domingo, 19 de fevereiro de 2017

[0023] A omnipresente e inapreensível música

Em 2008 foram encontrados na gruta de Hohle Fels, na região da Suábia (Alemanha), doze pedaços de uma flauta. Havia sido esculpida num osso de um abutre (da espécie Gyps fulvus) e, depois de reconstituída, tinha 21,8 centímetros de comprimento e 0,8 cm de diâmetro, com cinco orifícios para o posicionamento dos dedos e, numa das pontas, uma abertura em V, provavelmente para a saída do som.

Datada de cerca de 35 mil anos (o Paleolítico Superior situou-se entre os 40 mil e os 10 mil anos a.C.), passou a ser o mais antigo instrumento musical fabricado pelo homem, de que havia conhecimento, sendo os anteriores um grupo de 22 flautas datadas de 30 mil anos, descobertas na França, e uma flauta de aproximadamente 20 mil anos, descoberta na Áustria.

Fotografia de H. Jensen (Universidade de Tübingen)

Segundo um dos autores do artigo que divulgou esta descoberta (publicado na revista «Nature»), o arqueólogo Nicolas Conard, da Universidade de Tübingen (Alemanha), o que mais chamou a atenção da equipa que estudou esta flauta foi a sua semelhança com as flautas modernas.

George Steiner, professor de Literatura Comparada, observou, recentemente, que os três mitos gregos “que se debruçam sobre a origem e o impacto da música”, o mito de Orfeu e as lendas de Mársias e das Sereias, são profundamente enigmáticos. E pergunta: “O que acontece com a razão, com a nossa vontade, a nossa temperança psicológica e moral quando ouvimos música?
E depois lembra “o profundo desconforto em relação à música na teoria política e na arte de governação do Platão da maturidade”: “A música é a força anárquica que subverte a razão humana e o domínio sobre si da psique. Por isso, ela constitui uma ameaça direta à disciplina moral e mental, indispensável à ordem privada e cívica.” Que o leva a propor (na «República» e nas «Leis») que a música se submeta aos fins políticos, tal como os modelos totalitários posteriores fizeram.
E no entanto … não se conhece uma única “comunidade humana onde não exista a música.” Ela é “perfeita”, “inútil”, “intraduzível”, misteriosa, “nem verdadeira nem falsa”. Ela cura ou inflama. “O modus operandi da experiência musical, a força vital da sua inutilidade, o domínio irrefreável que ela pode exercer sobre os nossos espíritos e corpos permanecem tão inapreensíveis quanto a própria música.

Será que o medo de dar mais espaço à música na educação revela a tendência para o totalitarismo dos currículos e da organização escolar?

Fontes: Marcolini (2009), para a flauta; Steiner (2016; pp. 48-57), para os comentários sobre a música

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