quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

[0160] Maria João Pires: outro olhar sobre a educação


Excertos da entrevista que Maria João Pires (pianista, pedagoga, cidadã) concedeu a Diana Ferreira:

Sobre tocar piano

O piano nunca foi o centro da minha vida, nem em criança. Foi-o para o exterior, na medida em que sempre me viram como pianista, mas para mim e para as pessoas mais próximas nunca o foi. Um satélite muito importante, sim, que tomou um grande espaço, demasiado grande a partir de certa altura. Comecei a ensinar numa idade em que não se deve fazê-lo – tinha 12 anos.


Sobre a condição de artista

Pelo facto de serem conhecidas [como artistas], as pessoas têm muita tendência para se sentir superiores. À partida, essa separação já é negativa; se estamos separados, não pertencemos ao grupo ... dos humanos. Já somos só «eu» e «eles», «eu» e «o público».

Não me identifico com a escola de música, com os ciclos de concertos, com a forma como as editoras promovem ou não os jovens, como escolhem os talentos ... Os critérios são de tal maneira antimusicais que deixaram de ser critérios. Não me identifico com as estratégias dos adultos em relação aos mais jovens.

Considero os «concursos» “a morte da arte e da música, de tudo. Sejam bons ou maus, honestos ou desonestos: o concurso é inimigo de qualquer criatividade, de qualquer artista. E são o grande inimigo da possibilidade de as novas gerações terem ainda a oportunidade de transmitir aquilo que é essencial na música.

A sociedade está construída de maneira a ninguém ter trabalho se não tiver prémios. Só temos duas opções: ou somos escravos dessa sociedade e aceitamos as regras desse jogo (e é nos 99 % que são eliminados que estão os verdadeiros artistas, que poderiam vir a transmitir a arte através das gerações) ou resistimos ... Nós podemos ter vários trabalhos. Eu fui estudante durante muitos anos, na Alemanha, e não houve nenhum ano em que não estivesse a trabalhar numa casa, a lavar pratos, a lavar o chão, a cozinhar ... Há muita gente que dá aulas, que faz outras coisas ... Podemos fazer muita coisa, não precisamos de ser pianistas a tempo inteiro. Hoje, os músicos são criados para serem mimados, para serem os futuros grandes músicos que vão ganhar fortunas. Vão ter muito cuidado com as mãos, vão pôr-se numa posição em que estão fora do resto do grupo, em que são as estrelas. E isso não é ser músico!

Sobre os coros infantis

O meu objectivo com os coros, que integram crianças a partir dos cinco, seis anos, é encontrar o método certo para fazer com que a música influencie o seu crescimento e a forma como encaram a vida. É um trabalho sobre a resiliência da criança para, através da qualidade na forma de cantar e de ouvir, desenvolver a cooperação com os outros. Trata-se de crianças praticamente sem experiências musicais. Actualmente, temos sobretudo crianças de países africanos e, em grande maioria, muçulmanos, com um passado complicado, de guerra ou de outro tipo de abusos, algumas órfãs, ou que foram retiradas aos pais ...

Sobre o apoio aos jovens músicos

O critério é procurar artistas que estejam verdadeiramente motivados para colaborar na sociedade sem pensarem única e exclusivamente na sua carreira. Digo sempre que não tem mal pensar em ter trabalho e em ganhar a vida – é aliás muito saudável –, simplesmente que isso não seja primordial, porque o artista também tem uma missão que é importante ele saber separar da ambição material. É importante que desenvolva a sua arte num campo livre, em que se possa realmente estudar, pesquisar. Hoje, no mundo inteiro, as escolas têm o grande problema da competição, de tal modo que os programas têm de ser «cada vez mais»: mais repertório, mais performance, mais capacidades, mais ... [técnica.]” “Que deixa de ser técnica, porque para um pianista, hoje, toda a habilidade manual é uma péssima técnica ... O piano passa por uma consciência e por um trabalho muito grande sobre o corpo. E um trabalho de mãos super desenvolvido vai estragar o trabalho corporal, resultando num pianista sem boa técnica. Há uma série de componentes na música que exigem consciência corporal. Costumo dizer aos meus alunos: «O vosso professor não sou eu, é o vosso corpo e a capacidade que vocês têm de o desenvolver e de o melhorar.».

A sua selecção é feita “Muito mais pela motivação do que pela qualidade da gravação que nos mandam.” Eles “Têm de escrever uma carta bastante completa.” “A gente sente o que está por detrás das palavras usadas, vê-se se é só uma coisa superficial ... Dantes dava muito mais importância à gravação. Com a idade e com o tempo, descobri que me enganava, porque há pessoas que não tocam nada bem mas têm uma verdadeira motivação e uma verdadeira capacidade de chegar lá. Mais do que muitos que tocam tudo e muito bem, mas não passam dali, porque não estão verdadeiramente motivados para essa pesquisa de que estamos a falar.

No Verão passado fiz um curso e encontrei uma menina absolutamente fora deste mundo, com uma capacidade impressionante de falar através da música, de dialogar e de aprender. Essas descobertas acontecem. É óbvio que vou convidá-la, dar-lhe aulas... Não considero que os artistas se possam dar aulas uns aos outros – é mais uma transmissão. Eu sei e tu não sabes – isso não existe em arte. É um erro pensar-se dessa forma.” “O que posso dizer é que tive muitos mais anos de experiência. Tenho 74 anos. Fiz muitas experiências que posso transmitir a uma pessoa de 20; experiências que não podem ser transmitidas de uma forma técnica, ou através de um livro que eu escreva sobre técnica de piano, ou sobre como tocar com mãos pequenas, como ler uma sonata de Beethoven, como frasear, quais as diferenças entre uns compositores e outros. Mesmo que escreva muito bem, nunca funciona como ao vivo. A transmissão ao vivo da arte é essencial. E isso não significa que eu esteja a ensinar, ou que saiba mais do que eles, porque eles podem ser artistas extraordinários – mais do que eu –, só que eu tenho uma experiência a transmitir e eles transmitem-me capacidade de aprender como devo transmitir.

Eu e as pessoas que estão a trabalhar comigo somos capazes de dar um bom conselho [aos jovens músicos], no sentido em que recuamos ao primeiro momento em que [lhe] surgiu o desejo de fazer música, perguntamos de onde e como veio. Muitas vezes vamos chegar à conclusão de que aquela pessoa não está tão interessada assim em música. Outras vezes descobrimos que tinha uma aptidão natural, desde criança, e um desejo profundo; aí podemos ajudá-la a seguir esse desejo, em vez do caminho comercial para que foi guiada e treinada, tanto mental, como espiritual e fisicamente. Pode-se voltar atrás, a esse impulso, esse primeiro desejo, essa primeira iluminação. Podemos fazer essa introspecção.

Sobre as instituições de ensino

Se ensinasse numa instituição, “Teria de ensinar numa escola que não tivesse um programa feito, que estivesse à procura de soluções. Aí eu poderia ser útil. Mas nenhuma escola tem essa aptidão para fazer descobertas. A descoberta pedagógica é muito complicada, porque estamos sempre em atraso, vamos sempre buscar o que funcionou bem há 30 ou 50 anos; mas as pessoas eram diferentes, não ouviam da mesma maneira, não tinham a mesma relação com o som, com o ruído, com a percepção do exterior, com o ar, com a respiração, com nada ... Se tudo mudou, como é que se pode ensinar da mesma maneira? O processo pedagógico «normal» é usar o bom que houve para não enfrentar o futuro.

Fonte: Pires, entrevistada por Ferreira (2019)
Fotografia (inserida na entrevista e aqui truncada): Nelson Garrido


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