António Betâmio de Almeida, meu
colega nos estudos universitários, …
… explicou assim, no jornal Público, as razões pelas quais
considera que A
«tecnologia» é também uma palavra:
“As palavras ganham.”
(P. Eluard e A. Breton, 1938)
No Verão de 1962, Martin
Heidegger proferiu a conferência com o título “Língua de tradição e língua
técnica”, o qual não designava apenas uma oposição. Fazia alusão a um perigo que
ameaçaria a humanidade no mais íntimo da sua essência. Com o texto seminal “A
questão da técnica” (conferência proferida em 1953 na Escola Superior Técnica
de Munique), Heidegger confronta-nos com a essência da técnica e o ser do
Homem. Na sua obra, analisa o que designa por fase tardia da modernidade, a era
da técnica. Um período da história que o filósofo descreve como o do fim da
metafísica. Em 2021, Heidegger falaria de uma era da tecnologia?
Meditar exige palavras e há
palavras que suscitam questionamento e meditação. Como estudante no Instituto
Superior Técnico (IST ou o Técnico), o nome do Massachusetts Institute of
Technology (MIT) dos EUA fez-me questionar: qual era a diferença entre técnica
e tecnologia? A resposta à época era simples: resultaria da cultura
anglo-saxónica e da desvalorização nela do termo técnico. A nível da engenharia
seria então tecnologia para a América e técnica para a Europa continental.
Coisas das línguas e das culturas, pensei eu. Aconteceu, entretanto, a invasão
de palavras e ideias que, como magia, criaram usos e significados novos.
Tecnologia foi uma delas e o questionamento voltou a justificar-se.
Sabemos que o saber-fazer para
atingir objectivos e para nos protegermos e sobrevivermos é a característica
milenar da técnica. O termo deriva de uma palavra grega que designa o que
pertence à “techné”. O significado etimológico da palavra tecnologia é
conhecimento da técnica, como ocorre com biologia, sociologia ou pedagogia. O
termo foi utilizado na Europa pelo menos desde o século XVII, mas em meados do
século XIX o seu uso decaiu, em especial na Alemanha. K. Marx desenvolveu em
profundidade (O Capital, 1867-1894) a relação da técnica com o trabalho e
escreveu que o processo de produção desconsiderou “a mão humana” e criou “esta
ciência toda moderna que é a tecnologia”. A actual tecnologia ampliou o seu
âmbito e, no presente, é muito mais do que entrelaçamento da ciência com a
técnica (ciência técnica ou tecnociência), a investigação e o desenvolvimento.
É tudo isso mais inovação, no âmbito empresarial e do mercado, tida como a
chave do crescimento económico e da competitividade. Uma inovação salvífica e
desejada sem limites e permanente. Será possível e desejável?
É bem conhecida a influência das
grandes modificações técnicas nos ciclos económicos, ou “ondas de destruição
criativa” (à Schumpeter): uma característica da tecnoeconomia. Mas a tecnologia
actual tem uma envolvente social, psicológica, cultural e militar complexa e,
por vezes, oculta: o sucesso dos produtos não depende só das suas
características intrínsecas ou utilidade, mas também (e muito) de factores
extrínsecos. Acresce ainda o comportamento humano ancestral como receptor de
novidades artificiais, talvez explicável pela antropologia. Um reconhecimento
de vantagens indiscutíveis mesclado com adaptação forçada e desejo pueril de
poder e diferenciação.
A cultura americana exporta com
frequência aforismos oportunos. É o caso do dilema de Collingridge (1981): “Os
efeitos sociais de uma tecnologia não podem ser previstos no início. Quando são
identificados, já fazem parte do sistema social e económico e o controlo
torna-se difícil.” Ou seja, nas novas tecnologias “sobrestimamos os efeitos
positivos a curto prazo e subestimamos os efeitos a longo prazo” (lei de Roy
Amara, 2006), o que dificulta a designada “inovação responsável”. Nalguns
casos, a ética e a regulação conseguiram um controlo, noutros casos há efeitos
do passado que são, no presente, crises reveladas: as alterações climáticas e
os efeitos das tecnologias do petróleo, dos plásticos e dos carros nas cidades.
Mas, nesta época de transições, pretende-se emendar os males de tecnologias
antigas e incrementar as novas, como as biotecnologias, a nanotecnologia, o
digital e a inteligência artificial, entre outras. O risco poderá agora estar
na essência da própria Humanidade. Se a revolução industrial fez perder a “mão
humana”, a nova revolução pode fazer desconsiderar a mente, a sensibilidade, a
inteligência e outras prerrogativas humanas. Entre tecnofilia e tecnofobia há
que saber desenvolver a tecnoprudência.
As novas tecnologias
impulsionaram movimentos revolucionários, entre o libertarismo (uma herança hippie com rejeição de autoridade e de
intermediários), a economia verde descentralizada ou um radicalismo neoliberal
de direita. Impulsionaram o voluntarismo da OCDE no imperativo da “nova”
inovação para o crescimento (relatório de 2015) e que, em 2021, empolga (por
vezes com uma candura desarmante) dirigentes e políticos da União Europeia. Mas
será que a economia comprova esse desiderato? Recorremos a estatísticas e
análises e encontramos uma síntese actual da influência da tecnologia na
economia mundial (P. Artus e M. P. Virard, La Derniére Chance du Capitalisme,
2021). Três conclusões nos países ricos ocidentais: 1) ineficácia crescente do
desenvolvimento tecnológico (aumento das despesas e do poder dos monopólios);
2) obsolescência do capital pela aceleração da mudança que desencoraja o
investimento; e 3) concentração de riqueza e aumento de desigualdades com estagnação
de rendimentos da classe média que não acompanham a produtividade prometida.
As preocupações não devem
incidir só nos produtos técnicos, mas também nas restantes dimensões
interligadas que moldam permanentemente a sociedade. A tecnologia não é só uma
palavra, nem só um conceito ou processo, é também uma ideologia, com muitas
palavras, que marca a nossa época. Será que as palavras ganham sempre
Só acrescentaria, ao que o «Betâmio» (tal como os colegas
lhe chamavam) escreveu, que a «tecnologia» é uma das muitas palavras que há
muito deixou de ser inocente …
Fonte: opinião
de António Betâmio de Almeida no jornal Público (2021)
Fotografia: retirada
de https://fenix.tecnico.ulisboa.pt/homepage/ist10706