Excertos da entrevista que Maria João Pires (pianista,
pedagoga, cidadã) concedeu a Diana Ferreira:
Sobre
tocar piano
“O piano nunca foi o centro da minha vida, nem em criança.
Foi-o para o exterior, na medida em que sempre me viram como pianista, mas para
mim e para as pessoas mais próximas nunca o foi. Um satélite muito importante,
sim, que tomou um grande espaço, demasiado grande a partir de certa altura.
Comecei a ensinar numa idade em que não se deve fazê-lo – tinha 12 anos.”
Sobre a condição
de artista
“Pelo facto de serem conhecidas [como artistas], as
pessoas têm muita tendência para se sentir superiores. À partida, essa
separação já é negativa; se estamos separados, não pertencemos ao grupo ... dos
humanos. Já somos só «eu» e «eles», «eu» e «o público».”
“Não me
identifico com a escola de música, com os ciclos de concertos, com a forma como
as editoras promovem ou não os jovens, como escolhem os talentos ... Os
critérios são de tal maneira antimusicais que deixaram de ser critérios. Não me
identifico com as estratégias dos adultos em relação aos mais jovens.”
Considero
os «concursos» “a morte da arte e da música,
de tudo. Sejam bons ou maus, honestos ou desonestos: o concurso é inimigo de
qualquer criatividade, de qualquer artista. E são o grande inimigo da
possibilidade de as novas gerações terem ainda a oportunidade de transmitir
aquilo que é essencial na música.”
“A sociedade está
construída de maneira a ninguém ter trabalho se não tiver prémios. Só temos
duas opções: ou somos escravos dessa sociedade e aceitamos as regras desse jogo
(e é nos 99 % que são eliminados que estão os verdadeiros artistas, que
poderiam vir a transmitir a arte através das gerações) ou resistimos ... Nós
podemos ter vários trabalhos. Eu fui estudante durante muitos anos, na
Alemanha, e não houve nenhum ano em que não estivesse a trabalhar numa casa, a
lavar pratos, a lavar o chão, a cozinhar ... Há muita gente que dá aulas, que
faz outras coisas ... Podemos fazer muita coisa, não precisamos de ser
pianistas a tempo inteiro. Hoje, os músicos são criados para serem mimados,
para serem os futuros grandes músicos que vão ganhar fortunas. Vão ter muito
cuidado com as mãos, vão pôr-se numa posição em que estão fora do resto do
grupo, em que são as estrelas. E isso não é ser músico!”
Sobre os coros
infantis
“O meu objectivo com
os coros, que integram crianças a partir dos cinco, seis anos, é encontrar o
método certo para fazer com que a música influencie o seu crescimento e a forma
como encaram a vida. É um trabalho sobre a resiliência da criança para, através
da qualidade na forma de cantar e de ouvir, desenvolver a cooperação com os
outros. Trata-se de crianças praticamente sem
experiências musicais. Actualmente, temos sobretudo crianças de países
africanos e, em grande maioria, muçulmanos, com um passado complicado, de
guerra ou de outro tipo de abusos, algumas órfãs, ou que foram retiradas aos
pais ... ”
Sobre
o apoio aos jovens músicos
“O
critério é procurar artistas que estejam verdadeiramente motivados para
colaborar na sociedade sem pensarem única e exclusivamente na sua carreira.
Digo sempre que não tem mal pensar em ter trabalho e em ganhar a vida – é aliás
muito saudável –, simplesmente que isso não seja primordial, porque o artista
também tem uma missão que é importante ele saber separar da ambição material. É
importante que desenvolva a sua arte num campo livre, em que se possa realmente
estudar, pesquisar. Hoje, no mundo inteiro, as escolas têm o grande problema da
competição, de tal modo que os programas têm de ser «cada vez mais»: mais
repertório, mais performance, mais capacidades, mais ... [técnica.]” “Que
deixa de ser técnica, porque para um pianista, hoje, toda a habilidade manual é
uma péssima técnica ... O piano passa por uma consciência e por um trabalho
muito grande sobre o corpo. E um trabalho de mãos super desenvolvido vai
estragar o trabalho corporal, resultando num pianista sem boa técnica. Há uma
série de componentes na música que exigem consciência corporal. Costumo dizer
aos meus alunos: «O vosso professor não sou eu, é o vosso corpo e a capacidade
que vocês têm de o desenvolver e de o melhorar.».”
A sua selecção é feita “Muito mais pela motivação do que pela qualidade da
gravação que nos mandam.” Eles “Têm de escrever uma carta bastante completa.” “A gente sente o que
está por detrás das palavras usadas, vê-se se é só uma coisa superficial ...
Dantes dava muito mais importância à gravação. Com a idade e com o tempo,
descobri que me enganava, porque há pessoas que não tocam nada bem mas têm uma
verdadeira motivação e uma verdadeira capacidade de chegar lá. Mais do que
muitos que tocam tudo e muito bem, mas não passam dali, porque não estão
verdadeiramente motivados para essa pesquisa de que estamos a falar.”
“No Verão passado fiz um curso e encontrei uma menina
absolutamente fora deste mundo, com uma capacidade impressionante de falar
através da música, de dialogar e de aprender. Essas descobertas acontecem. É
óbvio que vou convidá-la, dar-lhe aulas... Não considero que os artistas se
possam dar aulas uns aos outros – é mais uma transmissão. Eu sei e tu não sabes
– isso não existe em arte. É um erro pensar-se dessa forma.” “O que posso dizer é
que tive muitos mais anos de experiência. Tenho 74 anos. Fiz muitas
experiências que posso transmitir a uma pessoa de 20; experiências que não
podem ser transmitidas de uma forma técnica, ou através de um livro que eu
escreva sobre técnica de piano, ou sobre como tocar com mãos pequenas, como ler
uma sonata de Beethoven, como frasear, quais as diferenças entre uns
compositores e outros. Mesmo que escreva muito bem, nunca funciona como ao
vivo. A transmissão ao vivo da arte é essencial. E isso não significa que eu
esteja a ensinar, ou que saiba mais do que eles, porque eles podem ser artistas
extraordinários – mais do que eu –, só que eu tenho uma experiência a
transmitir e eles transmitem-me capacidade de aprender como devo transmitir.”
“Eu e as pessoas que estão a trabalhar comigo somos
capazes de dar um bom conselho [aos jovens
músicos], no sentido em que recuamos ao
primeiro momento em que [lhe] surgiu o desejo de fazer música, perguntamos de onde e
como veio. Muitas vezes vamos chegar à conclusão de que aquela pessoa não está
tão interessada assim em música. Outras vezes descobrimos que tinha uma aptidão
natural, desde criança, e um desejo profundo; aí podemos ajudá-la a seguir esse
desejo, em vez do caminho comercial para que foi guiada e treinada, tanto
mental, como espiritual e fisicamente. Pode-se voltar atrás, a esse impulso,
esse primeiro desejo, essa primeira iluminação. Podemos fazer essa
introspecção.”
Sobre
as instituições de ensino
Se
ensinasse numa instituição, “Teria de ensinar numa escola que não tivesse um programa
feito, que estivesse à procura de soluções. Aí eu poderia ser útil. Mas nenhuma
escola tem essa aptidão para fazer descobertas. A descoberta pedagógica é muito
complicada, porque estamos sempre em atraso, vamos sempre buscar o que
funcionou bem há 30 ou 50 anos; mas as pessoas eram diferentes, não ouviam da mesma
maneira, não tinham a mesma relação com o som, com o ruído, com a percepção do
exterior, com o ar, com a respiração, com nada ... Se tudo mudou, como é que se
pode ensinar da mesma maneira? O processo pedagógico «normal» é usar o bom que
houve para não enfrentar o futuro.”
Fonte:
Pires, entrevistada por Ferreira (2019)
Fotografia (inserida
na entrevista e aqui truncada): Nelson Garrido
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