sábado, 26 de agosto de 2023

[0325] Que se escreveu, no «Estado da Nação» (de 2023), sobre a educação?

Este «diagnóstico da educação» foi redigido por Isabel Flores, do ISCTE.


Eis um selecção do que esta académica escreveu:

A grande meta do acesso está hoje alcançada e em Portugal muitos passos foram dados no sentido de garantir o direito à educação, como demonstra a permanência na escola até aos 18 anos e o indicador do abandono escolar. A qualidade das aprendizagens a nível médio é agora comparável com os parceiros internacionais revelando que a apropriação de conhecimento e sua mobilização tem tido também uma evolução positiva para a maioria dos que frequentam a escola.
Temos agora de virar as políticas para o cumprimento das restantes objetivos: desenvolvimento integral; direito à diferença; mobilidade social e oportunidades de construção de um espírito crítico. Portugal continua a ser um dos países em que o estatuto socioeconómico das famílias mais determina o sucesso das aprendizagens. Temos também uma larga percentagem de alunos que chega aos 15 anos com um nível demasiado baixo de competências.
Novos e complexos desafios aconselham a que o sistema de gestão escolar adote conceitos e modelos pedagógicos alternativos. O objetivo maior é construir uma escola em que cada aluno seja distinto. Uma escola potenciadora de uma sociedade mais rica, criativa e produtiva. A escola que queremos no futuro deve moldar as políticas públicas no presente. Em Portugal, pouco poder é ainda confiado às escolas e esta gestão muito centralizada, com políticas iguais para todos os contextos, tem dificuldade em criar mecanismos de adaptação rápida e resposta a necessidades específicas.
Os diretores das escolas portuguesas consideram que o seu poder é muito limitado […] De facto, os professores são colocados através de uma lista ordenada a nível nacional; os salários são tabelados; as rescisões de contrato são muito complicadas; a organização do número de docentes é calculada em função de um rígido número de turmas, com pequenas majorações de crédito horário, a gestão de outros recursos humanos está também fora da esfera dos diretores, o orçamento de uma escola esgota-se nos salários e pouco ou nada sobra para acrescentar outras despesas, e os alunos são colocados de acordo com critérios previamente definidos iguais para todas as escolas.
As áreas onde os diretores reconhecem alguma capa[1]cidade de decisão no seio da escola são partes do currículo e avaliação, no que se refere à avaliação interna.
Por contraste, na República Checa, Países Baixos e Reino Unido, 90% dos diretores declaram ter poder para contratar e despedir os seus professores, são inteiramente responsáveis pela gestão dos seus orçamentos e tomam decisões sobre o currículo e os critérios de avaliação dos alunos. Nestes países, a maioria das decisões que as escolas podem assumir estão inseridas em linhas diretrizes e são discutidas e analisadas a diversos níveis de governança – local, regional e nacional – permitindo chegar a soluções mais robustas e minimizando os riscos de disparidade entre escolas.
O exemplo dos Países Baixos é de realçar. Os diretores não têm de seguir uma regra em relação ao número de alunos por turma, estas podem ter configurações variáveis conforme os assuntos que estão a ser tratados. Os diretores podem delegar nas mãos dos docentes o planeamento das aulas e os conteúdos que são lecionados. A maioria dos docentes opta por não ter um manual e adapta‑se a cada grupo, por vezes lecionando conteúdos distintos a alunos que frequentam a mesma disciplina. O regime de avaliação interna obriga apenas à realização de um exame no final de ciclo. Os professores não estão obrigados a cobrir uma dada quantidade de matéria entre testes. O que é considerado relevante é que os alunos cheguem ao fim de um certo número de anos e consigam aplicar o conhecimento acumulado, sendo a sequência e a forma como são ensinados pouco relevantes, ainda que haja inspeções e as escolas devam responder pelas suas opções. O objetivo é que as escolas consigam olhar para si mesmas e melhorar as suas práticas. O desempenho médio nos testes internacionais é elevado e a relação entre estatuto socioeconómico e aprendizagem é pouco acentuada. A percentagem de comunidades imigrantes tem vindo a crescer nos últimos anos e, por agora, as escolas mostram‑se capazes de responder à diferença.
A evidência vai demonstrando que a decisão de proximidade, com responsabilização, permite respostas de maior qualidade e mais adequadas ao dinamismo dos contextos.

A OCDE encontra resultados mais elevados nos testes PISA nos países onde as escolas têm poder de decisão sobre os currículos, os critérios de avaliação e as metodologias de ensino. A diferença encontrada é particularmente expressiva quando a autonomia vem acompanhada de responsabilização e prestação de contas.

A gestão de recursos é a responsabilidade que se mantém mais concentrada nas mãos do Ministério da Educação, especialmente no que se refere à contratação, remuneração e cessação de contratos de professores.”
“A colocação por lista ordenada tem cumprido o seu objetivo primário – ter professores distribuídos pelo intricado tecido de escolas e percursos de aprendizagem. A questão coloca-se para o futuro num ambiente de mudança e modernização. Os sindicatos, na sua competência como representantes dos professores, não aceitam que esse poder passe para a mão das escolas ou de outras estruturas locais, ainda que apenas parcialmente. As tensões nesta área são muitas e capazes de trazer uma classe inteira para a rua.

Em relação à autonomia curricular, avaliativa e pedagógica, onde se consegue encontrar maiores ligações com o desempenho das aprendizagens, Portugal tem feito algum progresso. As tentativas políticas de caminhar para um quadro de autonomia têm surgido nas agendas de diversos governos nas últimas três décadas, sendo suportadas por partidos à direita ou à esquerda. Esta é uma área onde é menos visível a contestação por parte dos sindicatos, mas que gera insegurança e medo a nível dos professores que a devem aplicar.
No passado, a autonomia curricular assumiu a figura de disciplinas sem currículo pré-estabelecido, como foi o caso da Área de Projeto. Desde 2017, as escolas foram desafiadas a aderir a um novo projeto de descentralização curricular, Autonomia e Flexibilidade Curricular (AFC), que faz parte de um plano alargado que visa colocar a escola no centro de decisão, tentando quebrar com o modelo prescritivo em vigor. A legislação prevê a autorização para a gestão flexível e contextualizada do currículo, podendo as escolas criar novos domínios ou disciplinas e também desenvolver novas práticas avaliativas. No âmbito da regulamentação, o governo elaborou um despacho que rege esta autonomia de forma bastante detalhada, balizando as possibilidades de autonomia, constituindo‑se como um menu de escolhas alternativas. Este projeto foi iniciado como um projeto-piloto de adesão voluntária e como tal continua a ser: só as escolas que se sentem preparadas ou que encontram vantagens neste modelo se abalançam a acolhê‑lo.
O governo tentou num segundo momento redesenhar o modelo, que em 2019 foi estendido a todas as escolas que o desejassem implementar, tendo sido então lançado um projeto mais exigente – os planos de inovação contratualizados, cuja autonomia de redesenho curricular podiam ser mais originais, podendo as escolas submeter currículos ao Ministério da Educação para aprovação. Arrancou com 83 escolas/agrupamentos em 2019 e neste momento já chegou a 240. Estes planos podem ter uma abrangência muito distinta (apenas uma turma ou o agrupamento inteiro) e a duração pode também ser variável, pelo que é ainda difícil compreender os impactos da sua implementação.

O relatório nacional de avaliação externa da autonomia e flexibilidade curricular identifica novas dinâmicas pedagógicas e alteração do discurso, dando primazia aos interesses do aluno. Recomenda que este processo seja continuado mantendo o apoio de especialistas, incrementando a formação de professores e mantendo a confiança nas escolas. As opções adotadas são ainda as mais fáceis, como a da organização de calendário por semestres, mas já é possível identificar práticas alternativas e disciplinas que acrescentam ou substituem o currículo tradicional, como por exemplo a criação da disciplina de Ciências da Terra que substitui Ciências Naturais, Geografia e Físico‑química no 7.º ano, ideia dos professores numa escola de Sintra. O Ministério da Educação criou um site para partilha de experiências em autonomia curricular, onde surgem atividades diversas tais como aprender ciências no meio envolvente, criar estufas de experimentação ou explorar informação em forma analógica e digital.

Dois comentários muito breves a este diagnóstico:

Parecem certeiras as escolhas da «qualidade» e, para a atingir, da «flexibilidade».

Portanto, não é compreensível que não seja questionado o papel que os «directores» têm nas escolas, onde são um dos principais obstáculos à «flexibilidade» e à «qualidade», por reduzirem a «democracia» e a «participação».

Citações e imagem: Flores (PDF de 2023)

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