quinta-feira, 16 de maio de 2019

[0173] A inauguração dos Estudos Gerais Livres por Agostinho da Silva


O Diário de Lisboa de 4 de Maio de 1989 presenteou-nos, na página 7, com a seguinte reportagem, escrita por Maria Antónia Martinho e ilustrada com uma fotografia de Francisco Paraíso:


Eis o que essa reportagem nos contou:

«As nossas escolas são como Academias Militares onde recebemos ordens, andamos a passo e transportamos prontamente os nossos equipamentos». Por fundo (profundo) o «horizonte do sonho e do ideal». Por tema, os Estudos Gerais, o ensino … até a Universidade. A mediação, essa «aventura enorme da epopeia lusíada» exposta como só um «inapto para estas coisas dos protocolos» ousa conseguir. Agostinho da Silva, como sempre, prendeu o auditório, fez da palavra metáfora, brincou com a história fazendo rodar estórias como um imenso caleidoscópio. Sobretudo «subverteu» … o que é natural para quem quer «mudar o eixo do centro do mundo». Aconteceu ontem, no auditório (repleto) do Museu Nacional de Arte Antiga. Estava dado o primeiro passo do ciclo de conferências dessa outra «subversão» institucional: os Estudos Gerais Livres».
Chamemos-lhe «cerimónia» … Mário Soares esteve lá.

A cultura portuguesa face ao desenvolvimento da genericamente designada «europeia», os mares e os barcos por onde navegaram, deram a Agostinho da Silva todos os caminhos possíveis para percorrer esse outro que se situa ao nível do que é isso de ser ou ter sido português na história mais alargada do pensamento e filosofia ocidentais.
Tema de fundo, tantas vezes tratado de forma subtil, quase sarcástica, mas a que o auditório correspondeu numa cumplicidade de entendimentos aparentemente gerada, o modo de se encarar «o que é isso da cultura», e de que meios «ela» se socorre para ser transmitida.
Uma outra tradição, uma outra forma de manifestação de saber, do Saber, um poder de comunicação mais que no gesto, sobretudo na palavra, teve em Agostinho da Silva um exemplar tradutor, que (felizmente) se mantem à margem de certo tipo de «iniciações» vigentes.
Falar de «Estudos Gerais» deve custar sem preencher na memória esse espaço da história dos reis de um povo ocupado pelo «Lavrador», também poeta, de nome Dinis.
E foi justamente tomando um poema do rei que Agostinho da Silva, dedicando-o ao prof. Viegas Guerreiro – mentor e presidente da direcção dos «Estudos Gerais Livres» - começou por «dissertar» mais que a sua nostalgia de um tempo algo perdido, sobretudo a sua imensa força de falar das coisas.
«Vai como eu queria ao povo» … as palavras do rei, o desejo de Agostinho projectado na intenção dos «Estudos».
Essa «realeza aberta» - como o mestre caracterizou o reinado de D. Dinis – teve o eco, e os olhos postos do auditório, na gargalhada do «príncipe», o Presidente, (ainda) mais de aquém que de além mares.
A passagem pela cultura e filosofia gregas, acrescentada com a extensa evocação de Camões, ajudaram a trazer o brilho à atitude dos portugueses pelo seu «desenvolvimento daquilo que os antigos tinham realizado», Tal como os gregos, no fundo, também os portugueses «foram educados para a vida pelo prazer de aprender da vida» … mas «com mais liberdade».
«Sempre nos educámos mais na vida que na escola», sustentou Agostinho da Silva, sublinhando o papel da modificação da Europa, fortemente marcada pelos Descobrimentos Portugueses, por esse «andar de mãos dadas» da aventura e da ciência» que sempre caracterizou os «lusíadas».

A «inocência», o «imediato» e o «imprevisto»

Se algo pode, irreversivelmente, marcar essa «forma de ser e de estar» dos portugueses, é, na perspectiva de Agostinho da Silva, aquilo que «mais tratámos de desenvolver dentro de cada um de nós: a resposta do imediato, a busca da imprevisibilidade, a espera e o desejo que aconteça o imprevisível».
«Portugal é o único país onde ainda se alberga a inocência. O português é lírico, pois é … mas o que rima com lírico é pragmático».
E é entre estas duas dimensões que Agostinho da Silva joga a sua «aposta», preenche o seu imaginário (?): «viver alegre e tranquilamente numa sociedade desorganizada como jamais se conseguiu no mundo da organização» … o nosso.
«A vida seria insuportável se tudo acontecesse como se já tivesse acontecido. Era uma enorme chatice se existisse a fórmula matemática do acaso!»
Percorre a alegria do Brasil (um outro Portugal?! … então a nossa «pátria» não é a língua portuguesa?) e a sua (deles) tendência para a «desorganização», essa que «até dá um jeito pr`o samba», que «espera que a desorganização se desorganize mais».
«É cada vez mais necessário pensar numa política do eixo do centro do mundo … o que eu acho que está mal é o eixo do centro do mundo. Alterado este, poderemos enfim contemplar o horizonte do nosso sonho e do nosso ideal».
A dispersão, aparente, do discurso de Agostinho da Silva, centraliza-se nesse outro horizonte que comunga e de que faz parte: o problema da alteração da transmissão da cultura e a suposta necessidade de, para a fazer chegar «a todos, ao povo», passar para além das «malhas» que a instituição tece.
Estamos no mundo do ensino instaurado «numa economia de mercado».

Uma escola para os «desempregados»

A contraposição de um certo ensino vigente nas nossas Universidades e da proposta dos Estudos Gerais Livres – o levar de uma forma absolutamente gratuita o ensino a todos quantos estejam desejosos de aprender, por professores e mestres nas mais variadas matérias e sem provas de admissão ou aproveitamento – foi o momento «mais alto» da conferência de Agostinho da Silva que inaugurou o ciclo de sessões desta «associação de estudiosos».
«O mundo tem uma multidão de crianças que já nascem desempregadas, mas que se vêem na iminência de ter que aprender na escola uma profissão que nunca vão ter na vida».
«Sabendo que não vão ter um emprego, prosseguiu o mestre, estes meninos nunca mais vão querer aprender as respostas para a vida, mas antes as perguntas para aquilo que entendem ser verdadeiramente importante para a vida».
A «brincadeira» serviu a Agostinho da Silva para frisar «essa coisa extraordinária que Viegas Guerreiro e seus companheiros estão a realizar com os Estudos Gerais Livres, trazendo a todos aquilo que só é acessível a alguns nas Universidades».
A «necessidade de que este projecto se estenda a todo o país» tem igualmente em linha de conta o facto das nossas universidades continuarem a não dar resposta a muitos dos problemas que se colocam, em termos de ensino, aos portugueses em geral. São, por um lado, tal como sustentam os animadores dos Estudos Gerais Livres, as questões de natureza legal, mas pesam aqui também as desigualdades sociais que não permitem o acesso ao ensino – sobretudo universitário – igual para todos.

«É triste termos a Universidade sujeita às leis do mercado», afirmou Agostinho da Silva. «É um absurdo saber que a matemática e a física têm um preço, tal como a maçã, e que a filosofia e a teologia sejam vendidas como carne de porco!».

A ideia de lançar os Estudos Gerias Livres, e o modo como Agostinho da Silva alargadamente os encarou, são historicamente muito interessantes. Mas hoje, dispondo de mais 40 anos de vida em comum, impõe-se que o encaremos sob um ponto de vista crítico. Porquê?!

Fonte
: sítio da Casa Comum (onde é possível consultar todos os números do «Diário de Lisboa») 

Sem comentários:

Enviar um comentário