domingo, 20 de setembro de 2020

[0239] Sobre o sexto Objectivo do Desenvolvimento Sustentável: água potável e saneamento

Na mensagem «0080» foram genericamente apresentados os dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que as Nações Unidas propuseram aos governos e aos cidadãos do mundo cumprir entre 2015 e 2030.

Neste blogue, estes objectivos foram genericamente apresentados na mensagem «0080», tendo os primeiros sido descritos e comentados nas mensagens «0154», «0196» e «0206» (erradicar a pobreza), «0157» (erradicar a fome), «0169» (saúde de qualidade), «0176» (educação de qualidade) e «0178» (igualdade de género).

O 6º desses objectivos é:

Em https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel ele foi-nos apresentado assim:

Objetivo 6: Água potável e saneamento

 

Até 2030, alcançar o acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos.

Até 2030, alcançar o acesso a saneamento e higiene adequados e equitativos para todos, e acabar com a defecação a céu aberto, com especial atenção para as necessidades das mulheres e meninas e daqueles que estão em situação de vulnerabilidade.

Até 2030, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição, eliminando despejo e minimizando a libertação de produtos químicos e materiais perigosos, reduzindo para metade a proporção de águas residuais não-tratadas e aumentando substancialmente a reciclagem e a reutilização, a nível global.

Até 2030, aumentar substancialmente a eficiência no uso da água em todos os setores e assegurar extrações sustentáveis e o abastecimento de água doce para enfrentar a escassez de água, e reduzir substancialmente o número de pessoas que sofrem com a escassez de água.

Até 2030, implementar a gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis, inclusive via cooperação transfronteiriça, conforme apropriado.

Até 2020, proteger e restaurar ecossistemas relacionados com a água, incluindo montanhas, florestas, zonas húmidas, rios, aquíferos e lagos.

Até 2030, ampliar a cooperação internacional e o apoio à capacitação para os países em desenvolvimento em atividades e programas relacionados à água e saneamento, incluindo extração de água, dessalinização, eficiência no uso da água, tratamento de efluentes, reciclagem e tecnologias de reutilização.

Apoiar e fortalecer a participação das comunidades locais, para melhorar a gestão da água e do saneamento.

 

Em 1992 mais de 1 700 cientistas de todo o mundo assinaram um artigo com o título Alerta dos Cientistas do Mundo à Humanidade, publicado pela revista da organização Union of Concerned Scientists (Associação dos Cientistas Preocupados). Eles afirmaram, em síntese, que “Os seres humanos e o mundo natural estão em colisão. As actividades humanas causam danos severos e, por vezes, irreversíveis no ambiente e nos recursos”. Entre os danos que apontaram encontravam-se os danos nos recursos hídricos.

Em 2017, cerca de 15 mil cientistas, de 184 países, publicaram um novo artigo, na revista BioScience, em que retomam o aviso feito vinte e cinco anos antes sobre os danos ambientais, “irreversíveis” e “substanciais”. A evolução dos danos, desde 1992, é assim resumida nesse artigo (intitulado Cientistas do Mundo Alertam a Humanidade: Um Segundo Aviso): uma redução de 26% na quantidade de água doce disponível per capita; uma queda na captura de peixe selvagem, apesar do crescimento do esforço de pesca; um aumento de 75% do número de zonas mortas nos oceanos; uma perda de 121 milhões de hectares de floresta, muitos convertidos para a agricultura; um aumento contínuo e significativo nas emissões globais de CO2 e nas temperaturas médias do planeta; um aumento de 35% da população humana; e uma redução de 29% nos mamíferos, répteis, anfíbios, aves e peixes.

“Além disso”, acrescentam os autores, “desencadeámos uma extinção em massa, a sexta em cerca de 540 milhões de anos, em que muitas formas de vida actuais podem ser aniquiladas ou condenadas à extinção até ao final do século.”

 

Dois dos signatários deste aviso, a bióloga Helena Freitas, da Universidade de Coimbra, e o climatólogo Ricardo Trigo, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, apontaram os aspectos que mais os preocupam em Portugal. Para Helena Freitas, é a sustentabilidade dos rios. “Penso que não estamos a cuidá-los. É um dos aspectos mais críticos, até porque, não tendo qualidade de água, não só não teremos acesso à água como há implicações ao nível das práticas agrícolas.” E para Ricardo Trigo: “Estamos numa zona semiárida do Mediterrâneo, onde a tendência para secas e ondas de calor é gritante. Uma das razões de ser tão difícil controlar os incêndios florestais em Portugal ou na Califórnia é a grande probabilidade de secas e de ondas de calor.” Directa ou indirectamente, ambos referiram problemas com os nossos recursos hídricos.


Fonte: artigo jornalístico de Serafim (2017 b)

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

[0238] As palavras que dizemos (II): «sustentabilidade»

Na mensagem «0223» lembrei como Sérgio Godinho, numa das suas mais conhecidas composições, escrita pouco depois do 25 de Abril, insistiu para que usássemos a palavra liberdade apenas se lhe associássemos acções tão imprescindíveis, então como agora, como a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação

 

Por razões muito diferentes vale a pena pensar na palavra sustentabilidade, usada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como agregadora dos dezassete Objectivos que nos desafiou a ajudar a cumprir até ao ano de 2030 (ver mensagem «0080»):


Um exemplo de que há algo pouco convincente nesta palavra foi recentemente dado pelo sociólogo António Barreto. Escreveu ele, num comentário em que criticou a política seguida em relação ao interior do país, origem para o encerramento de tantos serviços: 

E pior do que tudo é a concepção de que as instituições têm de ser rentáveis. Uma escola? Um correio? Um centro de saúde? Um lar de idosos? Deve ser a isso que chamam «sustentabilidade».

 

Para percebermos a origem desta palavra é preciso recuarmos quase 50 anos, até à Conferência de Estocolmo, reunida em 1972, sob a égide da ONU, com a participação dos chefes de estado de 113 países e dos representantes de mais de 400 instituições governamentais e não-governamentais. Foram aí abordados, pela primeira vez em público, os problemas ambientais. E o conceito adoptado no final dos trabalhos foi o de ecodesenvolvimento. O destaque conceptual tinha sido colocado na ecologia.

No entanto, segundo Serge Latouche, devido “à pressão do lobby industrial americano e graças à intervenção pessoal de Henry Kissinger”, este conceito foi sendo abandonado e substituído, nofim dessa década, pelo de desenvolvimento sustentável. A ecologia deixara de ser o centro conceptual; e os negócios poderiam prosseguir, desde que fossem sustentáveis. Contrariamente à ecologia, a sustentabilidade era mais facilmente interpretada à luz da livre concorrência.

 

Ha-Joon Chang, um economista sul-coreano, mostrou uma das perversidades a que o conceito de sustentabilidade facilmente conduz. Ao argumentar contra a pressão feita pelos neoliberais para que o desenvolvimento de cada país seja feito em concorrência perfeita com todos os outros (isto é, nada de apoios externos, nada de proteccionismo interno), comparou-a, ironizando, com o modo como tratava do seu próprio filho:

Ele é sustentado por mim (…). Forneço-lhe alojamento, alimentação, educação e cuidados de saúde. Porém, milhões de crianças da sua idade já têm emprego. (…). Actualmente ele vive numa redoma económica sem noção do valor do dinheiro. Não tem a mínima noção dos esforços que a sua mãe e eu fazemos por ele, subsidiando a sua existência ociosa e afastando-o da dura realidade. Ele está superprotegido e precisa de ser exposto à concorrência, de modo a tornar-se uma pessoa mais produtiva. (…). Deveria tirá-lo da escola e arranjar-lhe emprego. (…). Já oiço o leitor a pensar que devo estar louco. Que sou míope. Cruel. Que o que tenho de fazer é proteger e criar a criança.

Pretender que cada pessoa, cada cidade, cada escola, cada associação, cada serviço, cada região, cada país, e assim por diante, seja sustentável, é dividir o mundo em fatias de tamanhos e capacidades diversas e afirmar que cada uma delas deve sobreviver sozinha, como se não existissem interrelações entre todas essas partes, que tanto provocam desigualdades como geram solidariedades.


O jornalista Guillaume Pitron, citado por Sébastien Broca, deu outro exemplo das perversidades a que a fé simplista na sustentabilidade conduz:

Os chineses e os ocidentais repartiram pura e simplesmente as tarefas da futura transição energética e digital: os primeiros sujarão as mãos para produzirem os componentes da green tech, enquanto que os segundos, comprando-os, poderão gabar-se de boas práticas ecológicas”.

Ou seja, nós, europeus, exultaremos com a sustentabilidade ecológica que atingimos, e culparemos os chineses por não serem capazes de fazer o mesmo …


Fontes: artigos jornalísticos de Barreto (2019) e de Broca (2020); livros de Latouche (2011; p. 23) e de Chang (2013; p. 83); e a Wikipédia, para a Conferência de Estocolmo

terça-feira, 8 de setembro de 2020

[0237] O Quadrante: um instrumento de medição a usar na Matemática escolar (VI)

Em 9 de Maio de 1992 os CTT emitiram, na série Instrumentos Náuticos dos Descobrimentos, o seguinte selo:



O Quadrante nele representado é um instrumento muito antigo, destinado à medição de alturas e ângulos em terra, tendo no século XIII sido descrito no Libro del Saber de Astronomia, de Afonso X, o Sábio.

É muito provável que tenha começado a ser utilizado pelos navegadores que iniciaram a exploração da navegação atlântica, na década de 30 do século XIV, sendo simplificado em função do uso que dele se pretendia no mar (daí também ser conhecido por Quadrante náutico). A sua base é um quarto de círculo, em madeira, dispondo de duas pínulas num dos lados (furadas de modo a se poder observar através delas), de um fio de prumo pendente do vértice e de uma graduação de 0 a 90º, ao longo do arco, correspondente ao quarto de circunferência deste:



Como a navegação atlântica exigia o afastamento da costa, passou a ser necessária uma forma de determinar a latitude do lugar onde a embarcação se encontrava (mais a Norte, mais a Sul), o que se fazia observando a altura de um astro (o ângulo segundo o qual ele é visto acima do horizonte; daí esta forma de localização ser chamada navegação astronómica). O ângulo de observação é igual ao ângulo que o fio de prumo faz com um dos lados do quadrante (identificados a azul na figura anterior), dada a perpendicularidade entre os seus lados. Se o astro observado era a estrela Polar, esse ângulo (com umas pequenas correções) correspondia à latitude do lugar.


Simbolicamente, a estátua do Infante D. Henrique (1394 – 1460), em Lagos (da autoria de Leopoldo de Almeida, 1960), representa-o com um Quadrante náutico numa das mãos:



No final do século XV, Cristóvão Colombo (1451 - 1506); nas suas viagens de ida e volta às Américas, também utilizou o Quadrante náutico.

 

Nas escolas onde ainda existem transferidores de meia volta feitos em madeira, é fácil adaptar um deles a Quadrante escolar (em vez das pínulas pode ser usada uma palhinha destinada a beber refrescos; e a graduação já vem com o transferidor).

 

Mas se este instrumento serve para medir alturas (angulares), como servirá como auxiliar da medida de distâncias?

 

Fontes: folheto de Xavier (sem data; pp. 3-4) e livros de Reis (1992) e Bergreen (2014; pp. 46 e 127)

Desenho: Pedro Esteves