Os refugiados são uma espécie de destroços e carga deitada ao mar. São abandonados quando a guerra termina.

Fonte bibliográfica: MacGregor (2014; pp. 143-146)

sábado, 10 de junho de 2017

[0047] Um dos fundamentos das magias: «com a verdade me enganas»

Voltando ao caso da magia apresentada por David Copperfield na mensagem «0043». Ao tentar compreender os seus fundamentos (houve quem acertasse), podemos formular as seguintes regras:

O que o mágico nos diz é verdade
Neste caso o mágico disse-nos: pensem numa destas 6 cartas …


… e eu fá-la-ei desaparecer

Mas a magia também utiliza verdades que não nos são ditas
Neste caso o mágico: faz desaparecer as 6 cartas mostradas inicialmente e mostra-nos 5 cartas não mostradas antes


O espectador tende a confundir a verdade ouvida com toda a verdade
Neste caso o espectador: procura a sua carta, mas não repara que nenhuma das cartas originais desapareceu e foram substituídas por novas cartas

Por isso a magia procura apagar a distância entre a verdade dita e toda a verdade
Neste caso o mágico: escolhe o tipo de cartas mais difíceis de memorizar, as «figuras»; como elas são 12, mostra-nos primeiro 6 delas; procura que nos concentremos na «nossa carta»; depois mostra-nos 5 da outra metade (parece que tirou uma, «a nossa»)

Também no caso do truque do Dominó (mensagem «0039») o mágico só nos diz uma parte da verdade: mostra-nos 27 peças; não nos diz que retirou uma …

Um caso um pouco mais complexo: um truque de Kardini!


Pense num NÚMERO de DOIS DÍGITOS
(exemplo: 74)

SUBTRAIA desse número os seus dois dígitos
(exemplo: 74 - 7 - 4 = 63)

Procure na tabela abaixo o SÍMBOLO correspondente a este número, à sua DIREITA
(neste exemplo: 63)


Verifique se o seu SÍMBOLO é o que se encontra no centro do meu quadro mágico vermelho ...


Recomecemos:

Pense num NÚMERO de DOIS DÍGITOS

SUBTRAIA desse número os seus dois dígitos

Procure na tabela abaixo o SÍMBOLO correspondente a este número, à sua DIREITA


Verifique se o seu SÍMBOLO é o que se encontra no centro do meu quadro mágico vermelho ...


Voltarei a este truque dentro de duas ou três semanas …

quinta-feira, 8 de junho de 2017

[0046] O mais antigo texto matemático conhecido: o Papiro de Rhind

O Papiro de Rhind é o 17º objecto descrito por Neil MacGregor, director do Museu Britânico, em «Uma História do Mundo em 100 Objetos». Ele foi encontrado em Tebas (perto de Luxor), e foi comprado na década de 1850 por Alexander Rhind, advogado em Aberdeen (Escócia).
O papiro original (escrito aproximadamente em 1550 a.C.) deveria ter cerca de 5 metros de comprimento e 30 centímetros de largura, mas está hoje dividido em três pedaços, dois propriedade do Museu Britânico e o terceiro do Museu de Brooklyn: é “o maior e mais antigo texto matemático que conhecemos, não só no Egito como do resto do mundo”, escreveu MacGregor.


Pormenor:

Totalidade do fragmento:

Ele “contém oitenta e quatro problemas diferentes, cálculos que podem ser usados em diversas ocasiões para resolver as dificuldades práticas da vida administrativa, por exemplo, como calcular o declive de uma pirâmide, ou a quantidade de comida necessária para as diversas espécies de aves domésticas. Está na sua maior parte escrito a negro, mas o vermelho é usado para o título da pergunta e para a solução e não está escrito em hieróglifos, mas numa espécie de cursivo administrativo, muito mais fácil e rápido de escrever.

Um dos problemas que nele figura é o seguinte: “Em sete casas há sete gatos. Cada gato apanha sete ratos. Se cada rato comer sete espigas, e se cada espiga semeada produzir sete alqueires, qual é a soma total?
Quem o resolve ...?

No início do papiro, o título, a vermelho, sugere haver uma exagerada convicção no poder da Matemática: “O método correto de cálculo para compreender o sentido das coisas e saber tudo – as obscuridades e os seus segredos.

Fonte bibliográfica: MacGregor (2014; pp. 119-123)
Fontes das imagens: www.britishmuseum.org/explore/a_history_of_the_world/objects (em Janeiro de 2015), para o fragmento; Google, para o pormenor

sábado, 3 de junho de 2017

[0045] O foco mesopotâmico da agricultura, as tabuinhas de argila e as primeiras cidades

A Mesopotâmia, situada em torno do rio Tigre e do rio Eufrates (e correspondendo, aproximadamente, ao actual Iraque), terá sido o mais importante dos focos da agricultura. O trigo já se encontrava aí completamente domesticado há 9,5 mil anos, sendo possível que a cevada tenha sido domesticada antes, por se poder semear em várias estações do ano e se adaptar a uma maior variedade de terrenos.
A alimentação foi aí enriquecida com os açúcares proporcionados por estes dois cereais e ainda pelas proteínas das lentilhas e das ervilhas, duas leguminosas. E o vestuário recebeu os contributos do linho para a tecelagem.

Por volta de 3 000 a. C. os excedentes da agricultura na Mesopotâmia permitiram que aí surgissem as primeiras cidades, com 30 a 40 mil pessoas. É dessa época o 15º objecto descrito em «Uma História do Mundo em 100 Objetos» por Neil MacGregor, director do Museu Britânico

Trata-se de uma tabuinha de argila com 9 por 7 centímetros, originária do Sul do Iraque. Está dividida em três filas, cada uma com quatro divisões. Em cada uma destas divisões, os sinais devem ser lidos de cima para baixo e da direita para a esquerda, antes de prosseguir para a divisão seguinte. Nesta tabuinha, o assunto era a cerveja, a principal bebida na Mesopotâmia, onde a sua distribuição aos trabalhadores era racionada.


Explica MacGregor: a literatura antiga era “oral, apreendida de cor e depois recitada ou cantada. As pessoas escreviam o que não sabiam de cor, o que não conseguiam verter em verso.” “Dinheiro, leis, comércio, emprego: estes são os tópicos da primeira escrita, e foi a escrita que mudou, em última análise, a natureza do domínio e do poder estatal. Só mais tarde a escrita se mudou das rações [de cerveja] para as emoções; os contabilistas chegaram a ela primeiro que os poetas.

No Norte da Mesopotâmia, durante o terceiro milénio antes de Cristo, Mari é a grande cidade. Segundo o arqueólogo Jean-Claude Margeron, Mari funciona em rede com outras cidades, ligadas por canais e por rotas. Ela “controla a rota do cobre e de outros metais que vem da Anatólia e se dirige para a Babilónia”, situada no Sul da Mesopotâmia, onde se situam as cidades de Uruk e de Ur. “Ela assegura, para seu benefício, o transporte e até a transformação e venda destes materiais. Nela a metalurgia do cobre e do bronze é decisiva.

Reconstituição de Mari, nas margens do Eufrates,
em que é visível o canal que atravessaria a cidade

Fontes bibliográficas: Mazoyer, entrevistado (2000; pp. 93-94); MacGregor (2014; pp. 56, 87 e 105-110); Margeron, entrevistado (2015)
Fontes das imagens: www.britishmuseum.org/explore/a_history_of_the_world/objects (em Janeiro de 2015); Público, 3 de Maio de 2017