domingo, 31 de maio de 2020

[0224] A medida do perímetro da Terra: três métodos históricos


Aristóteles, no século IV a. C., baseando-se em Eudoxo, referiu-se a uma estimativa das dimensões da Terra, sem esclarecer quem a fez, nem como, nem quando.
A primeira estimativa do perímetro da Terra de que se conhece o autor, o método e a época foi feita no século III a. C., sendo atribuída a Eratóstenes (cerca de 276 – 194 a. C.). Eratóstenes foi conservador da famosa biblioteca de Alexandria, situada no delta do Nilo e capital da dinastia ptolomaica. Devido a esta função, é possível que tenha acedido a uma lista que Alexandre o Grande, o fundador da cidade, havia mandado elaborar, por razões militares, com as distâncias a que as principais localidades ficavam de Alexandria.

Eratóstenes ensinando em Alexandria” (Bernardo Strozzi, 1635)

Para a estimativa do perímetro da Terra, Eratóstenes dispunha à partida de duas informações:
·      a cidade de Syene (actual Assuão) estava situada a Sul de Alexandria, quase exactamente à mesma longitude, tendo a particularidade de, ao meio-dia do solstício de Verão, as varas colocadas verticalmente no solo (chamadas gnómon) não produzirem sombra (Assuão fica quase sobre o trópico de Câncer);
·      a distância entre Alexandria e Siena era de aproximadamente 5 000 estádios (quase 800 quilómetros, segundo o actual sistema de medidas).

Eratóstenes, que também era matemático, só precisou de mais uma medida: o ângulo feito pela sombra de um gnómon colocado em Alexandria ao meio-dia do solstício de Verão. Mediu-o e obteve um ângulo aproximadamente igual a 1/50 de uma volta completa.

Conforme se vê na figura seguinte, este ângulo é igual ao ângulo feito pelos raios da Terra que terminam em Alexandria e em Syene (os seus lados são paralelos). Então os 5 mil estádios que separam estas duas cidades são apenas 1/50 do perímetro da Terra, pelo que este mede 250 mil estádios (ou, em medidas actuais, 40 mil quilómetros).


Havia alguns pontos fracos nesta estimativa: ainda não existiam instrumentos suficientemente rigorosos para a medição de ângulos; Syene (Assuão) não se situa exactamente sobre o mesmo meridiano de Alexandria; o valor da distância entre as duas cidades deveria ser bastante grosseiro (por exemplo, baseado nos dias de marcha das caravanas).
E para nós, que procuramos compreender o resultado a que Eratóstenes chegou, existe ainda uma outra dificuldade, a interpretação das antigas unidades de medida: no mundo grego, as distâncias grandes eram expressas em estádios, equivalendo este comprimento a 600 pés; mas o comprimento de um pé não estava normalizado, variando consideravelmente. Se atendermos a esta variação, o perímetro da Terra estimado por Eratóstenes estará contido num intervalo que vai dos 39 mil aos 46 mil quilómetros, inclinando-se muitos especialistas para que esteja mais próximo do limite superior.


No século IX d. C., em Samarcanda, o perímetro da Terra foi calculado por um outro método.
Samarcanda fica situada no Sul do actual Usbequistão, e no período que se seguiu ao declínio da civilização grega era o centro de uma região, então conhecida por Kwarismi, que deu voz a numerosos talentos. Um deles, foi simplesmente conhecido por Al-Kwarismi (cerca de 780 – cerca de 850 d. C.).

Selo comemorativo (1983, URSS)
Aproximadamente 1200º aniversário do nascimento de Al-Kwarismi

Al-Kwarismi trabalhou na Casa da Sabedoria, fundada pelo califa Almamune, que reinou de 813 a 833, tendo sido incumbido de fazer uma nova estimativa do perímetro da Terra. Desta vez o método baseou-se na medição de uma distância, orientada do Sul para o Norte, de tal modo que a altura (angular) do Sol ao meio-dia no ponto de chegada fosse um grau inferior à que era no ponto de partida:


A medição foi feita por diversos agrimensores, numa extensa planície situada 320 quilómetros a Norte de Bagdad, tendo a maioria das distâncias medidas sido de 56 e 2/3 de milhas árabes. Correspondendo esta distância sobre a superfície da Terra a 1º, então o perímetro da Terra seria 360 vezes maior: 20 400 milhas árabes, ou, por conversão às actuais medidas, um pouco mais de 40 mil quilómetros.


O princípio da triangulação já era conhecido na antiguidade: partindo das medidas de uma base e de dois ângulos, é possível calcular as medidas que faltam do triângulo que a base, cujos extremos são A e B, forma com um terceiro ponto, C:


Desde o século XVI que este princípio foi utilizado para desenvolver os métodos utilizados nos actuais levantamentos topográficos, sendo aplicados num grande número de expedições com interesses políticos. No entanto, algumas dessas expedições tiveram como interesse central o velho objectivo da medida do perímetro da Terra, todas elas usando a triangulação trigonométrica para medir um grau de meridiano:
·      no início do século XVII, pelo inglês Richard Nordwood;
·      na segunda metade do século XVII, pelo francês Jean Picard;
·      no início do século XVIII, por Giovanni e Jacques Cassini, pai e filho, que concluíram, contrariamente às predições de Newton, que o perímetro da Terra que passava pelos pólos era maior do que o do equador;
·      na primeira metade do século XVIII, duas equipas francesas, uma no Perú, outra no Norte da Escandinávia, visando esclarecer a polémica entre os resultados dos Cassini e as predições de Newton, tendo concluído que Newton tinha razão.

[Parágrafo com correcções (fundo azul) introduzidas no dia 6 de Junho de 2020]
A expedição que ficou mais conhecida foi, no entanto, a de Jean-Baptiste Delambre e Pierre Méchain. De 1792 a 1799 eles efectuaram, por triangulação, a medição da distância entre Dunquerque e Barcelona, partindo o primeiro de Dunquerque e o segundo de Barcelona, medindo assim uma fracção do respectivo meridiano terrestre (esta façanha foi descrita por Denis Guedj, em «A Meridiana», conforme referido na mensagem «0030»).

Selo comemorativo (Liechtenstein)
Entre Delambre e Méchaim figura a sua triangulação
[Parágrafo com correções (fundo azul) introduzidas no dia 7 de Junho de 2020] O objectivo era, de facto, outro: em 1670, o abade Mouton propusera como padrão da medida de comprimento o minuto de grau de um meridiano; em 1789, a Constituinte francesa, inspirada nesta ideia de associar uma nova unidade de comprimento a uma medida fixa da Terra, nomeou uma comissão de que propôs a adotação do metro, definido como a “décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre”. [Acrescentado a este parágrafo em 6 de Junho de 2020:] Ao medirem esta fracção do meridiano de Dunquerque e Barcelona, Delambre e Méchain deram o passo decisivo para que esta nova unidade, o actual «metro», fosse definida!

Perímetro da Terra, medido no equador, com base nas medições modernas:
aproximadamente 40 074 quilómetros.


Fonte: livros de Bryson (2004; pp. 62-64), de Osserman (1996; pp. 21, 23-24 e 26-27) e de Brotton (2019; pp. 41, 53, 59 e 88) e, numa revista, artigo de Arlot (2005; p. 97)
Imagens (representando Eratóstenes, Al-Kwarismi, Delambre e Méchain): Wikipédia ou outros sítios acedidos via Google
Desenhos: Pedro Esteves

terça-feira, 26 de maio de 2020

[0223] A palavra «liberdade»


A propósito do uso das palavras:

Como se relacionam as «palavras» com a «realidade» que se propõem representar?
As «palavras» clarificam ou obscurecem a «relação» entre as pessoas?

E a propósito do uso da palavra liberdade:

Ela tem sido tomada por muitos como bandeira do presente, ou do futuro.
Também é usada por todos como condição indispensável para a sua vida.

Mas, atentem no modo como ela é associada a outras «palavras», a outras «noções» constituídas por palavras, precisamente num momento histórico (1974) em que a «liberdade» de um «povo» havia sido reconquistada:


A letra de «Liberdade»:

Viemos com o peso do passado e da semente
Esperar tantos anos torna tudo mais urgente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
e a sede de uma espera só se estanca na torrente
Vivemos tantos anos a falar pela calada
Só se pode querer tudo quando não se teve nada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só quer a vida cheia quem teve a vida parada
Só há liberdade a sério quando houver
A paz, o pão
Habitação
saúde, educação
Só há liberdade a sério quando houver
Liberdade de mudar e decidir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir
quando pertencer ao povo o que o povo produzir

Fonte: CD (Godinho, 2004)

segunda-feira, 18 de maio de 2020

[0222] O Homem de Vitrúvio e a intuição de «distância de protecção»


Por volta de 1490 Leonardo da Vinci (1452-1519) desenhou num dos seus famosos cadernos (este está guardado na Gallerie dell`Accademia de Veneza) uma figura que veio a ser conhecida por Homem de Vitrúvio:

Desenho com 34 x 24 centímetros

Vitrúvio (nascido por volta de 80 a. C.), o mais famoso dos arquitectos romanos, tinha postulado, no terceiro dos seus dez livros intitulados De Architectura, diversas proporções para o corpo humano. Por exemplo, segundo ele, o comprimento dos braços abertos de um homem seria igual à sua altura; o comprimento da mão, igual a um décimo da altura; e o comprimento do pé, igual a um sexto da altura.

Leonardo, baseado nesta convicção de que existiriam proporções fixas entre as partes do corpo humano, fez as suas próprias medições e, com base nessas medições, decidiu alterar mais de metade das proporções de Vitrúvio, como aconteceu em relação ao pé: passou a ser um sétimo da altura de um homem.
O Homem de Vitrúvio resultou da concretização destas proporções num desenho. Nele estão duas figuras masculinas, ambas com os pés inscritos num círculo: os braços de um estão inscritos nesse círculo; e os do outro inscritos num quadrado.
A ideia de Leonardo era mais ambiciosa do que a simples fixação das proporções humanas. Nas notas que redigiu a propósito deste desenho, Leonardo também se referiu a proporções entre o humano e o cósmico e a proporções entre figuras geométricas (o círculo e o quadrado desenhados têm a mesma área).

Neste tempo que corre, em que a protecção contra a pandemia do Covid-19 ensaia prudentemente a transição entre o confinamento e o desconfinamento, a noção das distâncias a que estamos uns dos outros tornou-se uma ferramenta a usar sem que precisemos de pensar sempre nela. De acordo com uma das regras de protecção mais consensuais, deveremos evitar aproximarmo-nos a menos de 2 metros. Imaginemos pois que o Homem de Vitrúvio, com os seus braços abertos, como árbitro de futebol prevenindo conflitos, nos indica a distância mínima que devemos acautelar:


Fonte: livro de Isaacson (2019; pp. 175-186)

Imagem do «Homem de Vitrúvio»: Wikipédia

domingo, 10 de maio de 2020

[0221] Descrever as distâncias sociais em termos de áreas e de densidades populacionais


Foi há quase dois meses que muitos dos que vieram a público explicar o que é uma pandemia, e o modo como nos poderíamos opor à sua marcha, precisaram de ir procurar ao seus sótãos a Matemática que lá tinham esquecida. O exemplo mais engraçado da atrapalhação que daí resultou foi assim cartoonizado por Luís Afonso:


Não parece que o barman e o cliente obedeçam, nesta tira, à disposição da Portaria, mas isso é pouco relevante face ao objectivo sério do cartoonista: mostrar-nos ser necessário descrever uma densidade populacional de um modo compreensível e simples de aplicar no dia-a-dia – neste caso, a densidade deveria ser igual ou inferior a 1 pessoa por 25 metros quadrados.

Uns dias depois deste cartoon, o mesmo jornal que o publicou usou a seguinte fotografia para exemplificar uma das técnicas como, na China, se estava a procurar contrariar a propagação da pandemia:


Utilizando como referência o quadriculado do pavimento, foi possível manter os operários, durante o almoço, a uma distância mútua de, pelo menos, 1,5 metros. Aqui, a densidade populacional será de 1 pessoa por cada quadrado de 1,5 metros de lado. E como a área deste quadrado é de 1,5 x 1,5 = 2,25 metros quadrados, então a densidade de operários na fotografia é de 1 pessoa por 2,25 metros quadrados.

Repare-se que esta densidade é muito maior que a da Portaria que Luís Afonso parodiou (para o mesmo número de pessoas, a redução da área implica o aumento da densidade). Dado que esta se referia a superfícies comerciais, onde há muita gente em movimento, é possível que nela se tenha querido exercer uma maior pressão para o afastamento entre as pessoas.

Portanto, tratando-se de pessoas paradas, poderá ser suficiente recomendar 1,5 metros como distância mínima de protecção. Mas, tratando-se de pessoas em movimento, a recomendação deve apontar distâncias de protecção maiores.

Em qualquer dos casos, não parece boa ideia usar áreas como referência (e muito menos «densidades populacionais», como eu fiz …), mas sim «distâncias», se possível semelhantes às medidas do corpo humano: a maioria das pessoas tem uma noção mínima das medidas que tem.

Para exercitar: na seguinte fotografia, em que Orson Welles interpreta a personagem que inspira o título do filme «Citizen Kane»,
·      Qual será, aproximadamente, a largura do quadrado desenhado a vermelho?
·      E qual a área desse quadrado?

Estimando as respostas a estas questões, estimaremos também a densidade populacional que a presença do cidadão Kane impõe na fotografia …


Imagens: respectivamente, cartoon de Luís Afonso (2020), fotografia usada pelo jornal «Público» no dia 25 de Março de 2020 e fotografia acessível através do Google e aqui transformada