domingo, 19 de janeiro de 2020

[0208] Vá ao teatro: existe um descontentamento generalizado com a escola!


A reportagem é da jornalista Clara Viana.
A peça de teatro tem como autores e actores aqueles que sabem do que falam. E por isso obriga-nos a questionar radicalmente o que se escreve habitualmente sobre o «estado da educação».

“Muito bom dia a todos. Antes de começar, vamos só relembrar que o perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória não se constitui como qualquer tentativa de uniformizar com referência a um perfil estável e unilateral, mas sim amplo e abrangente, redondo e multifacetado e, ainda assim, claro e objectivo. Assim, não se trata de definir um mínimo, nem um ideal, mas sim o que se pode considerar desejável, com a necessária flexibilidade para não considerar o desejo dominante em relação ao desejo submisso de modo estanque, mas sim de forma dinâmica e mobilizadora (…).”

Confuso? É apenas uma professora a instruir a sua turma sobre o novo Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, que se tornou o novo documento orientador das aprendizagens que a escola deve propiciar.
Em cima do palco estão nove pessoas, com idades entre os 23 e os 64 anos. Seis delas são professores do ensino básico e secundário (cinco mulheres e um homem, quatro do ensino público, dois do privado). As outras três também estão ligadas à educação: uma professora do ensino superior, uma investigadora, uma educadora artística. Na peça são, à vez, professores e alunos.
Tudo o que se passa ali foi também escrito por eles para dar corpo a uma peça de teatro com o nome Professar, que estará em cena no Teatro São Luiz, em Lisboa, de 23 a 26 de Janeiro.
No palco a professora do Perfil do Aluno, que no caso é a investigadora Inês Peceguina, continua a debitar conceito atrás de conceito, mesmo quando todos os outros, que estão no papel de alunos, já não a ouvem.


Foi esta a abertura escolhida pelas encenadoras Lígia Soares e Sara Duarte, que acompanharam todo o «laboratório» em que a peça foi ganhando forma e «coseram» o que saiu de seis meses de escrita e troca de experiências. “Ao mesmo tempo está cheio, mas cria uma sensação de vazio”, comenta Lígia Soares a propósito do documento aprovado em 2018. Isto já depois de o ensaio ter terminado e de todos se prontificarem a falar com o PÚBLICO.
Quis-se meter lá tudo com medo de poder faltar alguma coisa. Chega a ser obsessivo”, descreve Ana Cotrim, a professora que é a mais velha da equipa. Luísa Carvalho, a docente do ensino superior, que é a mais optimista do grupo, discorda: “É um potenciador de reflexão, que não tem prisões, nem amarra ninguém.

Pouco barulho! Silêncio! Teremos de vos pedir para saírem da sala e voltarem a entrar? Estão sentados nos lugares certos? (…) Endireitem-se lá nas cadeiras. Desliguem lá os telemóveis e voltem-se lá para a frente. Façam lá o que vos dizemos para fazer (…).”

A docente Ângela Veiga está a chegar ao fim da sua aula. De repente é como se tivesse perdido o norte e já não soubesse sequer dizer aos seus alunos se o seu comportamento foi bom ou mau. “Bem ou mal?”, vai repetindo, quando, à semelhança do que acontecera no início, todos os outros já seguiram o seu caminho. Serão os professores marionetas nas suas salas de aula? “Não tenho liberdade para agir de acordo com a minha forma de pensar. Sinto-me manipulada”, corrobora Ângela.
Ana Cotrim realça que tudo depende da escola onde se está, diz que a sua experiência docente foi marcada pela liberdade, mas diz também isto: “Talvez possamos mudar alguma coisa, mas no geral o que se sobrepõe é uma sensação de desconforto, limitação, insuficiência, que penso que seja comum também a muitos outros ambientes de trabalho.
Pedro Branco evoca experiências de resistência: “Conheço professores que se levantaram e disseram não. Na minha sala de aula não.” “Não somos nada marionetas. A escola é mais do que isto, há qualidade no processo ensino-aprendizagem”, contrapõe Luísa Ramos.
Sofia Rosa, que é directora de uma escola, recua ao tempo do «laboratório de escrita». “Há muitos aspectos positivos na escola, mas quando viemos falar sobre educação não foi isso que trouxemos. Transportámos o que sentimos na nossa realidade.” “Foi o ponto comum a que chegámos”, reforça a educadora artística Ana Teresa Magalhães. E que tem marcas como estas: “Angústia, cepticismo.
São dois termos quase consensuais a que tinham chegado antes. Depois de ver a peça, o PÚBLICO lança mais um para cima da mesa: depressão. Há um momento de hesitação e depois de concordância, embora não da parte de todos. Ana Fonseca, professora, é peremptória: “Não sinto nada disso. Nas primeiras sessões sentimos a necessidade de deitar cá para fora tudo o que nos ia mal na alma. Mas neste momento já não é disso de que se trata, já faço o que acho correcto.
A encenadora Sara Duarte vai pensando em voz alta. “A depressão faz-nos pensar, é contrária à fuga para a frente. Sentimos a falta dos valores em que acreditamos, mas isso não quer dizer que fiquemos num buraco.” “A depressão colectiva é diferente da depressão individual”, atira Pedro Branco.

“Estão a passar para a escola papéis que não deveriam ser só da escola: nós estamos a ficar com a responsabilidade da assistente social, psicólogo, quase fazemos consultas, prestamos atendimento … O princípio da loja do cidadão! No fim já não distingues nada, se estás na fila da EDP, do Registo ou da Segurança Social / Ficamos perdidos / A escola está cheia daquilo que não tem de estar e vazia do que lá devia estar.”

Lígia Duarte acautela: “A nossa intenção não foi fazer um diagnóstico, mas dar campo ao lado humano, que está aqui representado.” “Somos o hospital da sociedade”, resume Ana Fonseca. “Um beco sem saída”, lamenta Ana Cotrim. Do palco, já a caminho do fim, vem mais uma bofetada pela voz de outra professora:

“Não é preciso termos mais medo, estamos a matar a infância.”

A escola mata mesmo a infância? “É o que sentimos”, responde Sofia Rosa. “É quase esquizofrénico. Sabemos o que não devemos fazer, mas depois fazemos”, desabafa Ana Cotrim, para reconhecer ainda que existe “um descontentamento generalizado com a escola”.
Existirá maior desconforto do que este? Uma nota pela positiva: “Também nós somos muitas pessoas na mesma pessoa – professores, pais, tios. E sabemos que a escola tem efectivamente de mudar. Se esta peça proporcionar reflexão e debate, a aposta foi ganha”, conclui Sofia Rosa.

Fonte: reportagem de Viana (2020) no jornal «Público»

Fotografia no jornal «Público»: Nuno Ferreira Santos

Arranjo gráfico do texto: Pedro Esteves

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

[0207] O Império Mogol e os azulejos mogol


Imaginemos uma parede forrada de azulejos, todos com o mesmo padrão geométrico. E imaginemos que a impressão visual que ela nos dá é a que os seguintes 9 azulejos nos dão:


Que há de invulgar neste padrão de azulejos?!

Sim, é isso: o que há de invulgar é a forma do próprio azulejo, um hexágono regular – não é uma forma usual no mundo ocidental!

De onde veio então a ideia de sugerir que imaginemos uma tal parede?
Compreensivelmente, surgiu do Museu Nacional do Azulejo (MNA), em Lisboa, onde estão visíveis para os visitantes alguns azulejos chamados «mogol», como este:


Trata-se de um azulejo proveniente do Mosteiro de Santa Mónica, em Goa, datado do século XVII, e que tem a particularidade de não ter a forma de um quadrado, mas sim de um hexágono, tal como os outros azulejos mogóis que o MNA nos mostra.

Enquanto no mundo ocidental os azulejos foram rapidamente reduzidos ao suporte quadrado, noutras paragens deste mundo em que vivemos a arte continuou a recorrer a uma maior variedade de formas. No caso deste azulejo tratou-se da chamada arte mogol.

A arte mogol é a arte que o Império Mogol (ou Mugal, ou Mogul) nos proporcionou.
Este Império durou de 1526 a 1857 (teve um interregno entre 1540 e 1555), correspondendo a máxima dimensão do seu território (atingida por volta de 1700) à quase totalidade do sub-continente indiano, ou, em termos actuais, à maior parte da Índia, do Paquistão, do Afeganistão e do Bangladesh:


O fundador do Império Mogol, Babur, era descendente de Gengis Khan (um mongol), sendo possível que tenha sido por esta razão que os portugueses designaram por Grão-Mogol cada um dos imperadores com que contactaram neste Império.
No seu auge, com uma população superior a 100 milhões de habitantes, o Império Mogol poderá ter sido o mais rico, o mais sofisticado e o mais poderoso do planeta. No entanto, entrou em rápido declínio a partir de 1725, por razões internas, não tendo sido por isso capaz de resistir à pressão do colonialismo britânico.

O padrão geométrico que imaginámos inicialmente tem uma consequência muito interessante para quem o queira analisar sob o ponto de vista matemático: pelo facto de a forma destes azulejos ser hexagonal, é possível formar nas paredes por eles cobertas alguns dos padrões que os azulejos cuja forma é quadrada não podem formar.
Recorrendo ao fluxograma da mensagem «0123», a classificação deste padrão como papel de parede precisa de responder às seguintes questões:

Pergunta: tem pelo menos uma família de centros de rotação?
Resposta: sim.
Comentário: de facto, tem várias famílias de centros de rotação.
Pergunta seguinte: a amplitude mínima dessa rotação é de 180º, ou inferior?
Resposta: sim.
Comentário: a amplitude mínima é de 60º.
Terceira pergunta: a amplitude mínima dessa rotação é de 90º, ou diferente?
Resposta: é diferente.
Quarta pergunta: a amplitude mínima dessa rotação é de 120º ou de 60º?
Resposta: 60º.
Quinta pergunta: tem pelo menos uma família de simetrias axiais?
Resposta: tem
Comentário: tem muitas famílias de simetrias axiais!
Conclusão: este padrão é do tipo p6m.

Com apenas um exemplo de centro de rotação e de eixo de simetria, eis então o painel de azulejos que imaginámos:


Fonte: sobre o Império Mogol (texto e mapa), Wikipédia

Fotografia: Eva Maria Blum

Desenhos: Pedro Esteves

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

[0206] Os «factos», a «construção de factos» e a necessidade dos «argumentos»


Pretendendo questionar aquilo a que habitualmente chamamos factos, recorro a três histórias bastante conhecidas; mas adapto-as um pouco, para tornar mais evidente o que quero interrogar.

A primeira história é a da mesa em cima da qual está um copo.
A dada altura uma das pessoas sentada à volta da mesa olha para o copo e diz: «O copo está meio cheio». E logo uma outra diz que «Não, o copo está meio vazio». As restantes pessoas nem se apercebem desta troca de palavras; talvez até nem tenham ainda prestado atenção ao copo: pensam e falam sobre outras coisas.
Há, em torno da mesa desta história, diversos factos. Mas cada pessoa observa uns e não liga a outros. E até aqueles que observam o mesmo facto tinha acerca dele um sensibilidade distinta, enunciando-o como factos diferentes.

A segunda história é a do grupo de cegos que passeia.
Apesar de caminharem com muito cuidado, esbarram em algo que desconhecem. Cada cego procura perceber de que se trata, tocando-lhe cuidadosamente. Um dos que está no centro do grupo afirma que embateram numa árvore, outro acha que foi num muro e o terceiro diz que lhe parece ter sido num enorme leque. Os que estão nos extremos do grupo chegaram a outras conclusões: terão tropeçado numa cobra, chocado numa vedação, batido num grande ramo.
Quando estavam prestes a desistir de se entenderem, ouvem um bramido inquietante: tinham afinal esbarrado num único obstáculo: um elefante.


Esta história também inclui diversos factos, mas todos os participantes nela têm um interesse convergente; de início, as informações parciais que recolheram fá-los formular factos diversos e imprecisos acerca daquilo que lhes tinha sucedido. Ao receberem uma última informação, igual para todos, o seu interesse comum permitiu-lhes formular um facto partilharam por todos.

A derradeira história é o do frango para o jantar.
São dois, os comensais, que só vão deixar os ossos do frango. No fim do jantar chega a Estatística, que diz: «Cada um de vocês comeu, em média, meio frango!»
A versão provocante desta história garante que o frango foi todo comido por um dos comensais, nada tendo o outro comido. Para ela, a moral é: não basta falar na média, pode-se acrescentar, por exemplo, qual o valor máximo comido pelos comensais (neste caso é igual 1) e qual o valor mínimo (neste caso é igual a 0). Assim, concluí esta versão, tudo fica esclarecido … estatisticamente.
Mas há muitas outras coisas que nós não sabemos: por exemplo, quem nada comeu, ou foi impedido de o fazer, ou estava ali só pela companhia porque já tinha jantado, ou … etc.. Portanto, muitas vezes os instrumentos estatísticos são insuficientes para descrever uma história. Se estivermos interessados em saber o que está para além das aparências estatísticas temos de nos mexer, interrogando quem nos pode dar outras informações. E mesmo depois de obtermos novas informações, só disporemos de uma visão parcelar do que aconteceu, isto é, do facto.

Há quem chame a este esforço para conhecer os factos, sem nunca os conseguir conhecer por completo, nem inequivocamente, construção de factos. Assim acontece na Ciência, por exemplo, onde o que nós sabemos sobre o Átomo mais não é do que aquilo que podemos imaginar (ao teorizar) a partir das indicações fornecidas pelos instrumentos de que os cientistas dispõem. E o mesmo acontece, ainda mais radicalmente, quando se trata de conhecer o que depende do factor tempo, como na Astronomia, na Geologia e na História: os factos passados desapareceram quase por completo, restando-nos apenas vestígios de uns poucos, sendo a partir deles que podemos construir hipóteses acerca do que já se passou.

A pretensão de prestar mais atenção àquilo a que chamamos, com demasiada ligeireza, factos, decorreu de um caso concreto: há quem se mostre grande satisfação por, na sua opinião, os tempos que correm serem os melhores de sempre para a humanidade, e citam, invariavelmente, as estatísticas que mostram como a luta contra a pobreza extrema tem feito progressos nas últimas décadas.
É este argumento que me choca. Quando as Nações Unidas propuseram aos governos e aos cidadãos de todo o mundo cumprir, entre 2015 e 2030, os chamados Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, o primeiro deles, Erradicar a pobreza, foi assim enunciado (mensagem «0154»):

·      Até 2030, erradicar a pobreza extrema em todos os lugares, atualmente medida como pessoas que vivem com menos de 1,25 dólares por dia.
·      Até 2030, reduzir pelo menos para metade a proporção de homens, mulheres e crianças, de todas as idades, que vivem na pobreza, em todas as suas dimensões, de acordo com as definições nacionais.
·      Implementar, a nível nacional, medidas e sistemas de proteção social adequados, para todos, incluindo escalões, e até 2030 atingir uma cobertura substancial dos mais pobres e vulneráveis.
·      Até 2030, garantir que todos os homens e mulheres, particularmente os mais pobres e vulneráveis, tenham direitos iguais no acesso aos recursos económicos, bem como no acesso aos serviços básicos, à propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, herança, recursos naturais, novas tecnologias e serviços financeiros, incluindo microfinanciamento.
·      Até 2030, aumentar a resiliência dos mais pobres e em situação de maior vulnerabilidade, e reduzir a exposição e a vulnerabilidade destes aos fenómenos extremos relacionados com o clima e outros choques e desastres económicos, sociais e ambientais.
·      Garantir uma mobilização significativa de recursos a partir de uma variedade de fontes, inclusivé por meio do reforço da cooperação para o desenvolvimento, para proporcionar meios adequados e previsíveis para que os países em desenvolvimento (em particular, os países menos desenvolvidos) possam implementar programas e políticas para acabar com a pobreza em todas as suas dimensões.
·      Criar enquadramentos políticos sólidos ao nível nacional, regional e internacional, com base em estratégias de desenvolvimento a favor dos mais pobres e que sejam sensíveis às questão da igualdade do género, para apoiar investimentos acelerados nas ações de erradicação da pobreza.

Os argumentos implícitos neste enunciado focam não só a pobreza extrema, como a pobreza em geral e as suas diversas origens e áreas de possível solução. Se aquilo que este nosso mundo produziu anualmente foi multiplicado por 234 entre 1 800 e 2 000 (para um aumento populacional de apenas 6 vezes), se em 2009, para uma população mundial estimada em 6 680 milhões de pessoas, o que foi produzido per capita foi de 8 980 €uros, é admissível continuar a usar como argumento satisfatório que a pobreza extrema diminui quando ela já devia ter sido radicalmente erradicada?

Para que factos vamos nós olhar, já que estamos todos sentados à volta da mesma mesa?

Fontes: Wikipédia, sobre o Produto Mundial Bruto, e livro de Fonseca-Statter (2011; p. 9), sobre o PIB mundial per capita em 2009