quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

[0212] O controlo burocrático dos profissionais e dos cidadãos


Nas mensagens «0208» e «0210» não hesitei, por experiência própria, em admitir a existência de um descontentamento em relação à escola:


Li há dias no jornal «Público» um artigo de opinião que reforçou a minha convicção de que esse desconforto não diz respeito apenas à educação, fazendo antes parte de um fenómeno muito mais abrangente. O autor deste artigo, o médico Barros Veloso, interroga-se sobre se os sinais de alarme e o descontentamento que existem em relação ao Sistema Nacional de Saúde (SNS) são, ou não são, sintomas que nos estão a chamar a atenção para os aspectos negativos das profundas “transformações” cujos efeitos só agora começaram a fazer-se sentir. E descreve-as assim:

“Durante as últimas quatro décadas deram-se grandes mudanças: a Medicina foi substituída pela Saúde e, a reboque, o médico transformou-se em profissional de saúde e o doente em utente.”
“(…) a Medicina, como Arte e Ofício, dirigida ao doente individual e irrepetível que procura solução para a sua fragilidade, foi perdendo terreno para dar lugar à Saúde cujo objectivo, segundo a OMS [Organização Mundial da Saúde], é o bem-estar físico, psicológico e social, ou seja, uma felicidade utópica e colectiva que compete aos políticos assegurar.
A Medicina do doente concreto foi sendo substituída pela Saúde que, inspirada nas modernas ciências sociais, trata doenças abstractas em consultas de hipertensão, de colesterol, de osteoporose, de electrocardiogramas e de análises, a cargo de médicos que, sem tempo para atender doentes, os enviam para as urgências. Em vez da Medicina que valoriza o médico-de-carreira e o médico assistente, temos agora a Saúde do médico anónimo, do médico-contratado, do médico-à-hora. Em vez da Medicina que faz profilaxia das doenças cuja causa conhece, temos a Saúde que anuncia planos ilusórios e globais de prevenção de doenças cujas causas se desconhecem. Em vez da Medicina que avalia as urgências caso-a-caso, a Saúde que obedece a algoritmos. Em vez da Medicina que analisa as mortes evitáveis para as evitar, temos a Saúde que as investiga para sancionar.
Surgiu assim um novo paradigma em que os médicos foram despojados de poder e em que as decisões foram transferidas para os administradores, os gestores, os políticos e, com a entrada em força das empresas privadas, o mundo dos negócios.
Pelo caminho muito se perdeu: o médico de proximidade, o médico assistente, o médico de cabeceira, que referencia o doente para outros médicos sem nunca o perder de vista, e o médico disponível, com tempo e capacidade para discutir exames complementares com os colegas das técnicas. Tudo isso, que é essencial, foi desaparecendo em nome da produtividade e de uma suposta eficácia.
As consequências destas mudanças não são fáceis de traduzir em estatísticas, elaboradas quase sempre por burocratas que ignoram dados que só os médicos sabem interpretar, a saber: erros de diagnóstico evitáveis, exames desnecessários, efeitos iatrogénicos provocados por excessos de medicação, falta de tempo para pensar, para reflectir, para ensinar. Mas é a avaliação destes dados que melhor permite conhecer resultados e estabelecer a separação entre Medicina, assente numa relação médico-doente, e Saúde, que trata de doenças, percentagens, estatísticas.
Por tudo isto, e face às ameaças que pairam sobre o SNS, é tempo de parar para reflectir antes que esta crise se torne irreversível e se percam ingloriamente conquistas que tanto custaram a concretizar.”

Se compararmos esta descrição com a feita acerca da actual escola pelos educadores / autores / actores envolvidos na peça de teatro «Professar», o essencial é semelhante:

“No plano da escola estão os horários, os currículos, as avaliações, os exames, as frequências, o aproveitamento, o oportunismo, os requisitos e a eficiência mas, no meio dessa enorme secretária, entalada entre essa alta pilha de papéis, será difícil fazer caber uma criança.”

Tanto a relação entre médico e doente, como a relação entre professor e aluno, como – plausivelmente - qualquer outra relação de interajuda entre seres humanos, tem vindo a ser sujeira a imposições burocráticas que se auto-justificam com a “produtividade” e com uma “suposta eficácia”. Talvez seja isso que o escritor Gonçalo Tavares sentiu quando fez o seguinte desabafo:

“Hoje a coragem tem, primeiro, de tirar um curso de especialização técnica. Se não o fizer será coragem, sim, sempre, mas inconsequente. Diante de um conjunto de pessoas fechadas num elevador parado por avaria, o homem mais corajoso do mundo irá telefonar à assistência técnica - eis o sem-saída em que nos colocámos.”

Fonte: artigos de opinião de Tavares (2013) e de Veloso (2020); livro de Soares e Duarte (2020; pp. 44)

Imagem: selecção de parte da usada na mensagem «0208»

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