quarta-feira, 28 de outubro de 2020

[0243] Pensamentos humanos versus processamentos informáticos (II)

No início da década de 1980 os computadores que jogavam Xadrez ainda estavam longe de vencer os melhores xadrezistas humanos. Os observadores mais atentos, no entanto, já se tinham apercebido de que essa relação de forças iria mudar, não se preocupando muito com isso. Afirmou um deles: “Os automóveis também são mais rápidos que as pessoas, mas isso não diminui o número de corredores de cem metros.” E um outro: “Os computadores significam um aumento do número de participantes [a jogar Xadrez] e, com o tempo, o homem aprenderá com eles.” Pelo que, acrescentou um terceiro, “no futuro próximo veremos a convivência do «xadrez humano» e do «xadrez de computadores». O primeiro continuará a ser uma bela combinação de arte, ciência e desporto; o segundo servirá para apreciar as capacidades dos matemáticos e dos técnicos. E muitos de nós terão em casa uns pequenos amigos pacientes, imperturbáveis, sempre dispostos s disputar uma partida que, se não for perfeita, pelo menos será emocionante.

Resumindo-os de um modo simples, estes comentários previam que os “matemáticos” e os “técnicos” continuariam a inspirar-se na sabedoria dos xadrezistas humanos para programar os computadores e que estes enriqueceriam o saber humano com as asas da velocidade.


Passados quarenta anos sobre aqueles comentários, os melhores programas de Xadrez para computadores vencem, sem dificuldade, qualquer humano que os defronte. Este desequilíbrio pode ser expresso através da força de jogo dos adversários em presença: o actual campeão do mundo de Xadrez, o norueguês Magnus Carlsen, já teve uma força de jogo de 2882 pontos na classificação ELO, enquanto os cinco melhores programas informáticos já atingiram, segundo um artigo publicado num sítio especializado, pontuações incomparavelmente superiores - o Gull 2.8b tem um ELO de 3214; o Fire 4 tem 3229; o Houdini 4 tem 3277; o Stockfish 6 tem 3318; e o Komodo 9 já chegou aos 3340 pontos ELO.


Qualquer xadrezista pode experimentar gratuitamente as versões mais acessíveis do Stockfish. No sítio https://lichess.org estão disponíveis oito níveis deste programa, desde o muito modesto nível 1 (800 pontos ELO) até ao fortíssimo nível 8 (3000 pontos ELO). Habitualmente meço forças com o nível 5, que ronda os 2000 pontos ELO.

Como se comportam os diversos níveis do Stockfish se colocados a jogar com as peças negras a conhecida posição proposta pelo matemático Roger Penrose (ver a mensagem «0240»)? Para o saber, coloca-se essa posição no Lichess (primeiro selecciona-se «Ferramentas» e depois «Editor de tabuleiro»), escolhendo-se por fim jogar com as brancas:


A estratégia das brancas consistirá em avançar o Rei, visando apoiar a promoção do Peão mais adiantado; se pelo caminho houver oportunidade para apanhar um dos três Bispos desprevenido …

Eis o que resultou de duas experiências: o nível 1 do Stockfish demorou a fazer todos os erros que davam jeito às brancas:

Ver: https://lichess1.org/game/export/gif/WMkN12Tx.gif.

Já o nível 5 do Stockfish não deu qualquer oportunidade:

Ver: https://lichess1.org/game/export/gif/7ooRuLhN.gif.

Note-se que após 50 lances de cada jogador o jogo foi interrompido: segundo as regras oficiais, a nem se verificarem movimentos de Peão nem capturas de peças, ao fim desse tempo a partida é considerada empatada.

 

Colocar o desafio de Penrose a um grupo de alunos interessados no Xadrez (há escolas que o incluíram no seu currículo) leva-os a entender as potencialidades e os limites das ferramentas informáticas. Após fazerem experiências como as anteriores eles iriam certamente propor outras experiências. Quase inevitavelmente eles iriam querer que o computador jogasse com as peças brancas:

Ver como o nível 5 do Stockfish jogou: https://lichess1.org/game/export/gif/black/EJ3Z7hPP.gif .

Ver como o nível 6 do Stockfish jogou: https://lichess1.org/game/export/gif/black/iWdbyUNW.gif .

O Lichess proporciona ainda, no final de cada partida, uma análise ao jogo acabado de disputar. Ela é feita pelo seu servidor, que tem um nível superior ao 8, designado por Stockfish 11+. Na partida acabada de disputar, a análise feita apenas detectou um «imprecisão» por parte das brancas, o primeiro lance em que um Peão branco captura uma Torre negra, apesar de essa «imprecisão» lhe ter sido imediatamente fatal:


Ver como o nível 7 do Stockfish jogou: https://lichess1.org/game/export/gif/black/uSTVTIRk.gif . Desta vez o Stockfish 11+ identificou o «erro grave» cometido pelas brancas:


Ver como o nível 8 do Stockfish jogou: https://lichess1.org/game/export/gif/black/isMwlvSg.gif . Finalmente, o Stockfish não cedeu!


Que comentários fariam os alunos envolvidos em experiências xadrezísticas como estas acerca da dificuldade que os humanos têm para inscrever num programa de um computador alguns dos seus saberes mais simples?


Fontes: livro de Pachman e Kühnmund (1982; pp. 106-107 e 114); artigo assinado por «Pete» no sítio Chess.com («Os 5 Melhores Programas de Xadrez para Computador‎», 26 de Fevereiro de 2017)

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

[0242] A «Viagem Philosophica» que Dª Maria Iª enviou ao Brasil (1783-1792)

Nos finais do século XVIII a coroa portuguesa, tal como outras coroas europeias, estava muito interessada em conhecer as potencialidades económicas das suas colónias e em reforçar o traçado das respectivas fronteiras (para melhor controlar tanto os de dentro como os de fora). Reinava então Dona Maria Iª, sucessora de D. José desde 1777.

Com o financiamento da coroa foram organizadas quatro expedições que viriam a ficar conhecidas por Viagens Philosophicas. A preparação contou com a colaboração da Universidade de Coimbra, da Academia das Ciências de Lisboa e do Jardim Botânico da Ajuda, cabendo a orientação científica ao italiano Domenico Vandelli (1735 - 1816), desde há alguns anos a trabalhar para a coroa portuguesa: ele redigiu vários guias para a recolha de espécimes naturais e escolheu quatro antigos alunos seus para encabeçar as expedições: Alexandre Rodrigues Ferreira, ao Brasil, Joaquim José da Silva a Angola, Manuel Galvão da Silva a Goa e a Moçambique e João da Silva Feijó a Cabo Verde.

 

Na Suécia, Carl Lineu (1707 - 1778), empenhado em incluir tudo quanto fosse conhecido sobre rochas, plantas e animais na sua classificação do Mundo Natural, comunicou a Vandelli estar interessado nos resultados das expedições que estavam a ser preparadas.

 

A expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756 - 1815) do Brasil durou uma década, de 1783 a 1792. A equipa contou com dois desenhadores (então chamados «riscadores»), José Codina e José Joaquim Freire, e com um botânico, Agostinho do Cabo:

Aguarela de José Joaquim Freire

 

Dispondo de poucos recursos materiais, este grupo não se desgastou a cumprir tarefas ditadas pela administração colonial (como aconteceu com as outras três expedições, razão pela qual os seus trabalhos como naturalistas pouca expressão tiveram). Seguindo pelo interior da Amazónia, até Mato Grosso, a equipa foi avaliando as potencialidades das regiões que atravessava e descrevendo a sua fauna e a flora, bem como as populações aí residentes, nomeadamente as comunidades indígenas e os seus costumes:


O acervo desta viagem, ainda mal estudado, encontra-se actualmente disperso por Portugal, Brasil e França.

 

É possível apreciar um comentário sobre esta viagem, feito pelo museólogo Pedro Casaleiro, na segunda parte de um dos programas «Visita Guiada», filmado no Museu da Ciência, em Coimbra, e transmitido pela RTP2 no dia 17 de Abril de 2017:

Ver: https://www.rtp.pt/play/p3373/e284280/visita-guiada


No contexto desta viagem, é interessante recordar como o filósofo inglês Francis Bacon (1561 - 1626) previu, na exacta altura em que a Ciência Moderna estava a nascer, o impacto que ela viria a ter, ao afirmar: saber é poder.


Fontes: Wikipédia; intervenção de Pedro Casaleiro no documentário de Pinheiro (2017)

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

[0241] Como usar o Quadrante na Matemática escolar (VII)

O instrumento descrito na mensagem «0237», o Quadrante, pode ser usado na Matemática escolar em conjugação com as primeiras noções de trigonometria.

 

Um desafio simples: calcular a altura de um objecto (monumento, edifício, falésia) a cuja base temos acesso. É necessário medir a altura do ponto de observação (h), a distância horizontal entre o observador e o objecto (d) e a altura angular segundo a qual o observador vê o topo do objecto (a). Pressupõe-se que o terreno no qual estas medidas são feitas (abaixo visto em perspectiva) é horizontal:

A altura pretendida é igual a d vezes tangente de a mais h.

 

Um desafio um pouco mais complexo: calcular a altura de um objecto a cuja base não temos acesso. Para o conseguir é necessário proceder a duas observações (a1 e a2) e à medição da distância entre os pontos em que o observador as fez, ou base das medições (b), sempre com o terreno considerado horizontal:

Agora o cálculo da altura pretendida exige a resolução prévia de um sistema de equações, cada uma delas semelhante à de cima. A altura pretendida é igual a:

b vezes (tang a1 vezes tang a2) a dividir por (tang a2 menos tang a1) mais h.

 

Imagem da torre: recorte de fotografia de Eva Maria Blum em Cacela Velha

domingo, 11 de outubro de 2020

[0240] Pensamentos humanos versus processamentos informáticos

Por definição, uma ferramenta é uma criação humana destinada a prolongar o nosso corpo. Se as mais antigas ferramentas nos prolongaram as mãos e os braços, muitas outras foram sendo criadas até hoje - e cada vez mais variadas: para a deslocação de pessoas e de objectos; para vermos e ouvirmos melhor; para calcularmos depressa e sem erros; e, até, para dispormos de um parceiro com que jogar.


As ferramentas que jogam Xadrez têm sido usadas para compreender em que são melhores as ferramentas informáticas do que os humanos e em que somos nós melhores do que elas.

Segundo o matemático britânico Roger Penrose, o funcionamento do cérebro humano poderá estar dependente de fenómenos quânticos que lhe permitem resolver problemas que os actuais computadores não podem. Para salientar esta diferença, Penrose criou a seguinte posição que, apesar de bastante bizarra, pode ocorrer durante um jogo de Xadrez:

As peças negras dispõem de uma vantagem material esmagadora: uma Dama, duas Torres, três Bispos e cinco Peões contra quatro. No entanto, a posição em que as peças se encontram no tabuleiro também conta …

 

Que pensa desta posição um jogador humano mediamente experiente a jogar Xadrez (como eu)? Muito plausivelmente algo equivalente a:

·      O grupo de peças negras situado à esquerda está completamente imobilizado pelos quatro Peões brancos (todos em casas brancas);

·      Os três Bispos negros (dois deles resultaram da promoção de Peões) só podem mover-se pelas casas negras, pelo que não podem tomar os Peões brancos, se estes se mantiverem onde actualmente se encontram;

·      Dois dos Peões brancos têm a possibilidade de tomar peças negras mas, se o fizerem, poderão ser imediatamente tomados e o grupo de peças negras aprisionadas liberta-se;

·      O Peão branco mais avançado pode tentar a sua sorte mas, para se promover, terá de contar com a vigilância dos Bispos negros e até do próprio Rei negro (mal avance para a casa «c7» o Rei negro pode deslocar-se para a casa «b7»);

·      Se nada se alterar na parte esquerda do tabuleiro, o Rei branco pode deslocar-se à vontade pelas casas brancas (excepto por «b7»), dado os Bispos negros só controlarem as casas negras;

·      Se as peças brancas mantiverem o grupo das negras aprisionadas, os Bispos negros nada podem fazer para ganhar o jogo;

·      Poderá o Rei branco ajudar o seu Peão mais avançado a promover-se e, assim, ganhar o jogo para as brancas?

 

Como funciona uma boa ferramenta informática, em particular perante esta posição?

Talvez assim:

·      A sua fabulosa memória (a «base de dados») não dispõe de posições parecidas com a criada por Penrose, pelo que de nada lhe serve neste caso;

·      A sua incrível capacidade de cálculo vai dispersar-se a prever todas as sequências de lances possíveis, até não poder mais: se não contarmos com os dois Peões brancos que podem tomar as Torres negras, há quatro possíveis primeiros movimentos do Rei branco, mais um do outro Peão branco, o que deve ser multiplicado por dezanove possíveis primeiros movimentos dos Bispos negros (5 x 19 = 95); se a média das possibilidades por lance for de 100 = 102, calcular dois lances exigirá prever 104 posições, três exigirá 106, etc. (N lances exigirão 102N);

·      As instruções que lhe deram para analisar e para decidir o que jogar não costumam incluir o reconhecimento de que o empate é o melhor desfecho em determinadas posições (penso que isso se deve à quase impossibilidade de tipificar muitas destas situações).

 

Então que sucede quando um humano tem a paciência de defronta a ferramenta informática a partir desta posição?

Numa próxima mensagem voltarei a esta questão.

 

Fonte: artigo de Doggers (2017)