terça-feira, 3 de dezembro de 2019

[0201] Trabalhar a «memória», para ver as «escolas» muito para além do que «parecem»


Há uma velha piada acerca da suposta degradação do nosso ensino de que de vez em quando surge uma nova versão. Talvez se trate apenas de uma piada persistente; mas também pode ser um espetar de alfinetes no boneco que representa um problema que não se compreende.
A última versão que conheço dessa piada (e que, como muitas das anteriores, espeta os alfinetes no ensino da Matemática) é a seguinte:


Uma piada é uma piada. E tentar espantar os males através de alfinetes não faz mais do que tentar espantar os males através de alfinetes. Por isso, interessa antes pensar o que nunca é esclarecido: o que se tem afinal passado no nosso ensino e que nos pode isso dizer sobre o que está nas nossas mãos fazer ou exigir?

Em muita opinião, o ensino atravessou, no último século, três grandes fases. E como em nenhuma delas se verificou uma uniformidade de pensamentos e de acções, a sua caracterização só pode ser feita a partir das influências que dominaram em cada uma.

A primeira fase estendeu-se até algures na década de 1960.

Para quem nesses anos mandava no país, não era problemático que a escolaridade média fosse muito baixa, havendo, inclusive, uma enorme percentagem de pessoas analfabetas. O ensino para além da 4ª classe destinava-se a uma minoria e, mesmo para ela, apenas se pretendia que memorizasse. Vergílio Ferreira, num dos seus romances, descreveu assim o modo como então se aprendia:

Nós somos crianças até muito tarde, Mónica, a gente só muito tarde é que faz ideia da quantidade de coisas que engoliu sem mastigar. Uma voracidade assim, a gente engolia tudo, as coisas não eram para pensar, mastigar, era só para engolir.
- Abre a boca!
E a gente abria. Ser criança é ter muitos deuses à volta, a gente não discute e está-se bem a terem eles a autoridade. Tudo quanto me ensinaram era indiscutível como haver coisas. A gente não discutia, que significado tinha discutir? Era o mesmo que discutirmos a tabuada.

Um problema de Matemática que me lembro de ter pela frente nesses anos era o das torneiras, que pode ser enunciado assim:


Temos duas torneiras e um tanque com água. A primeira torneira, se a outra estiver fechada, enche o tanque em 10 minutos; e a segunda, com a primeira fechada, enche-o em 15 minutos. Abertas em simultâneo, em quanto tempo enchem elas o tanque?

Só consegui resolver este problema por mim próprio quando já era adulto. Naquela altura, quem mandava no ensino apenas pretendia que memorizássemos os modos de resolução. Eu não o consegui.

A segunda fase decorreu até meados da década de 1990.

Ainda não tinha chegado o 25 de Abril e um pouco por todo o lado surgiram grupos de professores a querer fazer coisas diferentes; foi nesse contexto de insatisfação docente que surgiu uma reforma da Matemática, sob a orientação do matemático Sebastião e Silva, e uma outra, do ensino em geral, lançada pelo ministro Veiga Simão.
A seguir a 1974 o número de professores que quiseram prosseguir estas mudanças aumentou, ao mesmo tempo que os sucessivos governos abriam as escolas, tendencialmente, a todos os jovens.

Muitos alunos iniciavam os estudos sem usufruir de qualquer tradição escolar na sua família, e eram confrontados nas escolas com ferramentas que os professores mais ousados lhes traziam para os ajudar a aprender. Uma dessas ferramentas eram umas peças triangulares, quadrangulares e pentagonais, com arestas iguais e que se podiam encaixar umas nas outras. Era possível formar com elas os mais diversos poliedros:


Os alunos que nunca tinham possuído brinquedos parecidos com estas peças em casa passavam a primeira aula a construir com elas figuras que inventavam. Era necessário deixá-los acalmar do choque de encontrar algo tão interessante e que desconheciam: se eu fosse aluno durante estes anos, também gostaria de ter uma hora para explorar a meu gosto estas peças.
Mas nas aulas seguintes já era possível passar para outros desafios. Por exemplo: contar o número de faces, o número de arestas e o número de vértices destes poliedros e tirar daí conclusões.
Procedendo assim, pretendia-se que os jovens tivessem a possibilidade de experimentar, de pensar, de conjecturar, de argumentar, de debater. A memorização passava a ter um lugar mais discreto.

A terceira fase dura até hoje; e, infelizmente, promete continuar por mais uns tempos.

Já tinha sido bom que o sucesso escolar obtido na fase anterior tivesse melhorado em relação ao verificado antes da década de 1960, em particular porque o acesso à escola era agora incomparavelmente superior. Mas queria-se sucesso para todos - e ainda bem.
No entanto, a melhoria pretendida tem vindo a ser apropriada e padronizada por um número crescente de intervenientes exteriores às escolas: gestores das Organizações Internacionais e do Ministério da Educação, especialistas das Universidades, técnicos de grandes Empresas de material didáctico, das Fundações e, agora, até das Câmaras Municipais. Tudo está tremendamente regulamentado nas escolas.

Os temas têm de se referir, a torto e a direito, à «sustentabilidade»; os professores têm de obedecer às «boas práticas», que não são as suas; todos os alunos devem ser «incluídos», o que quase sempre quer dizer que se devem adaptar à cultura dominante, pois não há tempo para conhecer as suas próprias culturas.
Talvez seja exactamente isso que a velha piada nos quer dizer, sem o conseguir explicitar: à medida que a ânsia por resultados (o sucesso) se instala entre os gestores, os especialistas e os técnicos, tudo o que podia ajudar a lá chegar (a complexidade do mundo; a generosidade e a experiência dos professores; a variedade pessoal e cultural dos alunos) é posto de lado para não complicar

Fonte: livro de Pacheco, de onde provém a citação de Vergílio Ferreira (1996; p. 223)

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