domingo, 5 de dezembro de 2021

[0299] O sincronismo da vida ao longo dos 360º da Terra

Que um Dia seja composto por «24 horas» e que a circunferência da Terra meça «360 graus» são duas convenções que nos ajudam a conhecer o «momento» e o «local» em que a nossa vida decorre. Associando estas duas convenções surge uma outra, a dos vinte e quatro fusos horários, cada qual medindo, teoricamente, 15 graus; mas, administrativamente, adaptando-se em cada país ao que aí se decide.

Eis, referidos ao meridiano de Greenwich, o panorama mundial das horas (a Oeste da linha internacional de mudança de data está-se «num dia» e a Leste já se está no «dia seguinte»):


Podemos pensar apenas em nós e seguir a lenta progressão do nosso fuso horário ao longo do dia (visão diacrónica). Mas podemos escolher um momento do dia e imaginar o que se estava a passar ao longo de todos os fusos horários.
Por exemplo hoje, Domingo dia 5 de Novembro de 2021, já perto das cinco horas da tarde no meu fuso natal, que por acaso foi o de Greenwich:


Nas Américas, tanto as gentes do Sul como as do Norte estavam a meio de uma manhã em que a maioria não trabalha. No ocidente da Europa e de África, a tarde já estava avançada, ou mesmo terminada, enquanto que no poente africano, em toda a Ásia e nas grandes ilhas que separam os Oceanos Índico e Pacífico a noite já começara: em Tóquio já se entrara no dia 6 de Dezembro, Segunda-feira, dia de trabalho para a maioria.
E no Dubai, onde a noite já se impusera, dois jogadores lutavam pelo título mundial de Xadrez …


Imagens: respectivamente de http://educacao.globo.com/, de www.24timezones.com e de www.chess.com.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

[0298] A Matemática e as Ludotecas (IV): o Jogo do Hex à prova

O Jogo do Hex, cujas regras já aqui fora apresentadas (na mensagem «0268»), é um dos jogos de que podem desfrutar os visitantes do Jardim do Campo Grande (ver mensagem «0296).


Não sendo um «jogo matemático», o Hex pode ser estudado pela Matemática. O primeiro grande contributo que os matemáticos lhe deram, através de David Gale (em 1979), foi a demonstração de que não pode haver empates neste jogo (o que, claro, já era conhecido por aqueles que o jogavam).
Um modo de verificar empiricamente esta impossibilidade de empate é colocarmos ao acaso as peças de ambos os jogadores num tabuleiro, até este estar totalmente preenchido, e confirmar que dois dos lados opostos estão ligados. Por exemplo, neste tabuleiro 6 x 6, o lado inferior esquerdo está ligado ao lado superior direito, tanto pelas peças verdes como pelas peças vermelhas (o jogador a quem cabia ligar esses lados seria, portanto, o vencedor):

Outro modo de proceder a esta verificação empírica é colocarmos as peças segundo uma regra que não vise a vitória de um dos jogadores, e concluir que também não conseguiríamos deixar de ligar dois dos lados opostos. Por exemplo, se juntássemos, no tabuleiro 6 x 6, as peças de cada jogador em pacotes de 2 x 3:

Desta vez são os lados inferior direito e superior esquerdo que estão ligados, tanto para um como para outro jogador.

O segundo grande contributo que os matemáticos deram para a compreensão deste jogo veio, uns anos mais tarde, de John Nash. Ele demonstrou que o primeiro jogador dispõe de uma «estratégia ganhante» (ver o que isso significa na mensagem «0274»). No entanto, apesar de o ficarmos a saber, continuamos a desconhecer que estratégia é essa, caso o tabuleiro seja suficientemente grande, como, por exemplo, o tabuleiro 11 x 11.
Para tabuleiros pequenos, já são conhecidas estratégias explícitas para o ganho do primeiro jogador: em 2002, Yang Jing, Simon Liao e Mirek Pawlak encontraram-na para o tabuleiro 7 x 7. E, em 2009, Philip Henderson, Broderick Arneson e Ryan B. Hayward fizeram o mesmo para o tabuleiro 8 x 8.

Apesar do que está matematicamente provado, jogar ao Hex (em tabuleiros grandes) continua a ser um desafio interessantemente falível!

 

Fontes: livros de Neto & Silva (2004; p. 91) e de Buescu (2014; p. 138); Wikipédia

domingo, 21 de novembro de 2021

[0297] Factos e argumentos sobre a Educação (I): a importância da diversidade de actores

Prometi escrever um comentário ao texto de António Nóvoa que reproduzi na mensagem «0286»: E agora, Escola?


O essencial que me levou a sentir a necessidade de um comentário surgiu no fim do texto. Escreveu Nóvoa:


“Quando era reitor da Universidade de Lisboa perguntaram-me onde estava o futuro das universidades. Respondi: na educação básica, no reforço de uma educação pública de qualidade para todos. Sem isso, dificilmente teremos boas universidades.
Mas é preciso fazer também a pergunta inversa: onde está o futuro da educação básica? A minha resposta é simples: está, em grande parte, nas universidades, porque são elas que formam os professores, porque são elas que têm a «massa crítica» necessária para reforçar a educação como bem público e bem comum.”
E, acrescentou:
“Hoje, mais do que nunca, precisamos de universidades com grande autonomia e liberdade, com espírito crítico, comprometidas com a inovação pedagógica e o reforço do espaço público da educação. É por aqui que passa grande parte do futuro das sociedades do século XXI.”

Parecem-me frágeis dois aspectos destas afirmações.
Primeiro: os actores educativos não se encontram apenas nas escolas básicas e nas universidades.
Segundo: a «massa crítica» que pode levar o «bem público» a coincidir com o «bem comum» tem de ser a dos diversos actores nisso interessados, não se reduzindo a uma escolha cognitivista.

 

Fotografia: https://jornal.usp.br/?p=347369, no portal da Universidade de São Paulo (aí publicado em 19 de Agosto de 2020)

domingo, 14 de novembro de 2021

[0296] Um jardim com pontes, jogos e histórias

O jardim tem dois lagos. E num dos lagos existem sete pontes …


O jardim tem bancos. E incrustados nalguns desses bancos existem tabuleiros para jogar …


O jardim tem uma longa via para peões e ciclistas. E incrustadas nessa via estão histórias …


O jardim também tem plantas, claro. E aves que o visitam; e que talvez lá morem …

Trata-se do Jardim do Campo Grande, em Lisboa.

Começando pelas histórias.
A via para peões e ciclistas tem cerca de mil e quatrocentos metros (estimativa feita a partir das imagens do Google Maps). E as histórias que lá são recordadas dizem respeito aos últimos quatro mil anos da História da Matemática. Como essas histórias devem ter sido incrustadas na via de acordo com uma escala, a cada 100 metros de via corresponderão cerca de 300 anos de histórias.

Depois passando pelos jogos.
Há tabuleiros para o Alquerque e o Hex (ver regras nas mensagem «0159» e «0268», respectivamente) e para o Moinho e o Ouri (as suas regras surgirão em próximas mensagens).

E, por fim, chegando às pontes.
Não se tratam de quaisquer pontes. Elas pretendem lembrar as sete pontes através das quais a cidade de Königsberg resolvia, no século XVIII, o atravessamento do rio Pregel, utilizando para tal as duas grandes ilhas que nele se situavam:

As sete pontes de Königsberg

Durante muito tempo os habitantes da cidade discutiram se seria possível atravessar as sete pontes, numa única caminhada, sem usar duas vezes a mesma ponte.
Mas foi só em 1736 que este problema foi resolvido, pela negativa: Leonhard Euler (1707 – 1783) construiu um «grafo» em que as sete pontes foram representadas por «arestas» e as quatro regiões que elas ligavam por «vértices», concluindo que, para haver uma solução pela positiva, o grafo só poderia ter, no máximo, 2 vértices com um número ímpar de arestas, sendo um o vértice de partida e o outro o vértice de chegada.

As quatro regiões e as sete pontes: o grafo

Com esta solução, Euler estabeleceu os primeiros fundamentos da Topologia.

 

Fonte: livros de Pappas (1989, pp. 124-125; 1991, p. 184)
Fotografias: Pedro Esteves (em Novembro de 2021)
Primeira imagem: Wikipédia

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

[0295] Mais um quebra-cabeças: o Ovo Mágico

A forma como as nove peças do Ovo Mágico nos são apresentadas é uma das razões para o nome deste quebra-cabeças: elas formam um ovo.

 

É possível desenhar esse ovo em casa, por exemplo sobre cartolina, ou sobre cartão, ou sobre madeira.

Começa-se por desenhar uma circunferência com raio igual a 2,5 cm e por se traçar dois dos seus diâmetros, AB e HJ, perpendiculares entre si.

Com centro em A, desenha-se o arco BD. E com centro em B desenha-se o arco AC.

Depois, com centro em H, desenha-se o arco CD. E com raio igual a HC, desenha-se a circunferência que tem centro em E.

Traçados a cheio, na figura, estão ainda os cortes que devem ser feitos no ovo, proporcionando-nos as nove peças …



Com estas nove peças pretende-se formar figuras. E o desafio mais simples é formar figuras cuja forma já seja conhecida, como é o caso das cinquenta e quatro que são apresentadas na página seguinte, todas elas plausivelmente semelhantes a silhuetas de aves (o que é outra razão para que este quebra-cabeças se chame Ovo Mágico, como se as aves saíssem do ovo que lhes deu origem):


Para os mais criativos, o desafio é o de inventar novas silhuetas, utilizando sempre as nove peças, e dando-lhes um nome apropriado. É claro que não é obrigatório que se assemelhem a aves …

 

As regras deste quebra-cabeças e as figuras acima propostas estão acessíveis na página «Documentos» deste blogue (pasta «Quebra-cabeças»).

 

Fonte (regras e desenhos): livro de Delft & Botermans (1997; p. 23)

domingo, 31 de outubro de 2021

[0294] O décimo Objectivo do Desenvolvimento Sustentável: reduzir as desigualdades

Na mensagem «0080» foram genericamente apresentados os dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que as Nações Unidas propuseram aos governos e aos cidadãos do mundo cumprir entre 2015 e 2030.

O 10º desses objectivos é:


Em https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel este objectivo foi-nos apresentado assim:

 

Objetivo 10: Reduzir as desigualdades

Até 2030, progressivamente alcançar, e manter de forma sustentável, o crescimento do rendimento dos 40% da população mais pobre a um ritmo maior do que o da média nacional
Até 2030, empoderar e promover a inclusão social, económica e política de todos, independentemente da idade, género, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição económica ou outra
Garantir a igualdade de oportunidades e reduzir as desigualdades de resultados, inclusive através da eliminação de leis, políticas e práticas discriminatórias e da promoção de legislação, políticas e ações adequadas a este respeito
Adotar políticas, especialmente ao nível fiscal, salarial e de proteção social, e alcançar progressivamente uma maior igualdade
Melhorar a regulamentação e monitorização dos mercados e instituições financeiras globais e fortalecer a implementação de tais regulamentações
Assegurar uma representação e voz mais forte dos países em desenvolvimento em tomadas de decisão nas instituições económicas e financeiras internacionais globais, a fim de produzir instituições mais eficazes, credíveis, responsáveis e legítimas
Facilitar a migração e a mobilidade das pessoas de forma ordenada, segura, regular e responsável, inclusive através da implementação de políticas de migração planeadas e bem geridas
Implementar o princípio do tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento, em particular para os países menos desenvolvidos, em conformidade com os acordos da Organização Mundial do Comércio
Incentivar a assistência oficial ao desenvolvimento e fluxos financeiros, incluindo o investimento externo direto, para os Estados onde a necessidade é maior, em particular os países menos desenvolvidos, os países africanos, os pequenos Estados insulares em desenvolvimento e os países em desenvolvimento sem litoral, de acordo com seus planos e programas nacionais
Até 2030, reduzir para menos de 3% os custos de transação de remessas dos migrantes e eliminar os mecanismos de remessas com custos superiores a 5%

 

Temos, no entanto, razões para estar preocupados acerca da implementação deste objectivo.
Sérgio Aires, sociólogo, que entre 2012 e 2018 esteve à frente da Rede Europeia Anti Pobreza, cuja fundação foi impulsionada pela Comissão Europeia em 1990, afirmou: “O modelo económico é sempre o mesmo. O tipo de crescimento não produz riqueza, produz ricos. A redistribuição não acontece, a desigualdade cresce.

Quando esta entrevista foi realizada a pandemia ainda não tinha começado. E já se sabe que ela contribuiu para o aumento das desigualdades. Numa notícia jornalística de 2021 escreveu-se:

 

O vírus da desigualdade

Foram precisos apenas nove meses para que as fortunas dos mil multimilionários mais ricos voltassem ao nível pré-pandemia, enquanto para os mais pobres pode demorar mais de uma década.
O aumento da riqueza dos dez multimilionários mais ricos desde o início da crise é mais do que suficiente para impedir qualquer pessoa no mundo de cair numa situação de pobreza por causa do vírus e para pagar uma vacina contra a covid-19 para todos.
Nos EUA, perto de 22 mil pessoas latinas e negras ainda estariam vivas em Dezembro de 2020 se a mortalidade por covid-19 destas comunidades fosse a mesma da das pessoas brancas.
Cento e doze milhões de mulheres não estariam em grande risco de perder os seus rendimentos ou empregos se os empregos de homens e mulheres estivessem igualmente representados nos sectores afectados negativamente pela crise da covid-19.
Em Setembro de 2020, Jeff Bezos poderia ter pago a todos os empregados da Amazon um bónus de 105 mil dólares (86.967 mil euros) e continuar tão rico como era antes da pandemia.


Neste blogue, a apresentação dos anteriores Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, e respectivos comentários, foi feita nas seguintes mensagens: erradicar a pobreza (mensagens «0154», «0196» e «0206»), erradicar a fome («0157»), saúde de qualidade («0169»), educação de qualidade («0176»), igualdade de género («0178»), água potável e saneamento  («0239»), energias renováveis e acessíveis («0244»), trabalho digno e crescimento económico («0267») e indústria, inovação e infraestruturas («0275»).

 

Fontes: entrevista de Sérgio Aires a Ana Cristina Pereira (2018) e notícia de Maria João Guimarães (2011), ambas no jornal Público

domingo, 24 de outubro de 2021

[0293] Um azulejo pentagonal do século XV

Tal como os azulejos com três peixes da mensagem anterior, este azulejo com forma pentagonal (e dimensões ortogonais de 14 cm e de 18 cm) também se encontra exposto no Museu Berardo Estremoz: 


José Meco, no catálogo do museu, situa a sua produção no Império Timúrida, provavelmente em Samarcanda, por volta de 1425-1475, e contextualiza assim a sua origem:

A produção iraniana de cerâmica e de azulejos ganhou acentuado incremento no período Il-Khanid (1256-1335), durante o qual a capital esteve instalada em Tabriz (Azerbaijão), tendo-se então destacado o centro cerâmico de Kashan, pela excecional qualidade dos seus produtos e, especialmente, pela utilização de magníficos ornatos dourados. […]. As várias incursões mongóis que a Pérsia sofreu durante este período culminaram com a invasão de Tamerlão, em 1370, que deu origem ao império Timúrida, ou Mongol, o qual se estendeu pela maior parte da Ásia, deslocando a capital para Samarcanda, no atual Uzbequistão. Alguns centros cerâmicos da Pérsia foram destruídos durante este processo, como Ray e Saveh, mas Kashan manteve uma produção de excecional qualidade. Foi contudo Samarcanda, com o afluxo de artistas vindos de todo o império Timúrida, que se tornou o seu mais destacado centro cerâmico, e onde os revestimentos arquitetónicos ganharam extraordinário desenvolvimento, com o uso de mosaicos alicatados, de elaboradas placas relevadas ou de azulejos de formas variadas, decorados em corda seca, por vezes combinados com tijolos moldados e esmaltados, nomeadamente nas monumentais madrassas da cidade e nos esplendorosos mausoléus da necrópole de Shah Zindah. Os azulejos de corda seca, como o exemplar pentagonal […], eram feitos de barro vermelho, com a superfície sulcada pelas ranhuras preenchidas com manganês e gordura, separando os vários esmaltes opacos, de cores diversificadas, permitindo desenhos mais livres e variados.

Trata-se, portanto, de um azulejo anterior em algumas décadas aos «azulejo mogol» (ver mensagem «0207»).

Se se admitir que este azulejo poderia ter feito parte de um painel constituído por azulejos semelhantes, que padrão (ou que padrões) teria ele ajudado a formar?
Seria interessante colocar este desafio aos alunos de uma escola (porque não de Estremoz?!). Ou, ainda melhor, deixar que a sua curiosidade os leve a formulá-lo.

Dispondo de uma boa e adequadamente dimensionada fotografia, como a do catálogo, o primeiro passo poderia ser: medir os cinco ângulos e os cinco lados, para verificar se as medidas obtidas dizem algo.
Eu fi-lo. E, apesar da dificuldade de precisar os vértices do azulejo, cheguei à conclusão de que deve ter havido a intenção de que quatro dos lados fossem iguais, que dois ângulos fossem rectos e que os outros três medissem 120º:


O segundo passo poderia ser: reproduzir vários exemplares em papel deste azulejo, para que os alunos possam fazer experiências de constituição de padrões.
Eu obtive dois, mas deve haver muitos mais. Em ambos os casos será necessário uma segunda forma de azulejo para que o painel fique completo.

Eis o primeiro caso (falta-lhe um azulejo em forma de losango):


E eis o segundo caso (falta-lhe um azulejo com a forma de um hexágono regular):


O terceiro passo, o mais interessante matematicamente, poderia ser: verificar geometricamente que as soluções para os padrões são rigorosas (é necessário considerar os ângulos internos do pentágono e analisar cada um dos vértices deste padrão).
A este passo deverá estar associada a classificação matemática destes dois painéis (usando o organigrama da mensagem «0123»):
no primeiro caso, a menor rotação é de 180º e existem eixos de simetria axial, em duas direcções, estando todos os centros de rotação sobre eles, pelo que o seu tipo é «pmm»;
no segundo caso, a menor rotação é de 60º e existem simetrias axiais, pelo que corresponde ao tipo «p6m».

Por fim, o quinto passo, talvez mais adequado para os alunos do Secundário, poderia ser: procurar informações sobre os painéis de azulejo mogóis do século XV e sobre os painéis uzbeques de hoje – que outros usos foram e são feitos de azulejos pentagonais?

 

Adoraria ser aluno num projecto destes!

 

Fonte (texto e imagem inicial): catálogo do Museu Berardo Estremoz (pp. 224 e 226), texto assinado por José Meco (pp. 219-744)

domingo, 17 de outubro de 2021

[0292] Fariam estes dois azulejos parte de um padrão?

No Museu Berardo Estremoz encontram-se expostos estes dois azulejos:


José Meco, no catálogo da exposição, situa a sua origem em Teerão, na segunda metade do século XIX, em plema dinastia Kajar (1779 - 1925).

Estes dois azulejos estariam isolados, ou fariam parte de um padrão, ou como friso, ou como painel?

Se se tratasse de um friso, podemos imaginá-lo assim:


O organigrama da mensagem «0148» permite-nos classificá-lo matematicamente: não existe uma simetria de eixo vertical; não existe um centro de rotação de 180º; não existe uma simetria de eixo horizontal; e também não existe uma simetria deslizante.
Então, trata-se de um friso do tipo «11».

E se se tratasse de um painel, em que o lado de cada azulejo coincidisse com o lado dos azulejos seus vizinhos, ele produzir-nos-ia uma impressão semelhante a esta:


Seguindo o organigrama da mensagem «0123»: não existe uma família de centros de rotação; não existe uma família de simetrias axiais; e também não existe uma família de simetrias deslizantes.
Trata-se, portanto, de um painel do tipo «p1».

 

Fonte (texto e imagem inicial): catálogo do Museu Berardo Estremoz (pp. 225-226), texto assinado por José Meco (pp. 219-744)

domingo, 10 de outubro de 2021

[0291] As palavras que dizemos (IV): «tecnologia»

António Betâmio de Almeida, meu colega nos estudos universitários, …


… explicou assim, no jornal Público, as razões pelas quais considera que A «tecnologia» é também uma palavra:

 

“As palavras ganham.”
(P. Eluard e A. Breton, 1938)

No Verão de 1962, Martin Heidegger proferiu a conferência com o título “Língua de tradição e língua técnica”, o qual não designava apenas uma oposição. Fazia alusão a um perigo que ameaçaria a humanidade no mais íntimo da sua essência. Com o texto seminal “A questão da técnica” (conferência proferida em 1953 na Escola Superior Técnica de Munique), Heidegger confronta-nos com a essência da técnica e o ser do Homem. Na sua obra, analisa o que designa por fase tardia da modernidade, a era da técnica. Um período da história que o filósofo descreve como o do fim da metafísica. Em 2021, Heidegger falaria de uma era da tecnologia?

Meditar exige palavras e há palavras que suscitam questionamento e meditação. Como estudante no Instituto Superior Técnico (IST ou o Técnico), o nome do Massachusetts Institute of Technology (MIT) dos EUA fez-me questionar: qual era a diferença entre técnica e tecnologia? A resposta à época era simples: resultaria da cultura anglo-saxónica e da desvalorização nela do termo técnico. A nível da engenharia seria então tecnologia para a América e técnica para a Europa continental. Coisas das línguas e das culturas, pensei eu. Aconteceu, entretanto, a invasão de palavras e ideias que, como magia, criaram usos e significados novos. Tecnologia foi uma delas e o questionamento voltou a justificar-se.

Sabemos que o saber-fazer para atingir objectivos e para nos protegermos e sobrevivermos é a característica milenar da técnica. O termo deriva de uma palavra grega que designa o que pertence à “techné”. O significado etimológico da palavra tecnologia é conhecimento da técnica, como ocorre com biologia, sociologia ou pedagogia. O termo foi utilizado na Europa pelo menos desde o século XVII, mas em meados do século XIX o seu uso decaiu, em especial na Alemanha. K. Marx desenvolveu em profundidade (O Capital, 1867-1894) a relação da técnica com o trabalho e escreveu que o processo de produção desconsiderou “a mão humana” e criou “esta ciência toda moderna que é a tecnologia”. A actual tecnologia ampliou o seu âmbito e, no presente, é muito mais do que entrelaçamento da ciência com a técnica (ciência técnica ou tecnociência), a investigação e o desenvolvimento. É tudo isso mais inovação, no âmbito empresarial e do mercado, tida como a chave do crescimento económico e da competitividade. Uma inovação salvífica e desejada sem limites e permanente. Será possível e desejável?

É bem conhecida a influência das grandes modificações técnicas nos ciclos económicos, ou “ondas de destruição criativa” (à Schumpeter): uma característica da tecnoeconomia. Mas a tecnologia actual tem uma envolvente social, psicológica, cultural e militar complexa e, por vezes, oculta: o sucesso dos produtos não depende só das suas características intrínsecas ou utilidade, mas também (e muito) de factores extrínsecos. Acresce ainda o comportamento humano ancestral como receptor de novidades artificiais, talvez explicável pela antropologia. Um reconhecimento de vantagens indiscutíveis mesclado com adaptação forçada e desejo pueril de poder e diferenciação.

A cultura americana exporta com frequência aforismos oportunos. É o caso do dilema de Collingridge (1981): “Os efeitos sociais de uma tecnologia não podem ser previstos no início. Quando são identificados, já fazem parte do sistema social e económico e o controlo torna-se difícil.” Ou seja, nas novas tecnologias “sobrestimamos os efeitos positivos a curto prazo e subestimamos os efeitos a longo prazo” (lei de Roy Amara, 2006), o que dificulta a designada “inovação responsável”. Nalguns casos, a ética e a regulação conseguiram um controlo, noutros casos há efeitos do passado que são, no presente, crises reveladas: as alterações climáticas e os efeitos das tecnologias do petróleo, dos plásticos e dos carros nas cidades. Mas, nesta época de transições, pretende-se emendar os males de tecnologias antigas e incrementar as novas, como as biotecnologias, a nanotecnologia, o digital e a inteligência artificial, entre outras. O risco poderá agora estar na essência da própria Humanidade. Se a revolução industrial fez perder a “mão humana”, a nova revolução pode fazer desconsiderar a mente, a sensibilidade, a inteligência e outras prerrogativas humanas. Entre tecnofilia e tecnofobia há que saber desenvolver a tecnoprudência.

As novas tecnologias impulsionaram movimentos revolucionários, entre o libertarismo (uma herança hippie com rejeição de autoridade e de intermediários), a economia verde descentralizada ou um radicalismo neoliberal de direita. Impulsionaram o voluntarismo da OCDE no imperativo da “nova” inovação para o crescimento (relatório de 2015) e que, em 2021, empolga (por vezes com uma candura desarmante) dirigentes e políticos da União Europeia. Mas será que a economia comprova esse desiderato? Recorremos a estatísticas e análises e encontramos uma síntese actual da influência da tecnologia na economia mundial (P. Artus e M. P. Virard, La Derniére Chance du Capitalisme, 2021). Três conclusões nos países ricos ocidentais: 1) ineficácia crescente do desenvolvimento tecnológico (aumento das despesas e do poder dos monopólios); 2) obsolescência do capital pela aceleração da mudança que desencoraja o investimento; e 3) concentração de riqueza e aumento de desigualdades com estagnação de rendimentos da classe média que não acompanham a produtividade prometida.

As preocupações não devem incidir só nos produtos técnicos, mas também nas restantes dimensões interligadas que moldam permanentemente a sociedade. A tecnologia não é só uma palavra, nem só um conceito ou processo, é também uma ideologia, com muitas palavras, que marca a nossa época. Será que as palavras ganham sempre

 

Só acrescentaria, ao que o «Betâmio» (tal como os colegas lhe chamavam) escreveu, que a «tecnologia» é uma das muitas palavras que há muito deixou de ser inocente …

 

Fonte: opinião de António Betâmio de Almeida no jornal Público (2021)
Fotografia: retirada de https://fenix.tecnico.ulisboa.pt/homepage/ist10706

sábado, 2 de outubro de 2021

[0290] Jogos para os quais há material em casa (VIII): o «Isola»

No dia 23 de Abril de 1991, há um pouco mais de 30 anos, o Celestino e o Rui jogavam assim, muito concentradamente, na Ludoteca da Escola Secundária José Afonso (ESJA): 


Esta fotografia é o primeiro anúncio do blogue de memórias sobre os 25 anos em que estive ligado à ESJA. Espero iniciá-lo dentro de algumas semanas.

Mas a que estavam a jogar o Rui e o Celestino?
Ao Isola!
Este jogo foi criado por Bernd Kienitz, em 1972, e é por vezes designado por Isolation. Envolve dois jogadores, joga-se sobre um tabuleiro com 6 x 8 casas e exige dois Peões de cor diferente e quarenta e seis marcas de uma terceira cor.
No início do jogo os Peões estão colocados na posição a seguir indicada, correspondendo cada um deles a um dos jogadores:

Depois de tirarem à sorte quem fará o primeiro lance, cada jogador, na sua vez de jogar, efectua obrigatoriamente duas operações:

·      primeiro, movimenta o seu Peão para uma das casas adjacentes da que ocupa (ou na horizontal, ou na vertical, ou em diagonal);

·      segundo, elimina uma das casas livres, colocando nela uma das quarenta e seis marcas (essa casa já não poderá vir a ser ocupada por qualquer dos Peões).

 

É objectivo de cada jogador impedir o adversário de movimentar o seu Peão, cercando-o com casas eliminadas e mantendo, ao mesmo tempo, casas livres para o movimento do seu próprio Peão.

Um ficheiro com as regras e o tabuleiro deste jogo já se encontram na pasta «Jogos de Reflexão» acessível através da página «Documentos» deste blogue: guarde-o, imprima o tabuleiro (ou desenhe um semelhante), arranje dois Peões e quarenta e seis marcas e … toca a jogar!

E, não se esqueça: dentro de algumas semanas haverá mais um blogue!

 

Fotografia: Pedro Esteves

domingo, 26 de setembro de 2021

[0289] Êxodos

John Steinbeck (1902 - 1968) precisou de cerca de cem dias para escrever o livro «As Vinhas da Ira» (publicado em 1939). O contexto da história que ele conta é assim resumido numa das edições em língua portuguesa:
Na década de 1930, as grandes planícies do Texas e de Oklahoma foram assoladas por centenas de tempestades de poeira que causaram um desastre ecológico sem precedentes, agravaram os efeitos da Grande Depressão, deixaram cerca de meio milhão de americanos sem casa e provocaram o êxodo de muitos deles para oeste, rumo à Califórnia, em busca de trabalho.

O documentário «Vinhas da Ira – O Fantasma da América Moderna», de Priscilla Pizzato, comenta o processo de escrita deste livro e lembra-nos que o êxodo nele descrito nem foi o primeiro, nem o último. Todos sabemos os êxodos que ainda hoje estão a acontecer, um pouco por todo o mundo, expondo aqueles que procuram sobreviver a uma indiferença, e por vezes a uma cruel exploração, pelos seus semelhantes.

Ver em: https://www.rtp.pt/play/p7914/e568917/the-grapes-of-wrath-the-ghost-of-modern-america


Fontes: livro de Steinbeck (2021, contracapa); documentário de Priscilla Pizzato (data desconhecida)
Imagem: RTP Play (acerca do documentário de Pizzato)

domingo, 19 de setembro de 2021

[0288] Progresso e estagnação no Salto com Vara

O estudo matemático dos máximos mundiais em provas desportivas está relacionado com o problema da previsão do limite para que esses máximos tendem, admitindo, como pressuposto, que o corpo humano é invariante.
O Salto com Vara, talvez a prova do Atletismo mais dependente da componente técnica, é, por esta razão, particularmente interessante.
Na história desta disciplina, a Vara começou por ser de Bambu (máximos mundiais, ao ar livre, desde os 4,02 metros, em 1912, até aos 4,77 metros, em 1942), depois teve dois breves períodos em que foi de Alumínio (4,78 metros em 1957) e de Aço (4,80 metros em 1960), sendo a partir daí em Fibra de Carbono (desde os 4,83 metros, em 1961, até aos 6,15 metros, em 2021).

Na tabela seguinte figura, para cada década, o período em que se verificaram máximos mundiais (coluna A), o correspondente número de vezes em que estes foram superados (B), o melhor resultado obtido (C), o progresso verificado em relação ao período anterior (D) e o tipo de Vara utilizado (E):

O atleta que mais vezes estabeleceu um máximo mundial, ao ar livre, foi o russo Sergey Bubka. Fê-lo por 17 vezes, desde os 5,85 metros, em 1984, até aos 6,14 metros, em 1994. Portanto, antes deste atleta, em cerca de duas décadas e meia com a Fibra de Carbono, o máximo mundial do salto com Vara tinha subido 105 centímetros; e, com Bubka, ao longo de dez anos, subiu mais 29 centímetros. Assim, pode-se arriscar a hipótese de a alteração do material da Vara ter proporcionado grande parte do progresso desde 1960 e de a excepcionalidade do atleta ter proporcionado o restante, a partir de 1984.
Já agora: o máximo de Bubka foi batido vinte e seis anos depois, em 2020, pelo jovem sueco Armand Duplantis, que lhe acrescentou mais 1 centímetro: é agora de 6,15 metros.

Neste blogue já foram abordados os seguintes casos de evolução das melhores marcas mundiais: no Atletismo (100 metros, masculinos, mensagem «0068»; 10 mil metros, masculinos e femininos, mensagem «0194»; Salto em Altura, masculinos, mensagem «0271») e na Natação (100 metros, masculinos, mensagem «0102»).

 

Fonte: sítio da Track and Field Statistics

Imagem: adaptada de http://auladehistorianaweb.blogspot.com/2016/08/salto-com-vara.html

domingo, 12 de setembro de 2021

[0287] A Matemática e as Ludotecas (III): qual o valor relativo das peças de Xadrez?

Lembro-me de num dos meus primeiros livros de Xadrez ter lido uma argumentação matemática para fundamentar o valor relativo que os jogadores habitualmente atribuem às peças deste jogo.

O início dessa argumentação era o seguinte: colocadas no centro do tabuleiro, sem os entraves resultantes da presença de outras peças, cada uma delas dispõe aí do seu número máximo de movimentos possíveis, a Dama com 27, a Torre e o Bispo com 14 e o Cavalo com 8:



Mas se estas peças se aproximarem dos bordos do tabuleiro, o seu número de movimentos reduz-se, excepto no caso da Torre. O seguinte mapa mostra o número de movimentos possíveis de cada uma delas a partir das 64 casas do tabuleiro (no caso do Bispo são apenas 32 casas, pois ele só se movimenta ou em casas brancas, ou em casas pretas):



Esta quantificação justifica um dos princípios que costumam ser ensinados aos jogadores principiantes: quase sempre, as peças colocadas no centro do tabuleiro são mais valiosas.

A partir daqui já não me recordo como prosseguia a argumentação matemática que li naquele velho livro de Xadrez. Talvez fosse parecida com a que se segue.
No tabuleiro em geral, o valor de cada peça pode ser traduzido pela adição dos movimentos possíveis nas 64 casas, que é igual a 1456 no caso da Dama, a 896 no da Torre, a 280 no do Bispo e a 336 no do Cavalo.
Agora, para transformar estes valores absolutos em importância relativa, pode-se dividir todos eles, sucessivamente, pelos mesmos divisores, até que todos os dividendos sejam inferiores a 10. Por exemplo:


Esta valorização relativa das peças é próxima daquela que é tradicionalmente ensinada no caso das duas peças mais fortes, e não tão próxima no caso das duas mais fracas: a Dama valerá 9, a Torre 5 e o Bispo, tanto como o Cavalo, 3, valores que oscilarão com as particularidades estruturais de cada jogo e com o potencial das peças (e dos Peões e dos Reis) à medida que o jogo se desenrola.

O raciocínio meramente quantitativo não explica as razões pelas quais o Bispo e o Cavalo são mais valorizados pela experiência do que pela argumentação que desenvolvi acima. Talvez seja suficiente dizer que estas duas peças têm maiores oportunidades para se movimentar quando as posições de jogo são mais fechadas. E que os Bispos têm uma grande facilidade em se articular com os seus Peões.
Este é um bom exemplo para mostrar que o «conhecimento» se origina na «experiência», e não na «ciência», sendo esta apenas uma das fronteiras em que o «conhecimento» é socialmente validado.

sábado, 4 de setembro de 2021

[0286] Mudar a Escola: uma reflexão de António Nóvoa

Os regressos às aulas são os mais importantes momentos para se pensar o futuro da Educação.
Vem pois a propósito a seguinte reflexão de António Nóvoa:

E agora, Escola?


Um novo ambiente educativo
Há muito tempo que a educação escolar revela sinais de fragilidade. Por vezes, ouve-se mesmo dizer que “as escolas do século XIX não servem para educar as crianças do século XXI”. Como reinventar o modelo escolar, tal como o conhecemos nos últimos 150 anos?
Correndo o risco de uma simplificação excessiva, recordo uma série de palestras que fiz no Brasil, há cerca de dez anos, nas quais recorri às metáforas do quadro-negro e do celular[= telemóvel] para comparar dois ambientes de aprendizagem.
O quadro-negro é um objeto vazio (precisa de ser escrito), fixo (não se pode mover) e vertical (destina-se a uma comunicação unidirecional). O celular é um objeto cheio (contém as enciclopédias do mundo), móvel (desloca-se conosco) e horizontal (facilita uma comunicação multidirecional).
Quer isto dizer que o quadro-negro é inútil? Não. Nada substitui uma boa lição. Quer isto dizer que, a partir de agora, tudo será digital? Não. Nada substitui um bom professor.
Precisamos de construir ambientes educativos favoráveis a uma diversidade de situações e de dinâmicas de aprendizagem, ao estudo, à cooperação, ao conhecimento, à comunicação e à criação. Nesse sentido, a metáfora do celular é mais inspiradora do que a metáfora do quadro-negro.

Reações à pandemia
Em educação, a covid-19 não trouxe nenhum problema novo. Mas revelou as fragilidades dos sistemas de ensino e do modelo escolar. O que era assunto de debate entre especialistas passou a interessar toda a gente, sobretudo as famílias confinadas com os seus filhos que, de repente, se transformaram também em seus “alunos”.
Como têm sido as reações à pandemia?

Os governos têm sido imprudentes e até insensatos. Devemos reconhecer o esforço para manter uma certa “continuidade educativa”, com resultados aceitáveis para as classes médias, mas desfavoráveis para as classes populares. Todos referem que o recurso ao digital provoca ainda mais desigualdades, mas pouco, ou nada, tem sido feito para ultrapassar esta situação.
Muitas instituições, e também universidades, sobretudo públicas, ficaram bloqueadas numa discussão inútil sobre o uso ou desuso do digital e do “ensino remoto”. Outras, sobretudo privadas, transformaram o digital no novo Deus da educação. São dois disparates, do mesmo tamanho, ainda que de sinais contrários.
O melhor foram as reações de muitos professores que, em condições dificílimas, conseguiram inventar respostas úteis e pedagogicamente consistentes, através de dinâmicas de colaboração dentro e fora das escolas. A Unesco identificou e divulgou essas experiências, que constituem uma base importante para repensar o ensino e o trabalho docente.

E agora?
Alguns, advogam um “regresso à normalidade”, opção impossível e indesejável. Libertaram-se energias que não conseguimos colocar de novo dentro da caixa. E, de todas as formas, não seria desejável voltar a rotinas desinteressantes.
Outros, aproveitam a oportunidade para explicar que “tudo vai mudar”, rapidamente, com a desintegração das escolas e a transição para o digital. Na verdade, esta solução já era defendida, pelo menos desde a viragem do século, em discursos de “personalização” das aprendizagens, cientificamente legitimados pelas neurociências e com recurso à inteligência artificial.
Não me revejo nessas opções. Defender o imobilismo da “normalidade” é o pior serviço que podemos prestar à educação pública. Sustentar o confinamento, para sempre, da educação em espaços domésticos ou familiares seria abdicar de uma das mais importantes missões da escola: aprender a viver com os outros.
Acreditar que nada vai mudar ou que tudo vai mudar rapidamente são duas ilusões igualmente absurdas. Em educação, as mudanças são sempre longas, fruto do trabalho de várias gerações.
O recurso ao digital não é inocente, pois este “meio” influencia o acesso e a organização do conhecimento. Para além disso, o seu uso público é condicionado por ser controlado pelas grandes empresas privadas. Torna-se urgente assegurar o acesso de todos ao digital e valorizar o software livre, universal e gratuito. Mas a questão essencial nunca é sobre os instrumentos, é sempre sobre o sentido da mudança.

O sentido da mudança
Duas perguntas principais marcam o ritmo das interrogações pedagógicas do nosso tempo: como construir um ambiente educativo estimulante? Como entrelaçar o trabalho educativo dentro e fora das escolas?
À primeira pergunta responde-se com a metáfora da biblioteca. O novo ambiente escolar será parecido com uma grande biblioteca, na qual os alunos podem estudar, sozinhos ou em grupo, podem aceder e construir o conhecimento com o apoio dos seus professores, podem realizar projetos de trabalho e de pesquisa… A pandemia mostrou que não se aprende apenas através de aulas.
À segunda pergunta responde-se com a metáfora da cidade. Há 50 anos, uma geração notável de educadores construiu duas utopias: a educação faz-se em todos os tempos e em todos os espaços. A primeira, deu lugar à educação permanente, à educação ao longo da vida, que se tornou o mantra dos discursos e das políticas. A segunda, ficou largamente por cumprir, até que a pandemia mostrou que não se aprende apenas dentro das escolas. A educação faz-se em todos os espaços, na cidade.
Nas mãos de professores e alunos, com sensibilidade e tato pedagógico, o digital pode ser um instrumento importante para apoiar as mudanças necessárias na educação e no ensino.

E as universidades?
Quando era reitor da Universidade de Lisboa perguntaram-me onde estava o futuro das universidades. Respondi: na educação básica, no reforço de uma educação pública de qualidade para todos. Sem isso, dificilmente teremos boas universidades.
Mas é preciso fazer também a pergunta inversa: onde está o futuro da educação básica? A minha resposta é simples: está, em grande parte, nas universidades, porque são elas que formam os professores, porque são elas que têm a “massa crítica” necessária para reforçar a educação como bem público e bem comum.

Os problemas educativos, agora expostos com nitidez pela pandemia, não são novos. Estamos, sim, a assistir a uma aceleração da história. Os próximos tempos vão ser marcados por mudanças profundas. Hoje, mais do que nunca, precisamos de universidades com grande autonomia e liberdade, com espírito crítico, comprometidas com a inovação pedagógica e o reforço do espaço público da educação. É por aqui que passa grande parte do futuro das sociedades do século XXI.


Fonte (texto e fotografia): https://jornal.usp.br/?p=347369, no portal da Universidade de São Paulo (aí publicado em 19 de Agosto de 2020)

domingo, 29 de agosto de 2021

[0285] Um objecto que nos recorda a Rota da Seda

Neil MacGregor resume deste modo as mudanças que ocorreram no mundo entre 400 e 800 depois de Cristo:
A Rota da Seda, da China ao Mediterrâneo, teve o seu auge entre os anos 500 a 800, o tempo da chamada Idade das Trevas na Europa Ocidental. Esta rota comercial ligava a renascida dinastia chinesa de Tang e o recém-formado califado islâmico, que irrompera na Arábia e conquistara o Médio Oriente e o Norte de África com espantosa rapidez. Não foram apenas pessoas e bens que transitaram pela Rota da Seda, mas também ideias. O budismo espalhou-se da Índia à China e mais além, ao novo reino da Coreia. Os produtos do Sul da Ásia chegaram à remota Grã-Bretanha, como se pode ver pelas gemas encontradas em Sutton Hoo. Ao mesmo tempo, mas isoladamente, floresciam os primeiros Estados na América do Sul.
Dos cinco objectos do British Museum que seleccionou para ilustrar este período da nossa história, eu escolhi uma pintura sobre madeira que nos recorda a Rota da Seda.

Aquilo que se designa por Rota da Seda era uma rede de caminhos, com seis mil quilómetros de comprimentos, que ligava o Pacífico ao Mediterrâneo.
No século VII o reino de Khotan, situado na Ásia Central, era um ponto de reabastecimentos da Rota da Seda e, ele próprio, um grande centro do fabrico de seda.
E foi num santuário budista de Khotan que foi encontrada, no século XIX, esta pintura:


Ela foi pintada sobre uma prancha rugosa, com o tamanho de um teclado de computador, a preto e branco, com retoques a azul e vermelho, e foi feita para ajudar a contar uma história sobre a Princesa da Seda, que se encontra figurada no centro. Segundo o que essa história conta, esta princesa vivia na Reino da Seda e iria casar com o rei do Reino do Jade e, para poder levar consigo o segredo da produção da seda sem desagradar ao seu pai, escondeu sob o seu penteado os bichos-da-seda, os casulos e as sementes de amoreira.
Enfim, uma lenda que ajudou a poupar os verdadeiros autores de uma das mais importantes transferências de tecnologia da História …


As anteriores mensagens baseadas em Uma História do Mundo em 100 Objetos foram a «0036», a «0042», a «0045», a «0046», a «0048», a «0049», a «0052», a «0098» e a «0246».

 

Fonte (texto): livro de MacGregor (2014; pp. 287 e 311-315)
Imagem: https://www.bbc.co.uk/programmes/b00sl6f0

domingo, 22 de agosto de 2021

[0284] O imbróglio que actualmente une currículos e organização escolar

Nos últimos 20 anos as nossas escolas foram alvo de mudanças profundas e sistémicas.
O seguinte diagrama, mais os respectivos comentários, talvez ajudem a compreendê-las:


O nosso sistema educativo sempre foi centralizado. Mas, sobretudo nos últimos 20 anos, essa centralização foi reforçada através da hierarquização, que se estendeu desde o nível internacional, passando pelo nacional e o municipal, até ao nível de cada escola.

Qualquer das reformas educativas posteriores a 1974 foi, após a respectiva fase experimental, generalizada sem diversidade. Se actualmente se reconhece que os currículos podem ser concretizados flexivelmente, isso não é a mesma coisa que concretizados diversamente. E a organização das escolas é tão mais hierarquizada como antes do 25 de Abril.

A avaliação tem sido aplicada a tudo e a todos: primeiro foi-o aos alunos do Secundário, depois aos alunos do Básico, aos professores e às escolas. Ela pressupõe que o sucesso é cognitivo, quantitativo e ordenável. E nunca discute o modelo qualitativo em que se baseia, o do currículo oculto dos conservadores: o individualismo e a concorrência.

É neste currículo oculto que os alunos, e futuros cidadãos, vão sendo embrulhados. Ele corresponde a um modelo uniforme de sucesso, o dos alunos identificados pelo seu domínio cognitivo e pelo seu potencial para a economia vigente, a da competitividade. Como consequência, o professor não pode existir enquanto profissional: deve limitar-se a ser cumpridor e bom funcionário.

 

É esta a educação escolar que queremos?
Quais são as alternativas?
E como lá chegar?

 

Fonte: vídeo «Os últimos 40 anos na educação vistos por um professor» (Esteves, 2021)

domingo, 15 de agosto de 2021

[0283] A courela que nos cabe

Se dividirmos o espaço que é cultivado em todo o mundo pelo número de habitantes do nosso planeta, a cada pessoa corresponderão cerca de 2000 m2:


E se o meu talhão de 2000 m2 estiver cultivado da mesma forma que todos os outros, ele incluirá as seguintes parcelas:
(1) Trigo, (2) Milho, (3) Arroz, (4) Outros cereais, (5) Oleaginosas, (6) Soja, (7) Algodão, (8) Nozes, (9) Fruta, (10) Feijões, (11) Fibras, (12) Legumes e (13) Batatas, cebolas, cenouras, ...

Claro que as coisas nunca são tão simples.
Entre muitos outros aspectos a considerar, podemos considerar estes:

Quase toda a gente também come carne. E para alimentar cada par de porcos é necessário reservar-lhes um espaço agrícola semelhante ao figurado acima:


E muita gente está habituada a andar de automóvel. Se quisermos produzir biocombustível, cada 2000 m2 permitem-nos conduzir, num carro normal, durante 3 400 quilómetros:


Mas nem todos temos preocupações de justiça social, pelo que ignoramos o facto de a Europa, que é rica e possui terras férteis, importar cerca de um terço do produto das terras aráveis que consome:


Fonte (ideia, números e desenhos): sítio desenvolvido pelo «Botanischer Volkspark», de Berlim (https://www.2000m2.eu/), que inclui uma versão (parcial) em português; a chamada de atenção para este sítio foi-me feita por Michael Katzenbach, que também desenvolveu, com Christa, Kerstin e Michael Vonderbank, uma proposta de trabalho sob o ponto de vista da Matemática (acessível em https://www.die-mueden.de/mued-material/lager/abdm/ab-20-08.pdf)

Nota: nalguns dicionários a palavra «courela» vem definida como uma antiga medida agrícola com 100 braças de comprimento e 10 de largura