sábado, 28 de dezembro de 2019

[0205] Diversidades e sínteses no «Azulejo»


O caminho que o azulejo tem feito em Portugal iniciou-se nos finais do século XV. Nos mais de quinhentos anos que entretanto decorreram, sucederam-se e coexistiram diversas escolhas quanto à sua tipologia (padrão; figuração; ornamentação), às suas cores (múltiplas; azul e branco; única), às suas formas (além da quadrada, também a triangular, a hexagonal, a semi-circular, a redonda, a estrelada) e à sua superfície visível (plana; ou com um relevo mais ou menos acentuado).
Para obter uma descrição do estado desta arte, foram inquiridos quarenta e nove portugueses e estrangeiros a ela ligados (investigadores, arquitectos, artistas, designers, antiquários, gestores de património, colecionadores), cujos breves testemunhos proporcionaram uma visão ampla das múltiplas facetas sob as quais pode ser encarada: a histórica, a patrimonial, a iconográfica, a estética, a material, a técnica, a funcional, a arqueológica, a etimológica, a política, a social, a antropológica, a afectiva …


Capa de livro

Alguns desses testemunhos trouxeram a debate tópicos particularmente desafiadores:

Islão:
“O zellige é um tipo de decoração geométrica que consiste em dispor lado a lado ladrilhos de terracota de diferentes cores e tamanhos, de acordo com regras geométricas precisas.” Trata-se de uma técnica para formar padrões, herdeiro de um método árabe muito antigo, o tastir, que determinava como distribuir espacialmente as diferentes formas geométricas. Este método, bem como um outro ainda mais antigo, o hasba, ainda hoje são usados em Marrocos.
Investigador Rachid Benslimane

Cerâmicas:
“Os azulejos pertencem à grande família das cerâmicas utilizadas na arquitectura, como os tijolos, a terracota, a faiança e o mosaico.”
Investigador Hans Van Lemmen

Ladrilhos:
Em “Portugal fez-se muita «azulejaria» anterior ao século XV, mas dávamos-lhe outro nome: ladrilho.”
“A «azulejaria» iniciou o seu percurso em Alcobaça, na Abadia de Santa Maria, durante a transição do século XIII para o XIV. Nessa época, os tais magníficos ladrilhos embelezavam a igreja em tons de branco e turquesa e desde então nunca mais deixaram de ser utilizados.”
Investigador Rui André Alves Trindade

Protagonistas:
“O azulejo e a sua obra têm vários protagonistas: o oleiro, o pintor, o ladrilhador, o encomendador, constituindo sempre um processo artístico integrado e articulado.”
Professora Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara

Conjugações:
“O azulejo é um objecto de barro vidrado relacionado com o acto extraordinário e arcaico de conjugar num só artefacto os quatro elementos – TERRA, FOGO, ÁGUA e AR -, e que, simultaneamente, através do revestimento modular, se vincula ao ESPAÇO.”
Arquitectas Catarina e Rita Almada Negreiros

Património:
“Imaginem o que significaria remover toda a azulejaria da arquitectura portuguesa dos passados cinco séculos.”
Leonor Sá, coordenadora do Projecto «SOS Azulejo»

Fonte: livro de Silva e Carvalho (2018; pp. 6-9, 14, 26, 34, 90, 100 e 102)

sábado, 21 de dezembro de 2019

[0204] A espiral do tempo e a árvore de Natal


As Férias do Natal constituíam, no tempo em que fui professor, a primeira grande interrupção do ano lectivo. Eram quase duas semanas de liberdade mental, acontecendo-me frequentemente usá-la para explorar … problemas de Matemática. O mesmo me acontecia, aliás, nas Férias de Verão, como referi na mensagem «0056».

Agora a minha liberdade mental é outra, mas parece que o Natal continua a inspirar-me na direcção da Matemática, como se nota nas últimas mensagens.

Em Setúbal, na Avenida Luísa Todi, está agora patente a seguinte estilização de uma árvore de Natal, com a forma de um cone de revolução, salientando-se sobre ela uma curva que se vai enrolando, ou desenrolando, ao longo da superfície cónica:


Esta curva é uma espiral, um conceito matemático assim definido num dicionário especializado: “Curva que é desenhada por um ponto que se move em torno de um ponto fixo, do qual se afasta gradualmente.

Para nos certificarmos de que se trata de uma espiral, e não de uma outra curva, podemos observar os detalhes da construção desta árvore de Natal a partir de uma fotografia tirada do solo:


Conclui-se que este tronco de cone é formado por 18 segmentos de recta, que descem do vértice até ao solo, e por um número indefinido de circunferências horizontais, todas com centro no eixo do cone e apoiadas nos segmentos de recta.
No entanto, isto não é exactamente o tronco de um cone de revolução, mas sim uma superfície parecida, constituída por sucessivos andares formados por trapézios. E a curva mais não é do que uma sucessão de diagonais dos trapézios: terá ela a forma aproximada de uma espiral?

Desenhando toda esta construção como uma projecção horizontal, e reduzindo-a a um número mais fácil de desenhar de segmentos de recta, apenas 16, e a 10 circunferências, temos de facto uma aproximação à espiral tal como é definida na Matemática (é constante a relação entre o ritmo com que roda e o ritmo com que se afasta, ou aproxima):


Há, na Natureza, diversos fenómenos dependentes do tempo a que os respectivos especialistas associam a espiral:

Um deles é a forma de uma boa parte das galáxias, como a da Galáxia de Pinwheel (também conhecida por «Messier 101 or NGC 5457»), situada a uma distância de aproximadamente 21 milhões de anos-luz do Sistema Solar:


Outro é o da forma de crescimento das Amonites, um grupo de moluscos que viveu entre meados do Devónico e o fim do Cretácico (durante mais de 300 milhões de anos), e que é parente dos actuais nautiloides:


Voltando à oportunidade que as interrupções de trabalho nos proporcionam: nas últimas duas décadas e meia os sucessivas equipas que ocuparam o Ministério da Educação promoveram a redução dos tempos de paragem, tanto para alunos como para professores, o que tem implicado a expansão do tempo em que, uns e outros, estão sujeitos a controlo por uma hierarquia, diminuindo assim o tempo disponível para a criatividade individual. Onde está aqui a sociedade inovadora que tanto é apregoada?

Fotografias: Eva Maria Blum (Setúbal) e Wikipédia (Galáxia; Amonite)
Desenho: Pedro Esteves
Fonte: livros de Albuquerque & Carvalho (1990; p. 51) e de Pappas (1989; p. 189)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

[0203] Na seguinte narrativa, baseada em imagens, onde está o erro?


Na mensagem anterior chamei a atenção para a necessidade de não confiarmos nas aparências demonstrativas das imagens.

Eis um caso em que as imagens nos enganam:


Pois!

O problema não se encontra nos dois hexágonos côncavos: os seus ângulos internos são iguais ou a 90º ou a 270º, sendo fácil verificar que o modo como eles se encaixam não deixa espaços livres nem provoca sobreposições

Acontecerá o mesmo com os triângulos?! Não, não acontece!
Para que o triângulo verde e o triângulo vermelho ajudem a formar o triângulo grande, as suas hipotenusas têm de estar igualmente inclinadas – e não estão!
Olhando para as hipotenusas como estradas que vamos subir (da esquerda para a direita), a do triângulo verde precisa de avançar horizontalmente cinco quadradinhos para subir dois: a sua subida tem a inclinação 2 em 5, ou 40 %. E a hipotenusa do triângulo vermelho precisa de avançar horizontalmente oito quadradinhos para subir três: a sua subida tem a inclinação 3 em 8, ou 37,5 %. Elas têm quase a mesma inclinação, mas não a mesma.
Por sua vez, a hipotenusa do imaginado triângulo grande deveria ter a inclinação 5 em 13, ou seja, aproximadamente, 38,5 %.
Não há duas inclinações iguais!

Para mostrar o que acontece nas imagens acima podemos exagerar um pouco a inclinação das hipotenusas:


A soma da área em falta na primeira imagem e da área em excesso na segunda imagem é igual à área do quadradinho que faz a diferença …

sábado, 7 de dezembro de 2019

[0202] Narrativas com imagens: os impulsos e os factos


Segundo o psicólogo e pedagogo Jerome Bruner [ver mensagem «0003»], há dois modos genéricos para os seres humanos organizarem o seu conhecimento do mundo e a sua experiência mais imediata. A um desses modos, que “parece mais especializado para tratar de «coisas» físicas”, chamamos pensamento lógico-científico, pois é utilizado “mediante a verificação ou a prova”. Ao outro, mais apto para tratar das pessoas e das suas obrigações”, chamamos pensamento narrativo, pois é julgado “com base na verosimilhança ou na sua afinidade com a vida.”

Dada a importância que a «imagem» tem hoje em dia, muitas das nossas narrativas são apoiadas em fotografias, em desenhos, em organigramas ou em qualquer outra imagem tanto nos que serve para chamar a atenção como para facilitar a compreensão do que pretendemos narrar. Por exemplo, uma das demonstrações mais estéticas do Teorema de Pitágoras pode ser descrita através das seguintes imagens e palavras:


Esta descrição, apesar do seu título, «demonstração», não decorre de um «pensamento lógico-científico»: para tal falta, por exemplo, verificar se os quatro quadriláteros compõem correctamente o quadrado de lado A. Limitando-se a estas imagens e palavras trata-se, apenas, de uma narrativa interessante, que bate certo com aquilo que já conhecemos acerca do Teorema de Pitágoras.

Diferente é a plausibilidade do que se narra através da imagem com que comecei a mensagem anterior [«0201»]:


Se há quem ache esta imagem tradutora da «evolução da educação», esse não é o meu caso, pelo que, em vez de a colocar como primeira e principal imagem da mensagem, a deveria ter colocado depois de descrever o que «observei nas últimas décadas nas escolas». As narrativas também podem ser controladas, mediante outras narrativas que apresentem maior fundamentação factual.

Fonte: livro de Bruner (2000)

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

[0201] Trabalhar a «memória», para ver as «escolas» muito para além do que «parecem»


Há uma velha piada acerca da suposta degradação do nosso ensino de que de vez em quando surge uma nova versão. Talvez se trate apenas de uma piada persistente; mas também pode ser um espetar de alfinetes no boneco que representa um problema que não se compreende.
A última versão que conheço dessa piada (e que, como muitas das anteriores, espeta os alfinetes no ensino da Matemática) é a seguinte:


Uma piada é uma piada. E tentar espantar os males através de alfinetes não faz mais do que tentar espantar os males através de alfinetes. Por isso, interessa antes pensar o que nunca é esclarecido: o que se tem afinal passado no nosso ensino e que nos pode isso dizer sobre o que está nas nossas mãos fazer ou exigir?

Em muita opinião, o ensino atravessou, no último século, três grandes fases. E como em nenhuma delas se verificou uma uniformidade de pensamentos e de acções, a sua caracterização só pode ser feita a partir das influências que dominaram em cada uma.

A primeira fase estendeu-se até algures na década de 1960.

Para quem nesses anos mandava no país, não era problemático que a escolaridade média fosse muito baixa, havendo, inclusive, uma enorme percentagem de pessoas analfabetas. O ensino para além da 4ª classe destinava-se a uma minoria e, mesmo para ela, apenas se pretendia que memorizasse. Vergílio Ferreira, num dos seus romances, descreveu assim o modo como então se aprendia:

Nós somos crianças até muito tarde, Mónica, a gente só muito tarde é que faz ideia da quantidade de coisas que engoliu sem mastigar. Uma voracidade assim, a gente engolia tudo, as coisas não eram para pensar, mastigar, era só para engolir.
- Abre a boca!
E a gente abria. Ser criança é ter muitos deuses à volta, a gente não discute e está-se bem a terem eles a autoridade. Tudo quanto me ensinaram era indiscutível como haver coisas. A gente não discutia, que significado tinha discutir? Era o mesmo que discutirmos a tabuada.

Um problema de Matemática que me lembro de ter pela frente nesses anos era o das torneiras, que pode ser enunciado assim:


Temos duas torneiras e um tanque com água. A primeira torneira, se a outra estiver fechada, enche o tanque em 10 minutos; e a segunda, com a primeira fechada, enche-o em 15 minutos. Abertas em simultâneo, em quanto tempo enchem elas o tanque?

Só consegui resolver este problema por mim próprio quando já era adulto. Naquela altura, quem mandava no ensino apenas pretendia que memorizássemos os modos de resolução. Eu não o consegui.

A segunda fase decorreu até meados da década de 1990.

Ainda não tinha chegado o 25 de Abril e um pouco por todo o lado surgiram grupos de professores a querer fazer coisas diferentes; foi nesse contexto de insatisfação docente que surgiu uma reforma da Matemática, sob a orientação do matemático Sebastião e Silva, e uma outra, do ensino em geral, lançada pelo ministro Veiga Simão.
A seguir a 1974 o número de professores que quiseram prosseguir estas mudanças aumentou, ao mesmo tempo que os sucessivos governos abriam as escolas, tendencialmente, a todos os jovens.

Muitos alunos iniciavam os estudos sem usufruir de qualquer tradição escolar na sua família, e eram confrontados nas escolas com ferramentas que os professores mais ousados lhes traziam para os ajudar a aprender. Uma dessas ferramentas eram umas peças triangulares, quadrangulares e pentagonais, com arestas iguais e que se podiam encaixar umas nas outras. Era possível formar com elas os mais diversos poliedros:


Os alunos que nunca tinham possuído brinquedos parecidos com estas peças em casa passavam a primeira aula a construir com elas figuras que inventavam. Era necessário deixá-los acalmar do choque de encontrar algo tão interessante e que desconheciam: se eu fosse aluno durante estes anos, também gostaria de ter uma hora para explorar a meu gosto estas peças.
Mas nas aulas seguintes já era possível passar para outros desafios. Por exemplo: contar o número de faces, o número de arestas e o número de vértices destes poliedros e tirar daí conclusões.
Procedendo assim, pretendia-se que os jovens tivessem a possibilidade de experimentar, de pensar, de conjecturar, de argumentar, de debater. A memorização passava a ter um lugar mais discreto.

A terceira fase dura até hoje; e, infelizmente, promete continuar por mais uns tempos.

Já tinha sido bom que o sucesso escolar obtido na fase anterior tivesse melhorado em relação ao verificado antes da década de 1960, em particular porque o acesso à escola era agora incomparavelmente superior. Mas queria-se sucesso para todos - e ainda bem.
No entanto, a melhoria pretendida tem vindo a ser apropriada e padronizada por um número crescente de intervenientes exteriores às escolas: gestores das Organizações Internacionais e do Ministério da Educação, especialistas das Universidades, técnicos de grandes Empresas de material didáctico, das Fundações e, agora, até das Câmaras Municipais. Tudo está tremendamente regulamentado nas escolas.

Os temas têm de se referir, a torto e a direito, à «sustentabilidade»; os professores têm de obedecer às «boas práticas», que não são as suas; todos os alunos devem ser «incluídos», o que quase sempre quer dizer que se devem adaptar à cultura dominante, pois não há tempo para conhecer as suas próprias culturas.
Talvez seja exactamente isso que a velha piada nos quer dizer, sem o conseguir explicitar: à medida que a ânsia por resultados (o sucesso) se instala entre os gestores, os especialistas e os técnicos, tudo o que podia ajudar a lá chegar (a complexidade do mundo; a generosidade e a experiência dos professores; a variedade pessoal e cultural dos alunos) é posto de lado para não complicar

Fonte: livro de Pacheco, de onde provém a citação de Vergílio Ferreira (1996; p. 223)