A reportagem é da jornalista Clara
Viana.
A peça de teatro tem como
autores e actores aqueles que sabem do que falam. E por isso obriga-nos a
questionar radicalmente o que se escreve habitualmente sobre o «estado da
educação».
“Muito bom dia
a todos. Antes de começar, vamos só relembrar que o perfil do aluno à saída da
escolaridade obrigatória não se constitui como qualquer tentativa de
uniformizar com referência a um perfil estável e unilateral, mas sim amplo e
abrangente, redondo e multifacetado e, ainda assim, claro e objectivo. Assim,
não se trata de definir um mínimo, nem um ideal, mas sim o que se pode
considerar desejável, com a necessária flexibilidade para não considerar o desejo
dominante em relação ao desejo submisso de modo estanque, mas sim de forma
dinâmica e mobilizadora (…).”
Confuso? É
apenas uma professora a instruir a sua turma sobre o novo Perfil do Aluno à
Saída da Escolaridade Obrigatória, que se tornou o novo documento orientador das
aprendizagens que a escola deve propiciar.
Em cima do
palco estão nove pessoas, com idades entre os 23 e os 64 anos. Seis delas são
professores do ensino básico e secundário (cinco mulheres e um homem, quatro do
ensino público, dois do privado). As outras três também estão ligadas à
educação: uma professora do ensino superior, uma investigadora, uma educadora
artística. Na peça são, à vez, professores e alunos.
Tudo o que se
passa ali foi também escrito por eles para dar corpo a uma peça de
teatro com o nome Professar, que estará em cena no Teatro São Luiz, em
Lisboa, de 23 a 26 de Janeiro.
No palco a
professora do Perfil do Aluno, que no caso é a investigadora Inês Peceguina,
continua a debitar conceito atrás de conceito, mesmo quando todos os outros,
que estão no papel de alunos, já não a ouvem.
Foi esta a abertura
escolhida pelas encenadoras Lígia Soares e Sara Duarte, que acompanharam todo o
«laboratório» em que a peça foi ganhando forma e «coseram» o que saiu de seis
meses de escrita e troca de experiências. “Ao
mesmo tempo está cheio, mas cria uma sensação de vazio”, comenta Lígia Soares a propósito do documento
aprovado em 2018. Isto já depois de o ensaio ter
terminado e de todos se prontificarem a falar com o PÚBLICO.
“Quis-se meter lá tudo com medo de poder faltar alguma
coisa. Chega a ser obsessivo”, descreve Ana
Cotrim, a professora que é a mais velha da equipa. Luísa Carvalho, a docente do
ensino superior, que é a mais optimista do grupo, discorda: “É um potenciador de reflexão, que não tem prisões, nem
amarra ninguém.”
“Pouco barulho!
Silêncio! Teremos de vos pedir para saírem da sala e voltarem a entrar? Estão
sentados nos lugares certos? (…) Endireitem-se lá nas cadeiras. Desliguem lá os
telemóveis e voltem-se lá para a frente. Façam lá o que vos dizemos para fazer
(…).”
A docente Ângela Veiga
está a chegar ao fim da sua aula. De repente é como se tivesse perdido o norte
e já não soubesse sequer dizer aos seus alunos se o seu comportamento foi bom
ou mau. “Bem
ou mal?”, vai repetindo, quando, à
semelhança do que acontecera no início, todos os outros já seguiram o seu
caminho. Serão os professores marionetas nas suas salas de aula? “Não tenho liberdade para agir de acordo com a minha forma
de pensar. Sinto-me manipulada”, corrobora
Ângela.
Ana Cotrim realça que
tudo depende da escola onde se está, diz que a sua experiência docente foi
marcada pela liberdade, mas diz também isto: “Talvez
possamos mudar alguma coisa, mas no geral o que se sobrepõe é uma sensação de desconforto,
limitação, insuficiência, que penso que seja comum também a muitos outros
ambientes de trabalho.”
Pedro Branco evoca
experiências de resistência: “Conheço
professores que se levantaram e disseram não. Na minha sala de aula não.” “Não somos nada
marionetas. A escola é mais do que isto, há qualidade no processo
ensino-aprendizagem”, contrapõe Luísa Ramos.
Sofia Rosa, que é
directora de uma escola, recua ao tempo do «laboratório de escrita». “Há muitos aspectos positivos na escola, mas quando viemos
falar sobre educação não foi isso que trouxemos. Transportámos o que sentimos
na nossa realidade.” “Foi o ponto comum a que chegámos”, reforça a educadora artística Ana Teresa Magalhães. E
que tem marcas como estas: “Angústia,
cepticismo.”
São dois termos quase
consensuais a que tinham chegado antes. Depois de ver a peça, o PÚBLICO lança
mais um para cima da mesa: depressão. Há um
momento de hesitação e depois de concordância, embora não da parte de todos.
Ana Fonseca, professora, é peremptória: “Não
sinto nada disso. Nas primeiras sessões sentimos a necessidade de deitar cá para
fora tudo o que nos ia mal na alma. Mas neste momento já não é disso de que se
trata, já faço o que acho correcto.”
A encenadora Sara
Duarte vai pensando em voz alta. “A
depressão faz-nos pensar, é contrária à fuga para a frente. Sentimos a falta
dos valores em que acreditamos, mas isso não quer dizer que fiquemos num
buraco.” “A depressão colectiva é diferente da depressão individual”, atira Pedro Branco.
“Estão a passar para a
escola papéis que não deveriam ser só da escola: nós estamos a ficar com a responsabilidade
da assistente social, psicólogo, quase fazemos consultas, prestamos atendimento
… O princípio da loja do cidadão! No fim já não distingues nada, se estás na
fila da EDP, do Registo ou da Segurança Social / Ficamos perdidos / A escola
está cheia daquilo que não tem de estar e vazia do que lá devia estar.”
Lígia Duarte acautela:
“A nossa intenção não foi fazer um
diagnóstico, mas dar campo ao lado humano, que está aqui representado.” “Somos o hospital da
sociedade”, resume Ana Fonseca. “Um beco sem saída”,
lamenta Ana Cotrim. Do palco, já a caminho do fim, vem mais uma bofetada pela
voz de outra professora:
“Não é preciso termos
mais medo, estamos a matar a infância.”
A escola mata mesmo a
infância? “É o que sentimos”, responde Sofia Rosa. “É
quase esquizofrénico. Sabemos o que não devemos fazer, mas depois fazemos”, desabafa Ana Cotrim, para reconhecer ainda que existe
“um descontentamento generalizado com a
escola”.
Existirá maior
desconforto do que este? Uma nota pela positiva: “Também nós somos muitas pessoas na mesma pessoa –
professores, pais, tios. E sabemos que a escola tem efectivamente de mudar. Se
esta peça proporcionar reflexão e debate, a aposta foi ganha”, conclui Sofia Rosa.
Fonte: reportagem
de Viana (2020) no jornal «Público»
Fotografia no jornal
«Público»: Nuno Ferreira Santos
Arranjo gráfico do texto: Pedro
Esteves