O actor e dramaturgo Ivam Cabral explicou assim o modo como lhe surgiu a
ideia de que é possível intervir nas cidades:
A
minha relação com o espaço urbano veio da minha relação com Lisboa, onde vivia.
Quando procurámos um espaço para trabalhar encontrámos o Teatro Ibérico, que
ficava no sítio onde depois se construiu a Expo 98. Em 1993 era um lugar muito
distante, muito escuro, onde não havia comércio nem luz à noite. O nosso
trabalho era acender a luz que ficava à frente do teatro. Por causa disso, quem
estava perto ou passava interessava-se por aquilo que estava a acontecer. Era
como se ao acender aquelas luzes chamássemos as pessoas. A partir daí, o
acender a luz de algum lugar passou a ser um gesto político.
Depois, explicou como usou essa ideia para intervir na Praça
Roosevelt, um dos lugares mais perigosos de São
Paulo, com muitos problemas com furto,
alguns assassinatos, uma presença muito forte do tráfico:
Quando
procurámos um lugar para nos instalarmos, queríamos mesmo um espaço escuro e
problemático. Queríamos executar essa ideia que trazíamos de Lisboa de que a
grande revolução é uma mesa na rua. Foi o que aconteceu. Colocámos uma mesa em
frente ao nosso espaço e enquanto estávamos ali sentados nenhum problema
acontecia naquele lugar. Quando tomamos a cidade para nós, afastamos a
criminalidade. Porque ela acontece, em geral, no escuro. Quando jogamos uma luz
sobre a cidade estamos a chamar as pessoas para a conversa. E nós começamos a
chamar os traficantes, as pessoas que estavam por ali ...
Num
primeiro momento tinham muito medo. Depois, quando percebiam que era um lugar
seguro, um lugar iluminado, ficaram. Ao trazer cidadãos que estavam a traficar,
em geral menores de idade, para dentro de portas começámos a dar-lhes um nome,
um mote para a vida. Passavam a ser alguém. Muitos foram trabalhar connosco, na
técnica, operando som e luz, na limpeza do espaço. Havia muitos travestis e
prostitutas e chamamos vários para conversar e trabalhar. Alguns tornaram-se
importantes na equipa.
Um deles foi o Emerson Fernandes. Tinha 17 anos. Um dia chamámo-lo para
fazer um pequeno serviço no nosso teatro, criámos uma ponte. Ele acabou por
sair das ruas e hoje é funcionário da Escola de Teatro, casado, pai de dois
filhos. Transformou-se num dos técnicos mais importantes do teatro de São
Paulo. A grande mudança deu-se através do encontro com o teatro. Hoje ele tem
uma vida que os irmãos dele, que não encontraram a arte, não têm.
Esse
trabalho começou a ser conhecido e um dia o presidente da câmara de São Paulo,
José Serra, veio visitar Os Satyros, a nossa companhia de teatro. Pediu para pensarmos numa escola profissional e técnica
de teatro. Surgiu dessa encomenda do poder público. O projecto pedagógico da
escola construiu-se do encontro de vários artistas. Não tínhamos, no início, nenhum
pedagogo. Mas tínhamos uma frase: «Em que escola gostaria de ter estudado?»
Fomos respondendo a essas perguntas e criando um sistema pedagógico que quebra
com o ensino formal. Trabalhamos com a experiência. Ensinamos aprendendo e
aprendemos ensinando.
E explicou porque distingue, nestas intervenções, a «inclusão»
da «acessibilidade»:
Eu
sou filho de uma costureira e de um pedreiro analfabeto que tiveram seis
filhos. Éramos muito pobres, vivíamos no interior do país. Mas tudo o que o
Ivam não precisava enquanto criança e adolescente era ser incluído. Precisava
de acesso a bons livros, a boas escolas, a cultura. Há uma diferença muito
grande entre inclusão e acessibilidade. A inclusão contrapõe-se à exclusão. E
isso é terrível. Quando se inclui alguém, em geral, apenas se inclui. A
acessibilidade dá acesso ao ir e vir.
A
acessibilidade está numa linha horizontal. Eu dou a possibilidade de alguém
conhecer a minha cultura e o que penso, mas quero também conhecer o que ele
pensa. Um português que emigrou para Paris nos anos 1970 teve de ser incluído,
porque o parisiense não queria saber da cultura dele. Não havia troca.
Raramente assimilamos a cultura de alguém que tentamos incluir.
Fonte: Cabral,
entrevistado por Pinto (2019)
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