quinta-feira, 31 de maio de 2018

[0127] Não: não proponho uma visão conservadora da História, só mais bom senso …


Há dias alguém me descreveu um projecto de comparação entre o que os nossos livros de história e os livros de história de outros países de língua portuguesa contam sobre os tempos em que os respectivos povos se encontraram e sobre o desencontro em que esse encontro se transformou nos séculos seguintes.
Um projecto bem interessante.
Que seria interessante generalizar a tantos outros encontros e desencontros que ocorreram por esse mundo fora: que disseram, que escreveram, que pensaram as diferentes partes que neles estiveram envolvidas?
E que ainda seria interessante generalizar ao que, no mesmo país, dizem as diferentes fontes sobre o que aí ocorreu.

John dos Passos (1896 – 1970) escreveu um livro (publicado em 1969) que foi grandemente baseado nas crónicas dos que viveram as histórias dos séculos XV a XVII português, ou que foram encarregues de as contar pouco tempo depois de ela acontecer:


O autor, jornalista e escritor, americano de antepassados madeirenses, estava consciente da insuficiência de uma tal forma de contar a História, mas também estava consciente da força que a palavra próxima dos acontecimentos tem para nos colocar questões que a História formalizada ilude e torna pesada - sobretudo para quem a aprende nas nossas escolas.

Fonte bibliográfica: Passos (2017)

quarta-feira, 23 de maio de 2018

[0126] «Os Jogos e os Homens», de Roger Caillois


Foi em 1958 que Roger Caillois (1913 - 1978), sociólogo, publicou esta sua reflexão, hoje clássica, sobre os «jogos».

Para ele, o jogo é “uma actividade:
1.       livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre;
2.      delimitada: circunscrita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e previamente estabelecidos;
3.      incerta: já que o seu desenrolar não pode ser determinado nem o resultado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixado à iniciativa do jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar;
4.      improdutiva: porque não gera nem bens, nem riqueza nem elementos novos de espécie alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida;
5.      regulamentada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta;
6.      fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal.




Para tentar captar a diversidade das atitudes subjacentes ao jogar, Caillois propôs quatro categorias principais, “conforme predomine, nos jogos considerados, o papel da competição, da sorte, do simulacro ou da vertigem.
Exemplos: a competição predomina no jogo da bola, do berlinde, das damas; a sorte predomina na roleta e na lotaria; o simulacro nos jogos em que se «faz de»; e a vertigem em jogos como o baloiço e o carrossel.

E, em jeito de advertência final, comenta assim a relação que se estabelece com o jogo e as disciplinas que o estudam:
O jogo é um fenómeno total. Diz respeito ao conjunto das actividades e dos anseios humanos. Poucas são as disciplinas – da pedagogia às matemáticas, passando pela história e pela sociologia – que o podem estudar proveitosamente sem um desvio qualquer. Todavia, seja qual for o alcance teórico ou prático dos resultados obtidos em cada uma das perspectivas particularizadas, tais resultados permanecerão destituídos do seu significado e da sua verdadeira aplicação, se não forem encarados por referência ao principal problema que é colocado pelo universo indivisível dos jogos, donde, aliás, retiram o interesse que podem suscitar.

Fonte: Caillois (1990; pp. 29-39, 32 e 202)

sábado, 19 de maio de 2018

[0125] A emancipação na «Pedagogia do Oprimido»


Paulo Freire (1921 - 1997) terminou a sua obra fundadora, Pedagogia do Oprimido, em 1968, quando se encontrava refugiado no Chile:


A propósito de algumas situações em que as ideias de emancipação e de educação emancipatória foram usadas de um modo que me levantou dúvidas, aqui escrevo alguns excertos desta obra para me ajudarem a pensar:

A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na sua luta incessante de recuperação de sua humanidade.

Os oprimidos, que introjectam a «sombra» dos opressores e seguem as suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta, implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que «preenchessem» o «vazio» deixado pela expulsão, com outro «conteúdo» - o de sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente busca.

Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objectos de um «tratamento» humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua «promoção». Os oprimidos hão-de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção.

“[Na educação escolar,] A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em «vasilhas», em recipientes a serem «enchidos» pelo educador. Quanto mais vá «enchendo» os recipientes com seus «depósitos», tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem dòcilmente «encher», tanto melhores educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um acto de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante.
Eis aí a concepção «bancária» da educação, em que a única margem de acção que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem coleccionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção «bancária» da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da praxis, os homens não podem ser. Educador e educando se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.

“[…] ninguém educa ninguém, como também ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.

“[Os “educandos” do “educador problematizador”,] em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também.

Fonte: Freire (1975; pp. 43, 46, 56, 82, 82-83, 97 e 99)

quarta-feira, 16 de maio de 2018

[0124] «Memória, Cultura e Devir»: questões acerca da memória


Resumo da argumentação que levou as Ciências Sociais a organizar esta Conferência Internacional:

Esta conferência pretende interrogar a hipertrofia dos estudos sobre a memória, que corresponde a um estado do saber e das sociedades, sobretudo desde os anos de 1980, quando o optimismo se diluiu e o futuro pareceu tornar-se passado. Essa viragem, coetânea de mudanças ao nível das sociedades, requer uma reflexão em torno dos usos do passado, como artefacto do presente (Lowenthal, 1985), sujeitos às relações de forças dentro das sociedades. A actual obsessão do passado é uma resposta substitutiva às urgências do presente ou, mesmo, uma recusa do futuro (Rousso, 1994: 280). Pretende interrogar-se a relação com as fontes que falam, que questione a teoria e os métodos, entre a memória e a história oral, numa abordagem em que os saberes de fronteira de várias disciplinas têm de ser convocados. Terreno não pacificado, a memória continua a ser um interessante problema para as ciências sociais. Intensificou-se como objeto de estudo, materializado em formatos de património, no decurso dos anos 1980. Conquanto memórias traumáticas com as dos fascismos e do nazismo pudessem ter sido alvo de um trabalho anterior dos investigadores, e que a memória tenha hoje o estatuto de religião civil do mundo ocidental, o processo de passagem de memória fraca a memória forte não foi imediato (Traverso, 2005:54-59). Quando a topolatria se tornou central, por que razões se ergueram lugares de memória, ao mesmo tempo que desapareciam os meios de memória? Que dificuldades surgem na criação de lugares de memória de situações conflituais? Como se recorda o trauma e o acontecimento? Quando adquiriu a memória tal centralidade nas Ciências Sociais? Estudamos cada vez mais a memória porque as sociedades se ressentem de uma ausência de esperança? Que relação estabelece o presentismo, como denegação do devir, com os usos da memória? Qual a conexão entre a experiência e a expectativa, e quanto (e qual...) passado se resgata para o futuro? Num tempo em que se tornou ecuménico o património, que relação estabelece a memória com ele, entre a beleza do morto e novos caminhos? Qual o papel da cultura na construção de uma força material das ideias? Em processos de exibição e musealização do passado, como lidamos com a memória das ditaduras e os processos de transição para as democracias? Que espaço se consagra ao devir na pesquisa em ciências sociais?


Fonte: sítio do Instituto de História Contemporânea

sábado, 12 de maio de 2018

[0123] Uma nova proposta de fluxograma para classificar os «papéis de parede»

O fluxograma que apresentei na mensagem «0119», que visa classificar os «papeis de parede», tem algumas dificuldades de leitura, pelo que procedo a seguir a uma sua adaptação:


Em 1891 o cristalógrafo russo Fedorov descreveu os 17 casos possíveis de grupos cristalográficos bidimensionais. Os matemáticos só tomaram conhecimento desse trabalho na década de 1920, tendo adoptado as designações dos grupos («p1», «pg», «pm», etc.) usadas na cristalografia e só criando outras classificações e designações posteriormente.

Fontes: Coxford Jr., Burks, Giamati & Jonik (1993; p. 42); Veloso (1998; pp. 192-202)

quarta-feira, 9 de maio de 2018

[0122] O Jogo do Avô Aferidor


O Aferidor tem por papel aferir a correcção dos mais diversos instrumentos de medida.
Até ao início deste século existia em Portugal um Aferidor Municipal, entretanto substituído por uma grande diversidade de instituições espalhadas por todo o país, sob a supervisão do Instituto Português da Qualidade.
Assim, os antigos Aferidores Municipais, hoje reformados e com netos, terão tempo pensar em problemas interessantes da sua profissão que antes não tiveram disponibilidade para formular e para resolver …

Este é o pano de fundo, com um toque ficcional, para o seguinte problema que eu, nem antigo Aferidor nem com netos, mas reformado, coloquei: dispondo de uma balança de braços iguais e de um exemplar de cada uma das unidades de massa na base três (1 + 3 + 9 + 27 + 81 + … + 3N), poderemos aferir qualquer massa inteira (1; 2; 3; 4; 5; …; N) que for colocada num dos pratos?

A resposta é: podemos; e, para cada N, de um único modo, embora em boa parte dos casos tenhamos de usar os dois pratos da balança (somando de um lado, subtraindo do outro).
As seguintes tabelas permitem ao Avô Aferidor resolver este problema, até N = 121; ou, em alternativa, permitem colocar aos seus netos algumas oportunidades para exercitarem o cálculo mental (experimentei-o na 5ª feira passada com os alunos de uma turma do 9º ano e eles saíram-se muito bem):


Com fundo amarelo estão as unidades de massa; com fundo branco os casos aditivos; e com fundo negro, os casos subtrativos.

Por exemplo, com que unidades se equilibra a massa «100»?
Ela figura nas tabelas do 1, do 27 e do 81 com fundo branco, na do 9 com fundo negro e não figura na do 27: então,

100 = 1 + 27 + 81 – 9.

terça-feira, 1 de maio de 2018

[0121] Um azulejo sevilhano em Coimbra


O seguinte painel de azulejos pode ser apreciado no Museu Nacional de Machado de Castro (Coimbra):


Ele terá sido produzido entre 1500 – 1525, em Sevilha, e esteve colocado na Sé de Coimbra.

Explica o Museu: “No reinado de D. Manuel I surgem [em Portugal] os primeiros revestimentos azulejares. São importados de Sevilha […]. Apresentam magnífico colorido e motivos ao gosto islâmico, gótico e renascentista. Nos inícios do séc. XVI, D. Jorge de Almeida, bispo de Coimbra, forra integralmente a sua catedral e a igreja de Santa Maria, em Abrantes, com azulejos sevilhanos.

Olhando este azulejo com a ferramenta matemática apresentada na mensagem «0119», à primeira questão que lhe é colocada (qual é a rotação de menor amplitude?) responderemos com «90º». E à segunda questão (existe uma simetria axial?) responderemos com «não».

Duas famílias de centros de rotação de um quarto de volta

Classificando então este painel como um «papel de parede», ele é do tipo p4.

Fotografia: Eva Maria Blum