O Diário de Lisboa de 4 de Maio de 1989 presenteou-nos,
na página 7, com a seguinte reportagem, escrita por Maria Antónia Martinho e ilustrada
com uma fotografia de Francisco Paraíso:
Eis o que essa reportagem nos contou:
«As nossas escolas são como Academias
Militares onde recebemos ordens, andamos a passo e transportamos prontamente os
nossos equipamentos». Por fundo (profundo) o «horizonte do sonho e do ideal».
Por tema, os Estudos Gerais, o ensino … até a Universidade. A mediação, essa
«aventura enorme da epopeia lusíada» exposta como só um «inapto para estas
coisas dos protocolos» ousa conseguir. Agostinho da Silva, como sempre, prendeu
o auditório, fez da palavra metáfora, brincou com a história fazendo rodar
estórias como um imenso caleidoscópio. Sobretudo «subverteu» … o que é natural
para quem quer «mudar o eixo do centro do mundo». Aconteceu ontem, no auditório
(repleto) do Museu Nacional de Arte Antiga. Estava dado o primeiro passo do
ciclo de conferências dessa outra «subversão» institucional: os Estudos Gerais
Livres».
Chamemos-lhe «cerimónia» … Mário Soares
esteve lá.
A cultura portuguesa face ao desenvolvimento
da genericamente designada «europeia», os mares e os barcos por onde navegaram,
deram a Agostinho da Silva todos os caminhos possíveis para percorrer esse
outro que se situa ao nível do que é isso de ser ou ter sido português na
história mais alargada do pensamento e filosofia ocidentais.
Tema de fundo, tantas vezes tratado de forma
subtil, quase sarcástica, mas a que o auditório correspondeu numa cumplicidade de
entendimentos aparentemente gerada, o modo de se encarar «o que é isso da
cultura», e de que meios «ela» se socorre para ser transmitida.
Uma outra tradição, uma outra forma de
manifestação de saber, do Saber, um poder de comunicação mais que no gesto,
sobretudo na palavra, teve em Agostinho da Silva um exemplar tradutor, que
(felizmente) se mantem à margem de certo tipo de «iniciações» vigentes.
Falar de «Estudos Gerais» deve custar sem
preencher na memória esse espaço da história dos reis de um povo ocupado pelo
«Lavrador», também poeta, de nome Dinis.
E foi justamente tomando um poema do rei que
Agostinho da Silva, dedicando-o ao prof. Viegas Guerreiro – mentor e presidente
da direcção dos «Estudos Gerais Livres» - começou por «dissertar» mais que a
sua nostalgia de um tempo algo perdido, sobretudo a sua imensa força de falar
das coisas.
«Vai como eu queria ao povo» … as palavras
do rei, o desejo de Agostinho projectado na intenção dos «Estudos».
Essa «realeza aberta» - como o mestre
caracterizou o reinado de D. Dinis – teve o eco, e os olhos postos do auditório,
na gargalhada do «príncipe», o Presidente, (ainda) mais de aquém que de além
mares.
A passagem pela cultura e filosofia gregas,
acrescentada com a extensa evocação de Camões, ajudaram a trazer o brilho à
atitude dos portugueses pelo seu «desenvolvimento daquilo que os antigos tinham
realizado», Tal como os gregos, no fundo, também os portugueses «foram educados
para a vida pelo prazer de aprender da vida» … mas «com mais liberdade».
«Sempre nos educámos mais na vida que na escola»,
sustentou Agostinho da Silva, sublinhando o papel da modificação da Europa,
fortemente marcada pelos Descobrimentos Portugueses, por esse «andar de mãos
dadas» da aventura e da ciência» que sempre caracterizou os «lusíadas».
A «inocência»,
o «imediato» e o «imprevisto»
Se algo pode, irreversivelmente, marcar
essa «forma de ser e de estar» dos portugueses, é, na perspectiva de Agostinho
da Silva, aquilo que «mais tratámos de desenvolver dentro de cada um de nós: a
resposta do imediato, a busca da imprevisibilidade, a espera e o desejo que
aconteça o imprevisível».
«Portugal é o único país onde ainda se
alberga a inocência. O português é lírico, pois é … mas o que rima com lírico é
pragmático».
E é entre estas duas dimensões que
Agostinho da Silva joga a sua «aposta», preenche o seu imaginário (?): «viver
alegre e tranquilamente numa sociedade desorganizada como jamais se conseguiu
no mundo da organização» … o nosso.
«A vida seria insuportável se tudo
acontecesse como se já tivesse acontecido. Era uma enorme chatice se existisse
a fórmula matemática do acaso!»
Percorre a alegria do Brasil (um outro
Portugal?! … então a nossa «pátria» não é a língua portuguesa?) e a sua (deles)
tendência para a «desorganização», essa que «até dá um jeito pr`o samba», que
«espera que a desorganização se desorganize mais».
«É cada vez mais necessário pensar numa
política do eixo do centro do mundo … o que eu acho que está mal é o eixo do
centro do mundo. Alterado este, poderemos enfim contemplar o horizonte do nosso
sonho e do nosso ideal».
A dispersão, aparente, do discurso de
Agostinho da Silva, centraliza-se nesse outro horizonte que comunga e de que
faz parte: o problema da alteração da transmissão da cultura e a suposta
necessidade de, para a fazer chegar «a todos, ao povo», passar para além das
«malhas» que a instituição tece.
Estamos no mundo do ensino instaurado «numa
economia de mercado».
Uma escola para
os «desempregados»
A contraposição de um certo ensino vigente
nas nossas Universidades e da proposta dos Estudos Gerais Livres – o levar de
uma forma absolutamente gratuita o ensino a todos quantos estejam desejosos de
aprender, por professores e mestres nas mais variadas matérias e sem provas de
admissão ou aproveitamento – foi o momento «mais alto» da conferência de
Agostinho da Silva que inaugurou o ciclo de sessões desta «associação de
estudiosos».
«O mundo tem uma multidão de crianças que já
nascem desempregadas, mas que se vêem na iminência de ter que aprender na
escola uma profissão que nunca vão ter na vida».
«Sabendo que não vão ter um emprego,
prosseguiu o mestre, estes meninos nunca mais vão querer aprender as respostas
para a vida, mas antes as perguntas para aquilo que entendem ser
verdadeiramente importante para a vida».
A «brincadeira» serviu a Agostinho da Silva
para frisar «essa coisa extraordinária que Viegas Guerreiro e seus companheiros
estão a realizar com os Estudos Gerais Livres, trazendo a todos aquilo que só é
acessível a alguns nas Universidades».
A «necessidade de que este projecto se
estenda a todo o país» tem igualmente em linha de conta o facto das nossas
universidades continuarem a não dar resposta a muitos dos problemas que se
colocam, em termos de ensino, aos portugueses em geral. São, por um lado, tal
como sustentam os animadores dos Estudos Gerais Livres, as questões de natureza
legal, mas pesam aqui também as desigualdades sociais que não permitem o acesso
ao ensino – sobretudo universitário – igual para todos.
«É triste termos a Universidade sujeita às
leis do mercado», afirmou Agostinho da Silva. «É um absurdo saber que a
matemática e a física têm um preço, tal como a maçã, e que a filosofia e a
teologia sejam vendidas como carne de porco!».
Fonte: sítio da Casa Comum (onde é possível consultar todos os números do «Diário de Lisboa»)
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