quinta-feira, 10 de outubro de 2019

[0193] Uma mesa na cidade


O actor e dramaturgo Ivam Cabral explicou assim o modo como lhe surgiu a ideia de que é possível intervir nas cidades:

A minha relação com o espaço urbano veio da minha relação com Lisboa, onde vivia. Quando procurámos um espaço para trabalhar encontrámos o Teatro Ibérico, que ficava no sítio onde depois se construiu a Expo 98. Em 1993 era um lugar muito distante, muito escuro, onde não havia comércio nem luz à noite. O nosso trabalho era acender a luz que ficava à frente do teatro. Por causa disso, quem estava perto ou passava interessava-se por aquilo que estava a acontecer. Era como se ao acender aquelas luzes chamássemos as pessoas. A partir daí, o acender a luz de algum lugar passou a ser um gesto político.

Depois, explicou como usou essa ideia para intervir na Praça Roosevelt, um dos lugares mais perigosos de São Paulo, com muitos problemas com furto, alguns assassinatos, uma presença muito forte do tráfico:

Quando procurámos um lugar para nos instalarmos, queríamos mesmo um espaço escuro e problemático. Queríamos executar essa ideia que trazíamos de Lisboa de que a grande revolução é uma mesa na rua. Foi o que aconteceu. Colocámos uma mesa em frente ao nosso espaço e enquanto estávamos ali sentados nenhum problema acontecia naquele lugar. Quando tomamos a cidade para nós, afastamos a criminalidade. Porque ela acontece, em geral, no escuro. Quando jogamos uma luz sobre a cidade estamos a chamar as pessoas para a conversa. E nós começamos a chamar os traficantes, as pessoas que estavam por ali ...

Num primeiro momento tinham muito medo. Depois, quando percebiam que era um lugar seguro, um lugar iluminado, ficaram. Ao trazer cidadãos que estavam a traficar, em geral menores de idade, para dentro de portas começámos a dar-lhes um nome, um mote para a vida. Passavam a ser alguém. Muitos foram trabalhar connosco, na técnica, operando som e luz, na limpeza do espaço. Havia muitos travestis e prostitutas e chamamos vários para conversar e trabalhar. Alguns tornaram-se importantes na equipa.
Um deles foi o Emerson Fernandes. Tinha 17 anos. Um dia chamámo-lo para fazer um pequeno serviço no nosso teatro, criámos uma ponte. Ele acabou por sair das ruas e hoje é funcionário da Escola de Teatro, casado, pai de dois filhos. Transformou-se num dos técnicos mais importantes do teatro de São Paulo. A grande mudança deu-se através do encontro com o teatro. Hoje ele tem uma vida que os irmãos dele, que não encontraram a arte, não têm.

Esse trabalho começou a ser conhecido e um dia o presidente da câmara de São Paulo, José Serra, veio visitar Os Satyros, a nossa companhia de teatro. Pediu para pensarmos numa escola profissional e técnica de teatro. Surgiu dessa encomenda do poder público. O projecto pedagógico da escola construiu-se do encontro de vários artistas. Não tínhamos, no início, nenhum pedagogo. Mas tínhamos uma frase: «Em que escola gostaria de ter estudado?» Fomos respondendo a essas perguntas e criando um sistema pedagógico que quebra com o ensino formal. Trabalhamos com a experiência. Ensinamos aprendendo e aprendemos ensinando.



E explicou porque distingue, nestas intervenções, a «inclusão» da «acessibilidade»:

Eu sou filho de uma costureira e de um pedreiro analfabeto que tiveram seis filhos. Éramos muito pobres, vivíamos no interior do país. Mas tudo o que o Ivam não precisava enquanto criança e adolescente era ser incluído. Precisava de acesso a bons livros, a boas escolas, a cultura. Há uma diferença muito grande entre inclusão e acessibilidade. A inclusão contrapõe-se à exclusão. E isso é terrível. Quando se inclui alguém, em geral, apenas se inclui. A acessibilidade dá acesso ao ir e vir.
A acessibilidade está numa linha horizontal. Eu dou a possibilidade de alguém conhecer a minha cultura e o que penso, mas quero também conhecer o que ele pensa. Um português que emigrou para Paris nos anos 1970 teve de ser incluído, porque o parisiense não queria saber da cultura dele. Não havia troca. Raramente assimilamos a cultura de alguém que tentamos incluir.

Fonte: Cabral, entrevistado por Pinto (2019)

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