Há uma velha piada acerca da suposta degradação do nosso
ensino de que de vez em quando surge uma nova versão. Talvez se trate apenas de
uma piada persistente; mas também pode ser um espetar de alfinetes no boneco
que representa um problema que não se compreende.
A última versão que conheço dessa piada (e que, como muitas
das anteriores, espeta os alfinetes no ensino da Matemática) é a seguinte:
Uma piada é uma piada. E tentar espantar os males através de
alfinetes não faz mais do que tentar espantar os males através de alfinetes. Por
isso, interessa antes pensar o que nunca é esclarecido: o que se tem afinal
passado no nosso ensino e que nos pode isso dizer sobre o que está nas nossas
mãos fazer ou exigir?
Em muita opinião, o ensino atravessou, no último século,
três grandes fases. E como em nenhuma delas se verificou uma uniformidade de
pensamentos e de acções, a sua caracterização só pode ser feita a partir das
influências que dominaram em cada uma.
A primeira fase estendeu-se até algures na
década de 1960.
Para quem nesses anos mandava no país, não era
problemático que a escolaridade média fosse muito baixa, havendo, inclusive,
uma enorme percentagem de pessoas analfabetas. O ensino para além da 4ª classe
destinava-se a uma minoria e, mesmo para ela, apenas se pretendia que memorizasse.
Vergílio Ferreira, num dos seus romances, descreveu assim o modo como então se
aprendia:
“Nós somos crianças até muito tarde, Mónica, a gente só
muito tarde é que faz ideia da quantidade de coisas que engoliu sem mastigar.
Uma voracidade assim, a gente engolia tudo, as coisas não eram para pensar,
mastigar, era só para engolir.
- Abre a boca!
E a gente
abria. Ser criança é ter muitos deuses à volta, a gente não discute e está-se
bem a terem eles a autoridade. Tudo quanto me ensinaram era indiscutível como
haver coisas. A gente não discutia, que significado tinha discutir? Era o mesmo
que discutirmos a tabuada.”
Um problema de Matemática que me lembro de ter pela frente nesses
anos era o das torneiras, que pode ser enunciado assim:
Temos duas torneiras e um tanque com água. A primeira torneira, se a outra estiver fechada, enche o tanque em 10 minutos; e a segunda, com a primeira fechada, enche-o em 15 minutos. Abertas em simultâneo, em quanto tempo enchem elas o tanque?
Só consegui resolver este problema por mim próprio quando já era adulto. Naquela altura, quem mandava no ensino apenas pretendia que memorizássemos os modos de resolução. Eu não o consegui.
A segunda fase decorreu até meados da década de
1990.
Ainda não tinha chegado o 25 de Abril e um pouco
por todo o lado surgiram grupos de professores a querer fazer coisas diferentes;
foi nesse contexto de insatisfação docente que surgiu uma reforma da Matemática,
sob a orientação do matemático Sebastião e Silva, e uma outra, do ensino em
geral, lançada pelo ministro Veiga Simão.
A seguir a 1974 o número de professores que
quiseram prosseguir estas mudanças aumentou, ao mesmo tempo que os sucessivos
governos abriam as escolas, tendencialmente, a todos os jovens.
Muitos alunos iniciavam os estudos sem usufruir de qualquer
tradição escolar na sua família, e eram confrontados nas escolas com ferramentas
que os professores mais ousados lhes traziam para os ajudar a aprender. Uma
dessas ferramentas eram umas peças triangulares, quadrangulares e pentagonais,
com arestas iguais e que se podiam encaixar umas nas outras. Era possível
formar com elas os mais diversos poliedros:
Os alunos que nunca tinham possuído brinquedos parecidos com
estas peças em casa passavam a primeira aula a construir com elas figuras que
inventavam. Era necessário deixá-los acalmar do choque de encontrar algo tão
interessante e que desconheciam: se eu fosse aluno durante estes anos, também
gostaria de ter uma hora para explorar a meu gosto estas peças.
Mas nas aulas seguintes já era possível passar para outros
desafios. Por exemplo: contar o número de faces, o
número de arestas e o número de vértices destes poliedros e tirar daí conclusões.
Procedendo assim, pretendia-se que os jovens tivessem a
possibilidade de experimentar, de pensar, de conjecturar, de argumentar, de
debater. A memorização passava a ter um lugar mais discreto.
A terceira fase dura até hoje; e,
infelizmente, promete continuar por mais uns tempos.
Já tinha sido bom que o sucesso escolar obtido na
fase anterior tivesse melhorado em relação ao verificado antes da década de 1960,
em particular porque o acesso à escola era agora incomparavelmente superior.
Mas queria-se sucesso para todos - e ainda bem.
No entanto, a melhoria pretendida tem vindo a ser
apropriada e padronizada por um número crescente de intervenientes exteriores
às escolas: gestores das Organizações Internacionais e do Ministério da
Educação, especialistas das Universidades, técnicos de grandes Empresas de
material didáctico, das Fundações e, agora, até das Câmaras Municipais. Tudo está
tremendamente regulamentado nas escolas.
Os temas têm de se referir, a torto e a direito, à «sustentabilidade»;
os professores têm de obedecer às «boas práticas», que não são as suas; todos
os alunos devem ser «incluídos», o que quase sempre quer dizer que se devem
adaptar à cultura dominante, pois não há tempo para conhecer as suas próprias culturas.
Talvez seja exactamente isso que a velha piada nos quer
dizer, sem o conseguir explicitar: à medida que a ânsia por resultados (o sucesso) se instala entre os gestores, os
especialistas e os técnicos, tudo o que podia ajudar a lá chegar (a
complexidade do mundo; a generosidade e a experiência dos professores; a
variedade pessoal e cultural dos alunos) é posto de lado para não complicar …
Fonte: livro
de Pacheco, de onde provém a citação de Vergílio Ferreira (1996; p. 223)
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