quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

[0211] Mapas planos, globos terrestres e geopolítica no século XVI

Os Embaixadores, um óleo sobre tela de Hans Holbein, o jovem, actualmente na National Gallery, em Londres, mostra dois diplomatas franceses enquadrando um conjunto notável de instrumentos científicos do início do século XVI (um Globos Celeste, um Globo Terrestre, um Quadrante, dois Relógios de Sol, um Torquetum, …):


Datada de 1533, esta obra inspirou a Patricia Fara, historiadora da Ciência, o seguinte comentário: “A pintura de Holbein ilustra como a ciência experimental proveio do comércio e da política, mais do que da sua sede de conhecimento desinteressado.

O Globo Terrestre, discretamente pintado junto ao instrumento musical, terá lembrado a Hans Holbein, e também aos diplomatas que retratou, algumas das histórias geopoliticamente mais animadas das décadas anteriores. Ampliando-o e endireitando-o, de modo a percebermos o que nele está desenhado e escrito, eis o que este globo mostra:


Uma Europa, colorida, rodeada por continentes pouco ou nada conhecidos; e um sistema de meridianos e de paralelos onde sobressai um meridiano misterioso, traçado a vermelho, que divide de Norte a Sul o Oceânico Atlântico.
Foi em torno deste meridiano que a geopolítica das décadas anteriores se animara: ele visava traçar uma fronteira entre as duas pretensões imperiais que se estavam a afirmar na Península Ibérica e fora estabelecido pelo Tratado das Tordesilhas, em 1494.
Os reis de Portugal, que até aí apenas haviam explorado a costa africana, queriam continuar a fazê-lo a Leste deste meridiano; e os reis de Castela e Leão, que em 1492 tinham visto Colombo regressar da sua primeira viagem às Caraíbas, queriam ter um papel a Oeste daquela linha. Pelo que os mapas produzidos depois daquele tratado passaram a assinalar esta fronteira.

Se este foi o primeiro grande acto de arrogância imperial europeia, foi também uma declaração de guerra comercial no interior da própria Europa. Veneza, que até aos finais deste século havia sido a Porta do Oriente, ia começar a perder esse estatuto. Especiarias como a pimenta, a noz-moscada, a canela, o cravo-da-índia, o gengibre e a cânfora, colhidas no Sudeste Asiático e vendidas a comerciantes indianos e depois a comerciantes muçulmanos, chegavam, via Mar Vermelho, ao Cairo e a Alexandria, no Norte de África. A partir daí os comerciantes venezianos faziam-nas chegar a toda a Europa, embora, devido ao longo caminho percorrido, pouco frescas e muito caras.
A estratégia dos reis portugueses após o Tratado das Tordesilhas visou ir buscar estas especiarias às origens, tendo a chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498, sido o primeiro passo. Um comerciante veneziano lamentou-o assim, em 1502: “todas as pessoas do outro lado das montanhas que antigamente vinham a Veneza comprar especiarias com o seu dinheiro irão agora para Lisboa porque fica mais perto dos seus países e mais fácil de alcançar; também porque poderão comprar a um preço mais barato”.

Esta mudança nas vias marítimas do comércio das especiarias gerou dois tipos de reacção.
Para uns, tratou-se de criar condições para também as navegar. Isso exigia novos conhecimentos náuticos e cartográficos e, caso os obtivessem (a espionagem em Lisboa foi dando alguns resultados), exigia capacidade para enfrentar militarmente o monopólio comercial que o Tratado das Tordesilhas havia dado aos reis portugueses na metade oriental do globo.
Para outros, tratou-se de verificar quais seriam os limites da metade do globo. Nos mapas planos, o traçado de uma linha de Norte a Sul, atravessando o Atlântico, nada dizia sobre por onde passaria, nos antípodas, a outra metade deste meridiano. Foi essa a intuição de Fernão de Magalhães. E foi também por isso que os mapas planos começaram a dar lugar aos globos terrestres, pois estes permitiam que se pensasse melhor no mundo tal como ele aproximadamente era: uma esfera.

Os testemunhos da época mostram que Fernão de Magalhães pretendia, com a sua célebre viagem, navegar através da metade ocidental do globo até ao Sudeste Asiático, local de origem das especiarias, voltando pelo mesmo caminho. Se provasse que as ilhas que procurava se encontravam nesta metade do globo, os reis de Castela e Leão poderiam reclamar o monopólio do comércio das especiarias. Como se sabe, Fernão de Magalhães foi morto numa dessas ilhas, tendo os sobreviventes da viagem decidido regressar a Sevilha (de onde haviam partido) por duas diferentes viagens: um dos dois navios que sobravam voltou para trás (sendo os seus tripulantes sido aprisionados quando atravessavam a metade oriental do globo); e o outro navio prosseguiu até completar a primeira circum-navegação (1519-1522), tendo evitado ser aprisionado ao atravessar a metade portuguesa.

Os dois impérios ibéricos, arrogantemente convictos dos seus direitos a monopolizar o comércio mundial, não se entenderam acerca da metade do mundo em que se situava a origem das especiarias. Para o tentar resolver, decidiram encontrar-se em Badajoz e em Elvas, tendo as negociações sido iniciadas em Abril de 1524, cada uma das partes levando os seus navegadores e os seus cartógrafos, os seus mapas planos e os seus globos terrestres. Em Julho, após permanentes desentendimentos, deram as negociações por terminadas, sem que houvesse uma conclusão.

Não admira pois que, em 1533, um discreto globo terrestre figurasse entre dois diplomatas franceses que se encontravam em serviço nas Ilhas Britânicas.

Fontes: livro de Fara (2013; p. 107) e livro de Brotton (2019; pp. 225-248)

Imagens: sítios da Wikiart e da Wikipédia

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