Nas mensagens «0208» e «0210» não hesitei, por experiência
própria, em admitir a existência de um descontentamento
em relação à escola:
Li há dias no jornal «Público» um artigo de opinião que
reforçou a minha convicção de que esse desconforto não diz respeito apenas à
educação, fazendo antes parte de um fenómeno muito mais abrangente. O autor
deste artigo, o médico Barros Veloso, interroga-se sobre se os sinais de alarme e o descontentamento que existem em relação
ao Sistema
Nacional de Saúde (SNS) são, ou não são, sintomas que nos estão a
chamar a atenção para os aspectos negativos das profundas “transformações”
cujos efeitos só agora começaram a fazer-se sentir. E descreve-as assim:
“Durante as
últimas quatro décadas deram-se grandes mudanças: a Medicina foi substituída
pela Saúde e, a reboque, o médico transformou-se em profissional de saúde e o
doente em utente.”
“(…) a
Medicina, como Arte e Ofício, dirigida ao doente individual e irrepetível que
procura solução para a sua fragilidade, foi perdendo terreno para dar lugar à
Saúde cujo objectivo, segundo a OMS [Organização Mundial da Saúde], é o bem-estar
físico, psicológico e social, ou seja, uma felicidade utópica e colectiva que
compete aos políticos assegurar.
A Medicina do
doente concreto foi sendo substituída pela Saúde que, inspirada nas modernas
ciências sociais, trata doenças abstractas em consultas de hipertensão, de
colesterol, de osteoporose, de electrocardiogramas e de análises, a cargo de
médicos que, sem tempo para atender doentes, os enviam para as urgências. Em
vez da Medicina que valoriza o médico-de-carreira e o médico assistente, temos
agora a Saúde do médico anónimo, do médico-contratado, do médico-à-hora. Em vez
da Medicina que faz profilaxia das doenças cuja causa conhece, temos a Saúde
que anuncia planos ilusórios e globais de prevenção de doenças cujas causas se
desconhecem. Em vez da Medicina que avalia as urgências caso-a-caso, a Saúde
que obedece a algoritmos. Em vez da Medicina que analisa as mortes evitáveis
para as evitar, temos a Saúde que as investiga para sancionar.
Surgiu assim um
novo paradigma em que os médicos foram despojados de poder e em que as decisões
foram transferidas para os administradores, os gestores, os políticos e, com a
entrada em força das empresas privadas, o mundo dos negócios.
Pelo caminho
muito se perdeu: o médico de proximidade, o médico assistente, o médico de
cabeceira, que referencia o doente para outros médicos sem nunca o perder de
vista, e o médico disponível, com tempo e capacidade para discutir exames
complementares com os colegas das técnicas. Tudo isso, que é essencial, foi
desaparecendo em nome da produtividade e de uma suposta eficácia.
As
consequências destas mudanças não são fáceis de traduzir em estatísticas,
elaboradas quase sempre por burocratas que ignoram dados que só os médicos
sabem interpretar, a saber: erros de diagnóstico evitáveis, exames
desnecessários, efeitos iatrogénicos provocados por excessos de medicação,
falta de tempo para pensar, para reflectir, para ensinar. Mas é a avaliação
destes dados que melhor permite conhecer resultados e estabelecer a separação
entre Medicina, assente numa relação médico-doente, e Saúde, que trata de
doenças, percentagens, estatísticas.
Por tudo isto,
e face às ameaças que pairam sobre o SNS, é tempo de parar para reflectir antes
que esta crise se torne irreversível e se percam ingloriamente conquistas que
tanto custaram a concretizar.”
Se compararmos esta descrição com a feita acerca da actual escola
pelos educadores / autores / actores envolvidos na peça de teatro «Professar»,
o essencial é semelhante:
“No plano da
escola estão os horários, os currículos, as avaliações, os exames, as
frequências, o aproveitamento, o oportunismo, os requisitos e a eficiência mas,
no meio dessa enorme secretária, entalada entre essa alta pilha de papéis, será
difícil fazer caber uma criança.”
Tanto a relação entre médico e doente, como a relação entre
professor e aluno, como – plausivelmente - qualquer outra relação de interajuda
entre seres humanos, tem vindo a ser sujeira a imposições burocráticas que se
auto-justificam com a “produtividade” e com uma “suposta eficácia”. Talvez seja
isso que o escritor Gonçalo Tavares sentiu quando fez o seguinte desabafo:
“Hoje a coragem
tem, primeiro, de tirar um curso de especialização técnica. Se não o fizer será
coragem, sim, sempre, mas inconsequente. Diante de um conjunto de pessoas
fechadas num elevador parado por avaria, o homem mais corajoso do mundo irá
telefonar à assistência técnica - eis o sem-saída em que nos colocámos.”
Fonte: artigos
de opinião de Tavares (2013) e de Veloso (2020); livro de Soares e Duarte
(2020; pp. 44)
Imagem:
selecção de parte da usada na mensagem «0208»
Sem comentários:
Enviar um comentário