sábado, 31 de agosto de 2019

[0188] Soluções e problemas trazidos pelos «nós»


Na Pré-história, a fixação das diversas partes das ferramentas de trabalho (machados, arpões) já era feita mediante ouso de nós.
Naturalmente, dada a complexificação das ferramentas, o uso dos nós aumentou durante a Antiguidade Clássica. Dessa época, houve um nó que se tornou célebre, devido à história (ou à lenda) em que se viu envolvido: o nó górdio. Conta-se que Alexandre o Grande, ao passar pela Frígia (situada na Ásia Menor) em 334 a. C., ouviu falar de um nó que ninguém conseguira desatar, sendo prognosticado que quem o conseguisse fazer dominaria o mundo. O nó atava um carro de bois a uma das colunas do templo dedicado a Zeus. E Alexandre, que o quis ver, analisou-o longamente até que, desembainhando a espada, o cortou com um golpe. A expressão cortar o nó górdio evoca esta história / lenda, aludindo a uma forma de pensar fora do usual, eventualmente devido ao poder que se detém.

Os nós de marinheiro são os mais célebres nós da actualidade, sendo usados nas embarcações e em muitas outras situações não ligadas à marinharia. Quando eles são figurados, surgem com as extremidades livres, de modo a que as cordas possam ser amarradas, por exemplo, aos mastros.

O ramo matemático a que se chama Topologia desenvolveu uma Teoria dos Nós, postulando, no entanto, que as extremidades de um nó não ficariam livres, mas sim ligadas uma à outra. A grande finalidade desta teoria é, assim, distinguir os nós uns dos outros. E, para ela, um nó é uma curva fechada do espaço tri-dimensional que não se intercepta a si própria. Esta teoria distingue dois tipos de nós, de que são dados a seguir alguns exemplos:

Nós simples (constituídos por apenas uma curva fechada):

Nó trivial              Nó em trevo              Nó em oito

Nós compostos, ou nós ligados (constituídos por duas ou mais curvas fechadas):


Apesar do método de Alexandre o Grande permitir desatar qualquer nó, o método mais tradicional continua a ser muito usado. O que, como toda a gente já experienciou, nem sempre é fácil de concretizar. Por isso, depois de o pintor alemão Johann Schmidtner ter pintado um quadro em que Nossa Senhora aparece a desatar os nós humanos, passou a ser evocável o seu apoio mediante a menção a Nossa Senhora Desatadora dos Nós:

Johann Schmidtner, 1700
(óleo sobre madeira de álamo; 182 × 110 cm;
St. Peter am Perlach, em Augsburgo)

Fontes: artigos de Adams, Furstenberg, Li e Schneider (1997; p. 640), Belaga (1997; p. 42), Budworth (1997; pp. 8-9), Neuwirth (1997; p. 56); versão portuguesa da Wikipédia (para a Nossa Senhora Desatadora de Nós) e sítio (já não acessível) do The Mathematics and Knots Exhibition Group (para as imagens dos nós)

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

[0187] A grande separação entre plantas e animais


Nenhuma estimativa acerca da proporção entre o peso total das plantas e o peso total dos animais na Terra, actualmente, atribui menos de 80 % às plantas.

O último antepassado comum a plantas e a animais terá existido há cerca de 600 milhões de anos, numa altura em que a vida ainda só existia nas águas. Ao acontecer a separação, as plantas tenderam a fixar-se e a utilizar a energia solar, enquanto os animais se preparam para o movimento, em busca de outras energias. Isso implicou profundas diferenças nos corpos das espécies destes dois reinos da vida: segundo Stefano Mancuso, as plantas descentralizaram as suas funções por todo o corpo (a produção, a respiração, os sentidos, a reprodução, …) e os animais concentraram cada função num órgão específico.



Qualquer que seja o problema, os animais resolvem-no deslocando-se: se falta alimento, vai-se para onde ele exista; se está demasiado calor, demasiado frio, se o clima é demasiado húmido ou demasiado seco, migra-se para onde há condições mais propícias; se os competidores aumentam de número e se se tornam cada vez mais agressivos, muda-se para novos territórios; se não se encontram parceiros para a reprodução, vai-se à procura deles. (…). Os animais, portanto, não resolvem os problema, mas evitam-nos eficientemente (…).

As plantas, pelo contrário, não podem “fugir ao ambiente, apenas sobrevivem porque conseguem perceber sempre e com grande certeza uma multiplicidade de parâmetros químicos e físicos, tais como a luz, a gravidade, os elementos minerais à sua disposição, humidade, temperatura, estímulos mecânicos, estrutura do solo, composição dos gases da atmosfera, etc.” Até se apercebem de “sinais bióticos (ou seja, resultantes de outros seres vivos), tais como a proximidade ou distância de outras plantas, a identidade destas e a presença de predadores, simbiontes ou patogénicos (…).
As raízes são o seu órgão mais importante. Elas exploram os solos onde se encontram, captando gradientes muito débeis de oxigénio, água, temperatura, substâncias nutrientes. Já foram contados, num único centímetro cúbico de solo florestal, mais de mil ápices radiculares; se a árvore for adulta, poderá dispor de milhares de milhões.

Fonte: livro de Mancuso (2019; pp. 101-108)

sábado, 10 de agosto de 2019

[0186] Os passos de gigante que os pés de barro dão


Um pequeno passo para o homem, um passo de gigante para a humanidade”, afirmou Neil Armstrong (1930 – 2012), o primeiro astronauta a pisar o solo lunar, em Julho de 1969.

Agora que se completaram 50 anos sobre a primeira alunagem, e sendo conhecido o crescente envolvimento dos interesses privados na exploração espacial, importa perguntar se o «passo de gigante» que se pretendeu ter sido dado pela «humanidade» não reclamará provas de uma muito maior capacidade de tratar o planeta que habitamos, para que haja garantias de respeito por qualquer outro planeta onde pretendamos viver:

Cartoon de Cristina Sampaio

Fonte: cartoon de Sampaio (2019)


sábado, 3 de agosto de 2019

[0185] Da «Victoria amazónica» ao «Crystal Palace»


A Grande Exposição Internacional de 1851 foi realizada em Londres, tendo para tal sido construído no Hyde Park um enorme edifício, em ferro fundido e vidro, a que revista satírica Punch chamou The Crystal Palace (O Palácio de Cristal):


Com 564 metros de comprimento, 124 metros de largura e uma altura que atingia os 39 metros, disponibilizou 92 mil metros quadrados para os 14 mil expositores que vieram de todo o mundo, alguns deles para mostrar as últimas novidades da Revolução Industrial:


Algum tempo após a exposição, em 1854, este enorme edifício foi desmanchado e remontado, com ampliações, noutra zona da cidade, tendo aí permanecido, aberto a visitas, até ser destruído por um incêndio em 1936.

O que aconteceu antes do início da construção deste edifício pode ter sido, no entanto, o mais interessante.
A comissão que deveria escolher o projecto a implementar recusou os 245 que lhe foram apresentados e os quatro especialistas que a seguir foram nomeados para encontrar rapidamente uma solução não o conseguiram fazer.
Joseph Paxton (1803-1865), jardineiro em Chatsworth House, e que aí tinha experimentado o uso do vidro e do ferro na construção de grandes estufas e percebido as vantagens da sua simplicidade, força e duração, defendeu a construção por módulos (um quadrado com cerca de 7,5 metros de lado), que poderiam ser produzidos em série, e a sua ideia, transformada em projecto pelo engenheiro William Cubitt, foi aceite. Com 2 mil trabalhadores em permanência no Hyde Park, foi possível proceder à montagem do edifício original em apenas seis meses.
Paxton inspirara-se nas suas observações botânicas: para o edifício, como as plantas crescem através do acrescento de novos módulos; e, para as abóbadas, como as nervuras da Victoria amazonica se estruturam radialmente:


Fontes: livro de Mancuso (2019; pp. 135-140); sítios da Wikipédia

sábado, 20 de julho de 2019

[0184] Frequência das letras do alfabeto: da criptografia ao Scrabble


A frequência com que as letras são usadas varia de língua para língua.
Se a compararmos para os casos de seis línguas europeias, quatro latinas e duas anglo-saxónicas, destacando em cada uma delas (com fundo amarelo) as três que surgem com maior frequência, percebe-se um pouco a sonoridade através da qual reconhecemos qual dessas línguas está a ser falada - as letras mais frequentes do Italiano são as três vogais abertas, o «a», o «e» e o «i»; para o Português e o Espanhol são o «a», o «e» e o «o»; para o Francês e o Inglês são o «a», o «e» e uma consoante; e para o Alemão são o «e» e duas consoantes:

Nota 1: nestas frequências estão incluídas variantes das letras que cada língua usa (o «à» no Francês; o «ç», o «è», o «é» e o «ê» no Francês e no Português; etc.), mas não estão incluídos os casos do «oe» do Francês (0,02 %), o «ñ» do Espanhol (0, 31 %) e o «b», actualmente escrito como duplo «s», do Alemão (0, 31 %)
Nota 2: estas frequências devem ser consideradas como apenas uma aproximação; têm sido feitos diversos estudos e os resultados divergem um tanto, dependendo do tema abordado, de quem escreve e, claro, da dimensão da amostra estudada

Estas diferentes frequências foram historicamente usadas na criptanálise (a arte de): a descrição mais antiga que se conhece do uso da frequência das letras para descodificar um texto escrito de modo codificado é de al-Kindi, um cientista do século IX, conhecido por Filósofo dos Árabes. Escreveu ele:
Uma maneira de decifrar uma mensagem codificada, se conhecermos a língua, consiste em encontrar um texto simples diferente na mesma língua, suficientemente longo para encher aproximadamente uma folha, e em seguida contar quantas vezes aparece cada letra. Chamamos à letra que aparece com mais frequência a «primeira», à que aparece a seguir com mais frequência a «segunda», à seguinte a «terceira» e assim sucessivamente, até nos ocuparmos de todas as letras na amostra do texto simples.
Seguidamente, olhamos para o texto em cifra que queremos decifrar e também classificamos os seus símbolos. Encontramos o símbolo que aparece mais vezes e substituímo-lo pela forma da «primeira» letra do texto simples, substituímos o símbolo mais comum seguinte pela «segunda» letra, o seguinte pela «terceira» letra e assim sucessivamente, até nos termos ocupado de todos os símbolos do criptograma que queremos decifrar.

Também nos jogos de formação de palavras, como o Scrabble (há outros), é preciso ter em conta estas frequências, adaptando a frequência das letras disponíveis àquela que cada língua utiliza. Por exemplo, as edições alemã e portuguesa do Scrabble têm a seguinte distribuição de peças (no total, respectivamente, de 102 e 120 peças):


Estarão estas frequências de peças razoavelmente próximas das frequências das letras na escrita do alemão e na escrita do português?

Fonte: Wikipédia, para a tabela com as frequências; livro de Singh (2001; pp. 29-30), para al-Kindi

sábado, 13 de julho de 2019

[0183] «Trangrans» há muitos

O quebra-cabeças «Tangram» teve origem na China e já foi abordado na mensagem «0153».

Há quem também chame Tangram a qualquer outro quebra-cabeças constituído por diversas peças que nos permitem, sem deixar nenhuma de parte, compor figuras interessantes: ou pela beleza, ou pelo inesperado, ou pela dificuldade …
Oito desses quebra-cabeças estão figurados a seguir, com as respectivas peças apresentadas tal como é usual serem, formando um motivo geométrico simples:



Como estes quebra-cabeças não são facilmente acessíveis através dos circuitos comerciais, e estando tantos de nós em férias, um bom primeiro desafio será … construi-los. O que não é complicado para pelo menos cinco dos anteriores quebra-cabeças, aqueles cujas peças estão arrumadas dentro de um polígono.

O Jardim Zoológico, por exemplo, exige um quadrado, recortado em cartolina ou cartão. Depois de ter sido subdividido em quatro partes iguais, tanto verticalmente como horizontalmente, com um lápis, as peças podem ser desenhadas sobre esse quadriculado, seguindo as indicações de corte dadas na figura. E por fim cortadas.

Como formar com essas 15 peças cada uma das seguintes figuras:




Percebe-se agora porque foi este quebra-cabeças assim chamado.
Com que outras figuras se pode enriquecer este Jardim Zoológico?

A partir de Setembro os professores de Matemática do Ensino Básico gostam de fazer perguntas sobre estes quebra-cabeças aos seus alunos. As mais frequentes têm a ver com as áreas e os perímetros das peças, tomando a mais pequena delas como unidade. Mas até lá estamos todos de férias.

Fonte: livro de Elffers & Schuyt (1977)

sábado, 6 de julho de 2019

[0182] Para não esquecer tudo durante o Verão: o quebra-cabeças japonês «Kakuro»

À primeira vista as grelhas deste quebra-cabeças parecem as das palavras cruzadas. Só que, em vez de letras que formam palavras, elas são preenchidas com os dígitos de 1 a 9. Cada sequência de casas livres, horizontais ou verticais, deve ser preenchida com eles, de modo a que as suas somas sejam as que estão especificadas nas margens a cinzento. E desde que em cada sequência não seja usado mais do que uma vez cada dígito.

Cada Kakuro tem uma única solução.
O Kakuro figurado a seguir é dito 5 x 5, por ter 5 quadradinhos quer horizontalmente quer verticalmente:




Há nele um quadradinho por onde é fácil começar: aquele que tanto serve a soma 12 como a soma 6. A soma 6, com três parcelas, só pode resultar de 1 + 2 + 3, embora não saibamos qual é a sua ordem. Ora na casa referida só pode ser colocado o 3, pois se fosse colocado o 2, ou o 1, não seria possível completar a soma 12 (seriam respectivamente necessários 10 e 11).
Colocando o 3 no referido quadradinho é possível preencher mais dois quadradinhos:



Pensando agora na soma 6, vertical, onde ainda faltam colocar o 1 e o 2, conclui-se que no quadradinho que fica logo abaixo do 3 (e ao lado do 7) só é possível colocar o 2, pois se aí fosse colocado o 1 não seria possível obter a soma 18 (necessitaríamos de um 10):



Pode-se então preencher mais dois quadradinhos, terminando as sequências que dão somas 6 e 18:



Agora há duas somas que nos dão informações úteis: a soma 24, com três parcelas, só pode resultar de 9 + 8 + 7; e a soma 3, de 1 + 2. Mas não sabemos como estão ordenadas estas parcelas.
Conclui-se, no entanto, que a colocação do 1 logo abaixo do 3 não é possível, pois já existe outro 1 na sequência de que resulta a soma 11. Terá então de aí ser colocado o 2:




Agora é fácil concluir o que falta – e verificar que bate tudo certo!

Há Kakuros de vários tamanhos. Mas as sequências a preencher não podem ultrapassar os 9 quadradinhos, pois só há 9 dígitos. Quanto maior for o Kakuro, mais paciência é preciso ter, e mais informações cruzadas é necessário fazer.
Através da palavra Kakuro encontram-se vários sítios onde é possível jogar on-line. Eis um Kakuro 8 x 9, retirado de um desses sítios:



Para qualquer Kakuro é útil dispormos de uma tabela com os 34 casos em que as parcelas a usar numa sequência são únicas, e que, curiosamente, surgem sempre aos pares:



Fonte (dos Kakuros): www.kakuros,com

quarta-feira, 3 de julho de 2019

[0181] Mais um modelo para simular, eloquentemente, as longas durações


Na mensagem «0128», a propósito da nossa grande dificuldade para compreender o que se passou na Terra ao longo dos seus 4 600 Ma (milhões de anos) de vida, referi um modelo que concentra todo este tempo em apenas 24 horas. Nele, a vida na Terra com características mais complexas (por exemplo, os animais possuidores de um esqueleto), que só existe desde há cerca de 542 Ma, iniciou-se pouco depois das 21 horas, tendo o Homo sapiens surgido apenas nos últimos 3 segundos do dia:




Uma variante deste modelo usa, em vez da comparação com um Dia, a comparação com um Ano (neste caso, o Homo sapiens surge mais ou menos quando faltam cerca de 20 minutos para o ano terminar).
Estes dois modelos apostam na sensibilidade que desenvolvemos à duração do dia e do ano, dada a nossa repetida exposição a elas.

Um outro modelo, com a mesma preocupação de nos fazer sentir o que é a passagem dos tempos imensamente longos, escolheu uma estratégia diferente: em vez de escolher uma duração total à qual estaremos habituados, escolhe um ritmo de algo que costumamos fazer, como andar.
Se cada passada nossa no modelo equivaler à passagem de cem anos na realidade, e se andarmos ao ritmo de 32 quilómetros por dia, todos os dias,
·      ao fim de 1 passo, já não teremos internet, veremos os recifes de coral um terço mais extensos, ainda nada saberemos de bombas atómicas, nem de duas guerras mundiais, e não veremos as cidades fulgurantemente iluminadas à noite …
·      após 20 passos, poderemos encontrar-nos com Jesus …
·      à medida que dermos os passos seguintes, veremos o desaparecimento de diversas religiões, primeiro o budismo, depois o zorastrismo, o judaísmo e o hinduísmo …
·      e assim continuando, caminhando sempre ao mesmo ritmo (de cerca de um passo em pouco menos de 3 segundos), levaríamos quatro anos até observarmos o início da história da Terra, e quase mais dez anos para chegarmos ao momento do Big Bang

Fonte (para o segundo modelo): Brannen (2019; pp. 26-27)

sábado, 22 de junho de 2019

[0180] Tenho de visitar o Alhambra …

Os azulejos alicatados são um dos exemplos através dos quais é possível compreender o papel desempenhado pela geometria na arte islâmica. Eles são formados por pequenas peças de cerâmica vidrada, com diferentes formas e cores, agrupadas de maneira a formar uma trama geométrica virtualmente infinita.

Exemplos de azulejos alicatados observáveis no Alhambra (Granada, Andaluzia, Espanha):




Dado o método pelo qual são construídos, os azulejos alicatados não são condicionados pela trama quadriculada característica dos azulejos actualmente mais comuns, sendo-lhes por isso possível desenvolver tramas triangulares. Por esta razão, foi possível construir para o Alhambra painéis de azulejos onde estão representadas as 17 possibilidades matemáticas de preencher um plano.

O seguinte pedaço de um painel do Alhambra é, de acordo com o fluxograma da mensagem «0123», do tipo p6, um tipo que não é possível encontrar onde a ornamentação se baseia nos azulejos quadriculados:


Papel de parede do tipo «p6»:
tem pelo menos um centro de rotação;
a sua menor rotação é de 60º;
não tem simetrias axiais

Fonte (texto e imagens): artigo no sítio do Museo de la Alhambra

domingo, 16 de junho de 2019

[0179] Uma medida para a complexidade organizacional: a necessidade de tradutores

Li há anos uma entrevista em que alguém, para exemplificar as crescentes dificuldades administrativos da União Europeia, demostrou como o lento aumento de países membros levava a um rápido aumento dos tradutores.

Não é complicado fazer as contas.
Se apenas houver uma língua, não são necessários tradutores.
Se as línguas forem duas, basta um tradutor.
Se as línguas passarem a três, são necessários mais dois tradutores, para traduzirem a nova língua em relação às duas anteriores.
Com este raciocínio para a terceira língua podemos generalizar para cada nova língua que se lhe seguir: ela exigirá tantos novos tradutores quantas as línguas que já existiam antes!


Torre de Babel (Pieter Brueghel, o Velho, 1563)

Então é possível ir calculando quantos tradutores são necessários à medida que o número de línguas for crescendo (supõe-se que basta um só tradutor para cada par de línguas; na União Europeia devem ser necessários muitos mais …):




Para N línguas, o número de tradutores será então igual a
1 + 2 + 3 + 4 + 5 + … + (N – 2) + (N – 1),
o que é igual a
(N2 – N) : 2

Este problema é equivalente a um outro, muito usado nas aulas de Matemática do 3º Ciclo, o dos apertos de mão: num determinado encontro participam N pessoas; se todas se cumprimentarem, quantos apertos de mão serão dados?
Qualquer destas versões também pode ser usada na Matemática do Secundário para ilustrar as Combinações de N elementos 2 a 2.

No caso ilustrado pela União Europeia, o crescimento do número de países (N) implica um crescimento ainda mais rápido do número de tradutores. Diz-se, na Matemática, que é um crescimento do tipo polinomial, por ser dado por uma expressão com a forma de um polinómio, (N2 – N) : 2, que também se pode escrever como ½ N2 - ½ N.
Trata-se de um rápido crescimento da complexidade, mas há outros que são ainda mais radicais …


sábado, 8 de junho de 2019

[0178] Sobre o quinto Objectivo do Desenvolvimento Sustentável: igualdade de género


Na mensagem «0080» foram genericamente apresentados os dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que as Nações Unidas propuseram aos governos e aos cidadãos do mundo cumprir entre 2015 e 2030.
Na mensagem «0154» referi o primeiro desses objectivos, erradicar a pobreza, na «0157» o segundo, erradicar a fome, na «0169» o terceiro, saúde de qualidade e na «0176» o quarto, educação de qualidade.

O 5º desses objectivos é:




Objetivo 5: Igualdade de género


Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas, em toda parte.
Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos.
Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e envolvendo crianças, bem como as mutilações genitais femininas.
Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade partilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais.
Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, económica e pública.
Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão.
Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos económicos, bem como o acesso à propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais.
Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres.
Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de género e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis.

Hoje, 8 de Junho, é Dia Mundial dos Oceanos, tendo as Nações Unidas escolhido como um dos temas centrais para esta celebração O género e o oceano.
Os argumentos resumidamente apresentados para esta escolha referem que:
·      as mulheres e as crianças têm um risco 14 vezes superior de ser atingidas pelas catástrofes naturais (e as perturbações provocadas pelas mudanças climáticas atingem, em particular, as costas marítimas);
·      os conhecimentos sobre o mar e as pescas são transmitidos quer por via paterna quer por via materna;
·      metade dos trabalhadores na aquacultura são mulheres, que recebem apenas 64 % do que os homens recebem como salário, tendo ainda menor acesso aos cargos onde são tomadas as decisões;
·      só 2 % dos 1,2 milhões de marinheiros são mulheres;
·      só 24 % dos membros dos parlamentos e 38 % dos cientistas marinhos são mulheres.


São argumentos importantes.
Mas, parece-me, têm pelo menos dois pontos fracos:
·      a participação nas decisões deve ser garantida a todas as mulheres (e a todos os homens) e não defendida apenas para que umas e outros disponham de cargos representativos;
·    não se deve pressupor uma igualdade percentual de género em toda e qualquer profissão (50 % de mulheres, 50 % de homens), mas sim combater qualquer sinal de descriminação no acesso profissional (do tipo: elas querem, eles não deixam; ou vice-versa).

Fonte: sítio da Nações Unidas (para o Dia Mundial dos Oceanos)

domingo, 2 de junho de 2019

[0177] Um diagnóstico precoce do «princípio meritocrático»


O sociólogo britânico Michael Young (1915-2002) publicou em 1958 um ensaio prospectivo a que chamou The Rise of the Meritocracy.
Escreveu-o como um livro de ficção científica, no qual um sociólogo, em 2033, analisa a estratificação social resultante de uma longa e sistemática aplicação do princípio meritocrático a toda a população, através das escolas:



Emmanuel Todd (nascido em 1951) citou desse ensaio o seguinte pedaço:

Segundo as novas regras, a divisão entre classes revelou-se mais forte do que era segundo as antigas; o estatuto das classes superiores é, doravante, mais elevado, o das inferiores, mais baixo. […] Todos os historiadores sabem que o conflito de classe era endémico na época anterior ao reinado do mérito, e poderia esperar-se, tendo em vista a sua experiência passada, que o abaixamento rápido do estatuto de uma classe social conduzisse necessariamente ao agravamento dos conflitos. Donde a questão: porque é que as alterações do século passado não conduziram a uma tal situação? Porque é que a sociedade é estável apesar do fosso que se amplia entre o seu topo e a sua base?
A razão fundamental para tal facto é que a estratificação social é agora, de acordo com a ideia de mérito, aceite a todos os níveis da sociedade. Há um século, as classes inferiores tinham a sua própria ideologia – nos seus traços essenciais, aquela que hoje em dia se tornou dominante – e podiam utilizá-la para elas próprias progredirem e para atacarem os seus dominantes. Negavam a legitimidade da posição das classes superiores. Com o novo princípio, as classes inferiores já não podem, contudo, ter uma ideologia específica oposta ao ethos social dominante, do mesmo modo como as ordens inferiores não a tinham no período áureo do feudalismo. Na medida em que, tanto na base como no topo da sociedade, se admite que o mérito deve reinar, os membros das classes inferiores podem quando muito contestar o modo como a seleção foi efetuada, mas não opor-se a uma norma a que todos aderem. Nada de chocante neste estádio. Não cumpriríamos todavia o nosso dever de sociólogos se nos esquivássemos no momento de sublinhar que a aceitação generalizada do mérito como árbitro apenas pode condenar ao desespero e à impotência todos aqueles, e são numerosos, que não têm mérito …

Fonte: Todd (2018; pp. 309-311)
Imagem: Wikipédia (em inglês)

quarta-feira, 29 de maio de 2019

[0176] Sobre o quarto Objectivo do Desenvolvimento Sustentável: Educação de Qualidade


Na mensagem «0080» foram genericamente apresentados os dezassete Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que as Nações Unidas propuseram aos governos e aos cidadãos do mundo cumprir entre 2015 e 2030.
Na mensagem «0154» foi apresentado o primeiro desses objectivos, erradicar a pobreza, na «0157» o segundo, erradicar a fome, e na «0169» o terceiro, saúde de qualidade.

O quarto desses objectivos foi-nos apresentado assim em https://unric.org/pt/objetivos-de-desenvolvimento-sustentavel:


Objetivo 4: Educação de qualidade


Até 2030, garantir que todas as meninas e meninos completam o ensino primário e secundário que deve ser de acesso livre, equitativo e de qualidade, e que conduza a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes
Até 2030, garantir que todas as meninas e meninos tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na primeira fase da infância, bem como cuidados e educação pré-escolar, de modo que estejam preparados para o ensino primário
Até 2030, assegurar a igualdade de acesso para todos os homens e mulheres à educação técnica, profissional e superior de qualidade, a preços acessíveis, incluindo à universidade
Até 2030, aumentar substancialmente o número de jovens e adultos que tenham habilitações relevantes, inclusive competências técnicas e profissionais, para emprego, trabalho decente e empreendedorismo
Até 2030, eliminar as disparidades de género na educação e garantir a igualdade de acesso a todos os níveis de educação e formação profissional para os mais vulneráveis, incluindo as pessoas com deficiência, povos indígenas e crianças em situação de vulnerabilidade
Até 2030, garantir que todos os jovens e uma substancial proporção dos adultos, homens e mulheres, sejam alfabetizados e tenham adquirido o conhecimento básico de matemática
Até 2030, garantir que todos os alunos adquiram conhecimentos e habilidades necessárias para promover o desenvolvimento sustentável, inclusive, entre outros, por meio da educação para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida sustentáveis, direitos humanos, igualdade de género, promoção de uma cultura de paz e da não violência, cidadania global e valorização da diversidade cultural e da contribuição da cultura para o desenvolvimento sustentável
Construir e melhorar instalações físicas para educação, apropriadas para crianças e sensíveis às deficiências e à igualdade de género, e que proporcionem ambientes de aprendizagem seguros e não violentos, inclusivos e eficazes para todos
Até 2020, ampliar substancialmente, a nível global, o número de bolsas de estudo para os países em desenvolvimento, em particular os países menos desenvolvidos, pequenos Estados insulares em desenvolvimento e os países africanos, para o ensino superior, incluindo programas de formação profissional, de tecnologia da informação e da comunicação, técnicos, de engenharia e programas científicos em países desenvolvidos e outros países em desenvolvimento
Até 2030, aumentar substancialmente o contingente de professores qualificados, inclusive por meio da cooperação internacional para a formação de professores, nos países em desenvolvimento, especialmente os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento

Não é fácil definir o que é qualidade da educação. Mas é possível fazer uma ideia sobre onde ela existe, e em que grau, pensando no critério implícito no seguinte poema:

É tão bom ser pequenino
Ter pai, ter mãe, ter avós
Ter esperança no destino
E ter quem goste de nós

Fonte: o poema é de Barbosa e foi escolhido pelo fadista Carlos do Carmo para figurar numa das introduções ao 1º CD da colecção «100 anos de Fado (1904-2004)» editada pelo jornal «Público»

segunda-feira, 27 de maio de 2019

[0175] Um estudo sobre o estado crítico da nossa relação com a Natureza

A Intergovernmental Platform for Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES) divulgou no início de Maio um relatório sobre o estado actual da relação entre as Sociedades Humanas e a Natureza.
Entre as muitas conclusões preocupantes figura a descrição dos grupos de espécies em risco de extinção:




Selecionando os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável mais associados às questões naturais e, para cada um deles, alguns indicadores que descrevem como tem evoluído a sua concretização, as conclusões do relatório são também preocupantes.
Eis o que aí é resumido relativamente aos três primeiros objectivos (referidos nas mensagens «0154», «0157» e «0169» deste blogue):





Fonte: sítio da Intergovernmental Platform for Biodiversity and Ecosystem Services

quinta-feira, 23 de maio de 2019

0174] Um novo Renascimento, um novo Iluminismo?

Deve ter sido em 1959-60, ou em 1960-61, que ouvi numa aula de Português o professor Vergílio Ferreira (1916 - 1996) dizer à minha turma: há actualmente condições para que venha a acontecer um novo Renascimento.
Eu e os meus colegas já tínhamos uma ideia, vinda das aulas de História, sobre o que fora o primeiro Renascimento, pelo que o anúncio de que um segundo era possível significou (para pelo menos alguns de nós) uma chamada de atenção para as mudanças em que as sociedades permanentemente estão envolvidas: e esta, se acontecesse, seria particularmente interessante. Um miúdo com cerca de 14 anos não o esquece.

Acabei há poucas semanas de ler um livro do biólogo Edward O. Wilson (nascido em 1929), Homo Creator, onde ele afirma que “a humanidade ainda é arrastada por paixões animais num mundo digitalizado e global”; e como nós “estamos em conflito entre aquilo que somos e aquilo em que nos queremos tornar” e “submersos por informação” mas faltando com a “sabedoria” em falta, “seria apropriado colocar de novo a filosofia na sua primitiva posição de destaque, desta vez como centro de uma ciência humanista e de humanidades científicas.




Segundo este novo anúncio sobre o futuro, ou tão só desejo que ele aconteça, não estaríamos na eminência de um Renascimento, mas sim necessitados de uma Filosofia que desempenhasse o papel que já desempenhou em dois outros surtos de criatividade a que a “civilização ocidental” assistiu, tendo cada um deles durado cerca de 150 anos, e que ocorreram, citando Anthony Gottlieb, “O primeiro na Atenas de Sócrates, Platão e Aristóteles, de meados do século V até finais do século IV a.C.. O segundo foi no Norte da Europa, no seguimento das guerras de religião e da ascensão da ciência de Galileu. Estendeu-se desde a década de 1630 até às vésperas da Revolução Francesa, no final do século XVIII. Nesse período de tempo relativamente curto, Descartes, Hobbes, Espinosa, Locke, Leibniz, Hume, Rousseau e Voltaire - isto é, a maioria dos filósofos modernos mais conhecidos – deixaram a sua marca.”
Para Wilson, serão os “cientistas e os estudiosos das humanidades” que fundamentarão esta “nova filosofia”, de que “resultará o Terceiro Iluminismo. Ao contrário dos primeiros dois, este pode perdurar. Se isso acontecer, aproximará a nossa espécie da oração pela razão inscrita por Diógenes, e ainda visível na sua forma original no Pórtico de Oinoanda, na antiga região grega da Lícia.
Em especial aqueles que são chamados estrangeiros, e que na realidade não são estrangeiros. Porque, apesar de as várias regiões da Terra atribuírem a pessoas diferentes um país diferente, em toda a parte as pessoas têm um único país – a Terra inteira – e uma só casa – o mundo.

A preocupação subjacente a este augúrio de Wilson, tal como ao do meu saudoso professor, é a mesma. Mas eu prefiro claramente a de Vergílio Ferreira, talvez porque a imagino mais aberta à participação de todos, e menos baseada na Ciência, que proporciona «conhecimento», mas não «valores» (que só os colectivos de cidadãos podem definir).

Fonte: livro de Wilson (2018; pp. 191-194)

quinta-feira, 16 de maio de 2019

[0173] A inauguração dos Estudos Gerais Livres por Agostinho da Silva


O Diário de Lisboa de 4 de Maio de 1989 presenteou-nos, na página 7, com a seguinte reportagem, escrita por Maria Antónia Martinho e ilustrada com uma fotografia de Francisco Paraíso:


Eis o que essa reportagem nos contou:

«As nossas escolas são como Academias Militares onde recebemos ordens, andamos a passo e transportamos prontamente os nossos equipamentos». Por fundo (profundo) o «horizonte do sonho e do ideal». Por tema, os Estudos Gerais, o ensino … até a Universidade. A mediação, essa «aventura enorme da epopeia lusíada» exposta como só um «inapto para estas coisas dos protocolos» ousa conseguir. Agostinho da Silva, como sempre, prendeu o auditório, fez da palavra metáfora, brincou com a história fazendo rodar estórias como um imenso caleidoscópio. Sobretudo «subverteu» … o que é natural para quem quer «mudar o eixo do centro do mundo». Aconteceu ontem, no auditório (repleto) do Museu Nacional de Arte Antiga. Estava dado o primeiro passo do ciclo de conferências dessa outra «subversão» institucional: os Estudos Gerais Livres».
Chamemos-lhe «cerimónia» … Mário Soares esteve lá.

A cultura portuguesa face ao desenvolvimento da genericamente designada «europeia», os mares e os barcos por onde navegaram, deram a Agostinho da Silva todos os caminhos possíveis para percorrer esse outro que se situa ao nível do que é isso de ser ou ter sido português na história mais alargada do pensamento e filosofia ocidentais.
Tema de fundo, tantas vezes tratado de forma subtil, quase sarcástica, mas a que o auditório correspondeu numa cumplicidade de entendimentos aparentemente gerada, o modo de se encarar «o que é isso da cultura», e de que meios «ela» se socorre para ser transmitida.
Uma outra tradição, uma outra forma de manifestação de saber, do Saber, um poder de comunicação mais que no gesto, sobretudo na palavra, teve em Agostinho da Silva um exemplar tradutor, que (felizmente) se mantem à margem de certo tipo de «iniciações» vigentes.
Falar de «Estudos Gerais» deve custar sem preencher na memória esse espaço da história dos reis de um povo ocupado pelo «Lavrador», também poeta, de nome Dinis.
E foi justamente tomando um poema do rei que Agostinho da Silva, dedicando-o ao prof. Viegas Guerreiro – mentor e presidente da direcção dos «Estudos Gerais Livres» - começou por «dissertar» mais que a sua nostalgia de um tempo algo perdido, sobretudo a sua imensa força de falar das coisas.
«Vai como eu queria ao povo» … as palavras do rei, o desejo de Agostinho projectado na intenção dos «Estudos».
Essa «realeza aberta» - como o mestre caracterizou o reinado de D. Dinis – teve o eco, e os olhos postos do auditório, na gargalhada do «príncipe», o Presidente, (ainda) mais de aquém que de além mares.
A passagem pela cultura e filosofia gregas, acrescentada com a extensa evocação de Camões, ajudaram a trazer o brilho à atitude dos portugueses pelo seu «desenvolvimento daquilo que os antigos tinham realizado», Tal como os gregos, no fundo, também os portugueses «foram educados para a vida pelo prazer de aprender da vida» … mas «com mais liberdade».
«Sempre nos educámos mais na vida que na escola», sustentou Agostinho da Silva, sublinhando o papel da modificação da Europa, fortemente marcada pelos Descobrimentos Portugueses, por esse «andar de mãos dadas» da aventura e da ciência» que sempre caracterizou os «lusíadas».

A «inocência», o «imediato» e o «imprevisto»

Se algo pode, irreversivelmente, marcar essa «forma de ser e de estar» dos portugueses, é, na perspectiva de Agostinho da Silva, aquilo que «mais tratámos de desenvolver dentro de cada um de nós: a resposta do imediato, a busca da imprevisibilidade, a espera e o desejo que aconteça o imprevisível».
«Portugal é o único país onde ainda se alberga a inocência. O português é lírico, pois é … mas o que rima com lírico é pragmático».
E é entre estas duas dimensões que Agostinho da Silva joga a sua «aposta», preenche o seu imaginário (?): «viver alegre e tranquilamente numa sociedade desorganizada como jamais se conseguiu no mundo da organização» … o nosso.
«A vida seria insuportável se tudo acontecesse como se já tivesse acontecido. Era uma enorme chatice se existisse a fórmula matemática do acaso!»
Percorre a alegria do Brasil (um outro Portugal?! … então a nossa «pátria» não é a língua portuguesa?) e a sua (deles) tendência para a «desorganização», essa que «até dá um jeito pr`o samba», que «espera que a desorganização se desorganize mais».
«É cada vez mais necessário pensar numa política do eixo do centro do mundo … o que eu acho que está mal é o eixo do centro do mundo. Alterado este, poderemos enfim contemplar o horizonte do nosso sonho e do nosso ideal».
A dispersão, aparente, do discurso de Agostinho da Silva, centraliza-se nesse outro horizonte que comunga e de que faz parte: o problema da alteração da transmissão da cultura e a suposta necessidade de, para a fazer chegar «a todos, ao povo», passar para além das «malhas» que a instituição tece.
Estamos no mundo do ensino instaurado «numa economia de mercado».

Uma escola para os «desempregados»

A contraposição de um certo ensino vigente nas nossas Universidades e da proposta dos Estudos Gerais Livres – o levar de uma forma absolutamente gratuita o ensino a todos quantos estejam desejosos de aprender, por professores e mestres nas mais variadas matérias e sem provas de admissão ou aproveitamento – foi o momento «mais alto» da conferência de Agostinho da Silva que inaugurou o ciclo de sessões desta «associação de estudiosos».
«O mundo tem uma multidão de crianças que já nascem desempregadas, mas que se vêem na iminência de ter que aprender na escola uma profissão que nunca vão ter na vida».
«Sabendo que não vão ter um emprego, prosseguiu o mestre, estes meninos nunca mais vão querer aprender as respostas para a vida, mas antes as perguntas para aquilo que entendem ser verdadeiramente importante para a vida».
A «brincadeira» serviu a Agostinho da Silva para frisar «essa coisa extraordinária que Viegas Guerreiro e seus companheiros estão a realizar com os Estudos Gerais Livres, trazendo a todos aquilo que só é acessível a alguns nas Universidades».
A «necessidade de que este projecto se estenda a todo o país» tem igualmente em linha de conta o facto das nossas universidades continuarem a não dar resposta a muitos dos problemas que se colocam, em termos de ensino, aos portugueses em geral. São, por um lado, tal como sustentam os animadores dos Estudos Gerais Livres, as questões de natureza legal, mas pesam aqui também as desigualdades sociais que não permitem o acesso ao ensino – sobretudo universitário – igual para todos.

«É triste termos a Universidade sujeita às leis do mercado», afirmou Agostinho da Silva. «É um absurdo saber que a matemática e a física têm um preço, tal como a maçã, e que a filosofia e a teologia sejam vendidas como carne de porco!».

A ideia de lançar os Estudos Gerias Livres, e o modo como Agostinho da Silva alargadamente os encarou, são historicamente muito interessantes. Mas hoje, dispondo de mais 40 anos de vida em comum, impõe-se que o encaremos sob um ponto de vista crítico. Porquê?!

Fonte
: sítio da Casa Comum (onde é possível consultar todos os números do «Diário de Lisboa»)