Os Embaixadores, um óleo sobre tela de Hans Holbein, o
jovem, actualmente na National Gallery, em Londres, mostra dois diplomatas
franceses enquadrando um conjunto notável de instrumentos científicos do início
do século XVI (um Globos Celeste, um Globo Terrestre, um Quadrante, dois
Relógios de Sol, um Torquetum, …):
Datada de 1533, esta obra inspirou a Patricia Fara,
historiadora da Ciência, o seguinte comentário: “A
pintura de Holbein ilustra como a ciência experimental proveio do comércio e da
política, mais do que da sua sede de conhecimento desinteressado.”
O Globo Terrestre, discretamente pintado junto ao
instrumento musical, terá lembrado a Hans Holbein, e também aos diplomatas que
retratou, algumas das histórias geopoliticamente mais animadas das décadas
anteriores. Ampliando-o e endireitando-o, de modo a percebermos o que nele está
desenhado e escrito, eis o que este globo mostra:
Uma Europa, colorida, rodeada por continentes pouco ou nada conhecidos;
e um sistema de meridianos e de paralelos onde sobressai um meridiano misterioso,
traçado a vermelho, que divide de Norte a Sul o Oceânico Atlântico.
Foi em torno deste meridiano que a geopolítica das décadas
anteriores se animara: ele visava traçar uma fronteira entre as duas pretensões
imperiais que se estavam a afirmar na Península Ibérica e fora estabelecido pelo
Tratado das
Tordesilhas, em 1494.
Os reis de Portugal, que até aí apenas haviam explorado a
costa africana, queriam continuar a fazê-lo a Leste deste meridiano; e os reis
de Castela e Leão, que em 1492 tinham visto Colombo regressar da sua primeira
viagem às Caraíbas, queriam ter um papel a Oeste daquela linha. Pelo que os
mapas produzidos depois daquele tratado passaram a assinalar esta fronteira.
Se este foi o primeiro grande acto de arrogância imperial
europeia, foi também uma declaração de guerra comercial no interior da própria
Europa. Veneza, que até aos finais deste século havia sido a Porta do Oriente,
ia começar a perder esse estatuto. Especiarias como a pimenta, a noz-moscada, a
canela, o cravo-da-índia, o gengibre e a cânfora, colhidas no Sudeste Asiático
e vendidas a comerciantes indianos e depois a comerciantes muçulmanos, chegavam,
via Mar Vermelho, ao Cairo e a Alexandria, no Norte de África. A partir daí os
comerciantes venezianos faziam-nas chegar a toda a Europa, embora, devido ao
longo caminho percorrido, pouco frescas e muito caras.
A estratégia dos reis portugueses após o Tratado das
Tordesilhas visou ir buscar estas especiarias às origens, tendo a chegada de
Vasco da Gama à Índia, em 1498, sido o primeiro passo. Um comerciante
veneziano lamentou-o assim, em 1502: “todas as pessoas
do outro lado das montanhas que antigamente vinham a Veneza comprar especiarias
com o seu dinheiro irão agora para Lisboa porque fica mais perto dos seus
países e mais fácil de alcançar; também porque poderão comprar a um preço mais
barato”.
Esta mudança nas vias marítimas do comércio das especiarias
gerou dois tipos de reacção.
Para uns, tratou-se de criar condições para também as navegar.
Isso exigia novos conhecimentos náuticos e cartográficos e, caso os obtivessem
(a espionagem em Lisboa foi dando alguns resultados), exigia capacidade para
enfrentar militarmente o monopólio comercial que o Tratado das Tordesilhas
havia dado aos reis portugueses na metade
oriental do globo.
Para outros, tratou-se de verificar quais seriam os limites
da metade do globo. Nos mapas planos,
o traçado de uma linha de Norte a Sul, atravessando o Atlântico, nada dizia
sobre por onde passaria, nos antípodas, a outra metade deste meridiano. Foi
essa a intuição de Fernão de Magalhães. E foi também por isso que os mapas
planos começaram a dar lugar aos globos terrestres, pois estes permitiam que se
pensasse melhor no mundo tal como ele aproximadamente era: uma esfera.
Os testemunhos da época mostram que Fernão de Magalhães
pretendia, com a sua célebre viagem, navegar através da metade ocidental do globo até ao Sudeste Asiático, local de origem
das especiarias, voltando pelo mesmo caminho. Se provasse que as ilhas que
procurava se encontravam nesta metade do globo, os reis de Castela e Leão
poderiam reclamar o monopólio do comércio das especiarias. Como se sabe, Fernão
de Magalhães foi morto numa dessas ilhas, tendo os sobreviventes da viagem
decidido regressar a Sevilha (de onde haviam partido) por duas diferentes
viagens: um dos dois navios que sobravam voltou para trás (sendo os seus
tripulantes sido aprisionados quando atravessavam a metade oriental do globo);
e o outro navio prosseguiu até completar a primeira circum-navegação (1519-1522),
tendo evitado ser aprisionado ao atravessar a metade portuguesa.
Os dois impérios ibéricos, arrogantemente convictos dos seus
direitos a monopolizar o comércio mundial, não se entenderam acerca da metade
do mundo em que se situava a origem das especiarias. Para o tentar resolver,
decidiram encontrar-se em Badajoz e em Elvas, tendo as negociações sido
iniciadas em Abril de 1524, cada uma das partes levando os seus
navegadores e os seus cartógrafos, os seus mapas planos e os seus globos
terrestres. Em Julho, após permanentes desentendimentos, deram as negociações
por terminadas, sem que houvesse uma conclusão.
Não admira pois que, em 1533, um discreto globo terrestre
figurasse entre dois diplomatas franceses que se encontravam em serviço nas
Ilhas Britânicas.
Fontes:
livro de Fara (2013; p. 107) e livro de Brotton (2019; pp. 225-248)
Imagens:
sítios da Wikiart e da Wikipédia
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