domingo, 14 de março de 2021

[0262] A cidade e a memória

 


Italo Calvino (1923-1985), em As Cidades Invisíveis (1972), imagina Marco Polo a descrever ao imperador Kublai Khan as cidades que visitara. Por vezes afasta-se para observar os dois homens e procura perceber o que pensam, ou poderiam pensar:

Marco entra numa cidade; vê alguém numa praça viver uma vida ou um instante que poderiam ser seus; no lugar daquele homem agora poderia estar ele se tivesse parado no tempo muito tempo antes, ou se muito tempo antes numa encruzilhada em vez de tomar uma estrada tivesse tomado a oposta e ao cabo de uma longa volta viesse encontrar-se no lugar daquele homem naquela praça. Agora, daquele seu passado verdadeiro ou hipotético ele está excluído; não pode parar; tem de prosseguir até outra cidade onde o espera outro seu passado, ou algo que talvez tivesse sido um seu possível futuro e agora é o presente de outro qualquer. Os futuros não realizados são apenas ramos do passado: ramos secos.

A memória é o tema que domina a descrição de Marco Polo sobre cinco das cidades que visitou.

Ao viajante que chega a Diomira “numa noite de Setembro, quando os dias já diminuem e as lâmpadas multicolores se acendem todas ao mesmo tempo por cima das portas das lojas de peixe frito, e de um terraço uma voz de mulher grita: uh!”, apetece-lhe “invejar os que agora pensam que já viveram uma noite igual a esta e que então foram felizes.

Mas é em Isidora que o viajante encontra“a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há o paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações.

Descrever “Zaira tal como é hoje deveria conter todo o passado de Zaira. Mas a cidade não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, na antenas dos para-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes e entalhes.

É inútil partir “em viagem para visitar a cidade [de Zora]: obrigada a permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora estagnou, desfez-se e desapareceu. A Terra esqueceu-a.

Em Maurília “o viajante tem de gabar a cidade nos postais e preferi-la à presente, com o cuidado porém de conter o seu desgosto pelas mudanças”: “a magnificência e prosperidade de Maurília transformada em metrópole, se comparadas com a velha Maurília provinciana, não compensam uma certa graça perdida, a qual contudo só poderá ser gozada agora nos velhos postais”; mas nem estes “representam Maurília como era, mas sim outra cidade que por acaso se chamava Maurília como esta.

 

Fonte: livro de Calvino (2006; pp. 11, 12, 14-15, 19-20, 30-31 e 33-34)
Imagem: capa de uma das edições em português

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