Pretendendo questionar aquilo a que habitualmente chamamos factos,
recorro a três histórias bastante conhecidas; mas adapto-as um pouco, para
tornar mais evidente o que quero interrogar.
A primeira história é a da mesa em cima da qual está um copo.
A dada altura uma das pessoas sentada à volta da mesa olha para
o copo e diz: «O copo está meio cheio». E logo uma outra diz que «Não, o copo está
meio vazio». As restantes pessoas nem se apercebem desta troca de palavras;
talvez até nem tenham ainda prestado atenção ao copo: pensam e falam sobre
outras coisas.
Há, em torno da mesa desta história, diversos factos. Mas cada pessoa observa uns e
não liga a outros. E até aqueles que observam o mesmo facto tinha acerca dele
um sensibilidade distinta,
enunciando-o como factos diferentes.
A segunda história é a do grupo de cegos que passeia.
Apesar de caminharem com muito cuidado, esbarram em algo que
desconhecem. Cada cego procura perceber de que se trata, tocando-lhe cuidadosamente.
Um dos que está no centro do grupo afirma que embateram numa árvore, outro acha
que foi num muro e o terceiro diz que lhe parece ter sido num enorme leque. Os
que estão nos extremos do grupo chegaram a outras conclusões: terão tropeçado numa
cobra, chocado numa vedação, batido num grande ramo.
Quando estavam prestes a desistir de se entenderem, ouvem um
bramido inquietante: tinham afinal esbarrado num único obstáculo: um elefante.
Esta história também inclui diversos factos, mas todos os
participantes nela têm um interesse convergente; de início, as informações
parciais que recolheram fá-los formular factos diversos e imprecisos acerca
daquilo que lhes tinha sucedido. Ao receberem uma última informação, igual para
todos, o seu interesse comum permitiu-lhes formular um facto partilharam por
todos.
A derradeira história é o do frango para o jantar.
São dois, os comensais, que só vão deixar os ossos do frango.
No fim do jantar chega a Estatística, que diz: «Cada um de vocês comeu, em
média, meio frango!»
A versão provocante desta história garante que o frango foi
todo comido por um dos comensais, nada tendo o outro comido. Para ela, a moral
é: não basta falar na média, pode-se
acrescentar, por exemplo, qual o valor
máximo comido pelos comensais (neste caso é igual 1) e qual o valor mínimo (neste caso é igual a 0).
Assim, concluí esta versão, tudo fica esclarecido … estatisticamente.
Mas há muitas outras coisas que nós não sabemos: por
exemplo, quem nada comeu, ou foi impedido de o fazer, ou estava ali só pela
companhia porque já tinha jantado, ou … etc.. Portanto, muitas vezes os instrumentos
estatísticos são insuficientes para descrever uma história. Se estivermos interessados
em saber o que está para além das aparências estatísticas temos de nos mexer,
interrogando quem nos pode dar outras informações. E mesmo depois de obtermos novas
informações, só disporemos de uma visão parcelar do que aconteceu, isto é, do facto.
Há quem chame a este esforço para conhecer os factos, sem
nunca os conseguir conhecer por completo, nem inequivocamente, construção de
factos. Assim acontece na Ciência, por exemplo, onde o que nós
sabemos sobre o Átomo mais não é do que aquilo que podemos imaginar (ao teorizar)
a partir das indicações fornecidas pelos instrumentos de que os cientistas
dispõem. E o mesmo acontece, ainda mais radicalmente, quando se trata de
conhecer o que depende do factor tempo, como na Astronomia, na Geologia e na
História: os factos passados desapareceram quase por completo, restando-nos
apenas vestígios de uns poucos, sendo a partir deles que podemos construir
hipóteses acerca do que já se passou.
A pretensão de prestar mais atenção àquilo a que chamamos,
com demasiada ligeireza, factos,
decorreu de um caso concreto: há quem se mostre grande satisfação por, na sua
opinião, os tempos que correm serem os melhores de sempre para a humanidade, e
citam, invariavelmente, as estatísticas que mostram como a luta contra a pobreza
extrema tem feito progressos nas últimas décadas.
É este argumento que me choca. Quando as Nações
Unidas propuseram aos governos e aos
cidadãos de todo o mundo cumprir, entre 2015 e 2030, os chamados Objectivos de
Desenvolvimento Sustentável, o primeiro deles, Erradicar a pobreza, foi assim
enunciado (mensagem «0154»):
·
“Até 2030, erradicar
a pobreza extrema em todos os lugares, atualmente medida como pessoas que vivem
com menos de 1,25 dólares por dia.
· Até 2030, reduzir pelo menos para metade a proporção de homens,
mulheres e crianças, de todas as idades, que vivem na pobreza, em todas as suas
dimensões, de acordo com as definições nacionais.
· Implementar, a nível nacional, medidas e sistemas de proteção
social adequados, para todos, incluindo escalões, e até 2030 atingir uma
cobertura substancial dos mais pobres e vulneráveis.
· Até 2030, garantir que todos os homens e mulheres,
particularmente os mais pobres e vulneráveis, tenham direitos iguais no acesso
aos recursos económicos, bem como no acesso aos serviços básicos, à propriedade
e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, herança, recursos
naturais, novas tecnologias e serviços financeiros, incluindo
microfinanciamento.
· Até 2030, aumentar a resiliência dos mais pobres e em
situação de maior vulnerabilidade, e reduzir a exposição e a vulnerabilidade
destes aos fenómenos extremos relacionados com o clima e outros choques e
desastres económicos, sociais e ambientais.
· Garantir uma mobilização significativa de recursos a
partir de uma variedade de fontes, inclusivé por meio do reforço da cooperação
para o desenvolvimento, para proporcionar meios adequados e previsíveis para
que os países em desenvolvimento (em particular, os países menos desenvolvidos)
possam implementar programas e políticas para acabar com a pobreza em todas as
suas dimensões.
· Criar enquadramentos políticos sólidos ao nível nacional,
regional e internacional, com base em estratégias de desenvolvimento a favor
dos mais pobres e que sejam sensíveis às questão da igualdade do género, para
apoiar investimentos acelerados nas ações de erradicação da pobreza.”
Os argumentos implícitos neste enunciado focam não só
a pobreza extrema, como a pobreza em geral e as suas diversas origens e áreas de possível
solução. Se aquilo que este nosso mundo produziu anualmente foi multiplicado
por 234 entre 1 800 e 2 000 (para um aumento populacional de apenas 6 vezes), se em 2009, para uma população mundial estimada em
6 680 milhões de pessoas, o que foi produzido per capita foi de 8 980 €uros, é admissível continuar a usar como
argumento satisfatório que a pobreza extrema diminui quando ela já devia ter
sido radicalmente erradicada?
Para que factos vamos nós olhar, já que estamos todos
sentados à volta da mesma mesa?
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