quinta-feira, 22 de março de 2018

[0112] Mais uma vez: «apropriação» versus «transmissão»


Escrevi, a propósito das reproduções de quadros célebres que foram incognitamente desviadas do centro de Lisboa para a sua periferia, de modo a que aí pudessem ser apreciadas por outros públicos (mensagem «0087»): a educação processa-se entre a «transmissão» e a «apropriação».
Agora, ao reflectir sobre os desafios que a promoção da leitura coloca, encontrei um bom pretexto para acrescentar àquela afirmação «equidistante» o meu ponto de vista pedagógico: a apropriação daquilo que nos procuram transmitir é muito mais importante do que a transmissão daquilo de que nos devemos apropriar.

A pista para a reflexão surgiu-me num diálogo de João dos Santos (1913-1987), um extraordinário psicólogo educacional:


Disse ele: “o drama é que não há continuidade entre o que se aprende livremente antes de se entrar para a escola e aquilo que se aprende na escola”; antes de se entrar para a escola “aprende-se a viver e a conviver e num plano de relação verbal”, enquanto “o que se ensina na escola, é apenas a linguagem escrita, só tem que ver com a linguagem escrita, que é vista pela escola como se tudo o resto não tivesse importância nenhuma, como se o falar, o dialogar, o brincar não tivesse importância nenhuma”.

E depois:
É que o importante na escola, para começar, é que o adulto se aperceba de que a criança já sabe imensas coisas. E a maior parte das vezes a escola e os professores ignoram que a criança já tem um saber, e que é um saber extraordinariamente importante, e partem do princípio de que o que elas sabem não tem nenhum valor, o que é perfeitamente errado e prejudicial.” No fim de contas, a escola pretende que “o que não é mensurável, quer dizer, o que vai até ao infinito, ao céu e às estrelas”, seja reduzido “a uma escala do mensurável”, pelo quea criança que ainda está numa fase de instabilidade, que anda a percorrer o seu universo e a alargá-lo para o compreender”, vê-se reduzida “às dimensões de uma mesa, de um papel. É por isso que “todas as dificuldades escolares têm que ver com um estado de tristeza da criança.

E se - não desistindo de promover a leitura, a escrita, o cálculo, as artes, a actividade física, a experimentação e tudo o resto – começássemos por ouvir as crianças e as deixássemos tomar as suas iniciativas?

Fonte bibliográfica: Santos, em conversa com Monteiro (1989; pp. 97, 141, 159 e 218)

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