domingo, 28 de dezembro de 2025

[0366] Laboratório de Matemática (I): as origens

A ideia de Laboratório de Matemática é um resultado da centenária utilização de ferramentas que incorporam modelos matemáticos e que tanto servem para obter respostas práticas como, embora com menos frequência, para investigar os conceitos que lhe estão subjacentes.

A integração conceptual de ferramentas como os círculos trigonométricos e as máquinas de calcular num ambiente laboratorial talvez tenha sido estimulada pelos desafios que o ensino-aprendizagem da Matemática foi crescentemente colocando aos educadores, motivação que parece bem patente em alguns exemplos vindos das décadas portuguesas de 1940, 1950 e 1960:
* Em 1941, Bento de Jesus Caraça propôs, no nº 8 da «Gazeta de Matemática», que se estudasse “A possível introdução de métodos novos de ensino tais como os métodos laboratoriais para os rudimentos de geometria”, “A possível utilização do cinema no ensino da matemática”, “A difusão do gôsto pelo estudo da matemática por meios extra-escolares, tais como a criação de clubes matemáticos, etc.”;
* Em 1951, no nº 47 da mesma revista, Matilde O. Macagno publicou um artigo intitulado «El método de laboratorio en la enseñanza de la Matemática»;
* Em 1962, C. Gattegno orientou um curso sobre o material Cuisenaire, destinado a professores de todo o país, no âmbito de uma experiência iniciada no ano anterior por J. Nabais no Colégio Vasco da Gama;
* E em 1967, no nº 5 da «Folha Informativa dos Professores do 1º Grupo (E.T.P.)» (a primeira publicação periódica portuguesa “consagrada exclusivamente à educação matemática” e na qual estão representadas uma “diversidade de perspectivas pedagógicas”) foram publicados diversos artigos sobre «clubes de Matemática» e «laboratórios de Matemática» e editada uma «secção de problemas».

Nestes exemplos, a ideia de Laboratório de Matemática está associada a preocupações com a motivação dos alunos, com o recurso a materiais manipuláveis e a tecnologias próprias da época e com a utilização de espaços pedagógicos exteriores à sala de aula.

No entanto a onda de utilização de Laboratórios de Matemática desapareceu.

Em 1977, portanto já depois do 25 de Abril, José Sebastião e Silva (investigador, professor e promotor da muito conhecida Reforma da Matemática Moderna) leu bem este conjunto de possibilidades ao reconhecer o papel que os computadores, que então davam tímidos passos para serem de acesso democratizado, poderiam vir a desempenhar: “Haveria muitíssimo a lucrar em que o ensino destes assuntos fosse [...] tanto quanto possível laboratorial, isto é, baseado no uso de computadores, existentes nas próprias escolas ou fora destas, em laboratórios de cálculo.

Paralelamente às iniciativas que favoreciam a via laboratorial no ensino-aprendizagem, mas surgindo mais tarde, também a divulgação da Ciência, e em particular a da Matemática, começou a socorrer-se daquilo que viria a ser designado por hands on (ou «mãos na massa). Tratando-se da Física, cita-se frequentemente o papel pioneiro do «Exploratorium», criado, em São Francisco, na década de 1960, por Frank Oppenheimer. A Matemática poderá ter sido mais lenta a entrar nesta via; foram muito visitadas, em Portugal, no final da década de 1980, as duas exposições «Horizons des Mathematiques», concebidas em La Villette (em Paris). Eis a capa do catálogo de uma delas:


Decidir explorar num Laboratório ou divulgar num Museu podem ser escolhas que se complementam, mas também podem ser prioridades discordantes para diferentes educadores. Foi isso que aconteceu numa Mesa Redonda organizada (em 1990 ou 1991) pela revista «Noesis» na qual participaram Domingos Fernandes, Jaime Carvalho Silva, José Manuel Matos e Leonor Vieira, além de eu próprio, Pedro Esteves. O tema era a Educação Matemática e a dada altura o Jaime chamou a atenção para a falta de “centros de recursos” para apoiar, nas universidades, a formação inicial dos professores. E a isso eu respondi que, além desses centros, que se poderiam localizar nas grandes cidades, as escolas do ensino não superior, como a minha, deveriam “ser elas próprias centros de recursos”, pois se os recursos se destinam a ser “utilizados pelos alunos, aí é que devem estar”; e, acrescentei, também seria importante criar “formas de circulação das «boas ideias»”, quer através de “encontros específicos”, quer através de “revistas que possam chegar um pouco a toda a parte.” O Jaime insistiu que a sua ideia de “centralização relativamente descentralizada” seria uma “maneira mais económica” e também “mais eficaz e mais realista”.
Esta pequena troca de opiniões, apesar de se referir em comum a «centros de recursos», realçou duas possibilidades muito diferentes para desenvolver a Educação Matemática, uma mais centralista (da universidade para os professores e destes para os alunos), a outra mais descentralizada. Mas não se tratava, ainda, nem de «Laboratórios de Matemática» nem da «Divulgação da Matemática».
 
A expressão Laboratório de Matemática sugere duas acções distintas: por ser «Laboratório», a experimentação; e por ser «Matemática», a demonstração. Ao se juntarem, elas sugerem que a Matemática, tanto a que se faz como a que se ensina-e-aprende, precisa dessas duas acções.
Esta expressão não sugere um outro aspecto que só a prática evidencia: a qualquer laboratório está associada uma cultura e, no caso de fazer parte de um sistema educativo, terá de estar aberto a várias culturas.

Os argumentos a favor de a experimentação fazer parte da Matemática-que-se faz-e-que-se-ensina-e-se-aprende nunca esquecem a necessidade da demonstração, como já diversos autores evidenciaram.
Para Ubiratan d`Ambrósio, a Matemática sempre teve um lado experimental. E, para o fundamentar, ele cita Euler: “as propriedades de números que nós conhecemos foram usualmente descobertas por observação e descobertas bem antes de sua validade ter sido confirmada por demonstração [...]. É por observação que progressivamente descobrimos novas propriedades, que nós logo fazemos o máximo possível para provar.

E para Philip Davis e Reuben Hersh, “Os empiristas sustentavam que todo o conhecimento, exceptuando o conhecimento matemático, é fruto da observação. Não se preocupavam em explicar de onde vem o conhecimento matemático. Uma excepção foi John Stuart Mill [1806-1873]. Mill propôs uma teoria empirista do conhecimento matemático, que afirmava que as matemáticas são uma ciência natural, não diferente das demais.” Depois de Mill, a revolução na filosofia das ciências proposta, em 1934, por Karl Popper (1902-1994) postulou que “as teorias científicas não são inferidas indutivamente a partir de factos; são pelo contrário inventadas com o carácter de hipóteses, especulações e, inclusivé, conjecturas” , sendo, depois, submetidas a “ensaios experimentais mediante os quais os críticos tentam refutá-las.” “Quando uma teoria sobrevive a tais provas pode ser considerada provisoriamente estabelecida; mas nunca demonstrada.” Algumas décadas mais tarde, Imre Lakatos (1922-1974) sustentou que também “as matemáticas informais são uma ciência no sentido de Popper, que se desenvolve através de um processo de crítica e de refinamento sucessivo das teorias e da proposta de teorias novas que competem entre si (e não mediante as deduções das matemáticas formalizadas).

Esta distinção feita por Lakatos, entre «matemáticas informais» e «matemáticas formalizadas», introduz a necessidade de se considerar as culturas que lhe estão respectivamente associadas: Sendo assim, um Laboratório de Matemática não se pode alhear da interacção cultural que nele inevitavelmente se gera; e se está inserido num sistema educativo que valoriza particularmente a formalização matemática, os desafios colocados pela necessidade da «demonstração» farão parte dessa interacção.
Este face-a-face de diferentes culturas matemáticas nas situações, laboratoriais ou não, em que se aprende e se ensina resulta, claramente, do modo como a Sociologia da Matemática se tem vindo a orientar. Para J. Stiegler e R. Baranes, ela “toma como premissa que os fundamentos da Matemática serão encontrados através da análise das práticas culturais nas quais as actividades matemáticas estão incorporadas [...].” Por isso, “a Matemática não é um domínio universal e formal do conhecimento esperando ser descoberto, mas um conjunto culturalmente construído de representações simbólicas e de procedimentos para manipular essas representações. Este reportório de símbolos e de procedimentos está incorporado em, e é guardado por, diversas instituições e actividades culturais, nas quais se incluem a escola, o trabalho, a televisão, os museus e, aos níveis mais avançados, a comunidade de matemáticos profissionais.
Este ponto de vista tem fortes implicações educacionais. Segundo Teresinha Nunes, é necessário “reconsiderarmos nossas explicações para o sucesso e o fracasso dos alunos em matemática”, pois os “alunos que parecem incapazes de compreender algo ao resolverem um problema usando um sistema simbólico podem, posteriormente, demonstrarem sua capacidade de raciocínio quando resolvem o mesmo tipo de problema com o apoio de outro sistema simbólico.” “[...] é importante notarmos que frequentemente existem em nossa cultura sistemas de representação distintos para o mesmo fim, como é o caso de sistemas de numeração oral e escrito com suas respectivas práticas aritméticas. Nesse caso, parece importante que estabeleçamos ligações entre os dois sistemas na sala de aula. Se essas conexões não forem estabelecidas, estaremos perdendo a oportunidade de utilizar em sala de aula conhecimentos desenvolvidos fora da escola.” Como consequência, o que se torna importante na «sala de aula» é igualmente importante num Laboratório de Matemática.
Este desafio encontra, no entanto, escolhos nos sistemas educativos. Tal como testemunhou Stieg Mellin-Olsen, ao fazer um balanço pessoal da sua participação na reforma conhecida como da Matemática Moderna, é preferível “tentar construir teorias da educação e da instrução matemática (ou da educação em geral) nas quais a cultura é um conceito básico, do que fazer novas tentativas para neutralizar as influências culturais na aprendizagem [como a Matemática Moderna fizera].” Pelo que, desabafou: “Até que ponto a matemática popular é reconhecida como um conhecimento importante é uma questão política e por conseguinte uma questão sobre o poder.

Os ambientes laboratoriais que haviam sido experimentados nas décadas de 1940, 1950 e 1960 em Portugal deixaram de estar em voga, talvez devido aos efeitos negativos (que nem todos terão desejado) da Reforma da Matemática Moderna. Mas no início da década de 1990, imediatamente após à Mesa Redonda referida acima, iniciou-se um novo surto de Laboratórios de Matemática, por inciativa de um grupo de professores do ensino básico dos concelhos de Almada e Seixal. Não sei se o Jaime Carvalho e Silva ficou ou não à espera de financiamento para a sua ideia de Centros de Recursos associados a universidades, mas na margem Sul do Tejo os professores não universitários foram buscá-lo e souberam utilizá-los [ver testemunhos «049» e «055» do blogue «Aprendizagens»].
Tomando como ponto de partindo a sua experiência profissional, estes professores consideraram, na versão do projecto através do qual se candidataram a um concurso promovido pelo Instituto de Inovação Educacional, que:
* O «processo de ensino-aprendizagem da Matemática sofre diversos bloqueamentos», atribuíveis, entre outras origens, “ao seu encerramento na escola, à rigidez do espaço-tempo a ele dedicado (a aula), e à dificuldade de aproveitamento das explorações espontâneas realizadas pelos alunos”;
* É possível “criar espaços exteriores às aulas, dentro da Escola, capazes de gerar interesse e iniciativa dos jovens em relação à Matemática”, os quais podem “favorecer o desenvolvimento de capacidades como a cooperação, o sentido de risco, a elaboração de projectos e estratégias e a definição de valores” e contribuir “para o melhoramento da Matemática feita na Escola”. Pelo que se propuseram “Criar e institucionalizar em cada Escola […] um espaço, a ser utilizado livremente pelos alunos, com condições para a realização de actividades e para a exploração de desafios de carácter matemático (em sentido amplo)”, e que permita “a interacção com as actividades curriculares” e “a dinamização e integração de iniciativas a nível das comunidades” em que as suas Escolas se inseriam.

Cerca de dois anos depois, em 1993, com as novas experiências entretanto obtidas, estes professores apresentaram a seguinte definição:
Na medida em que o Laboratório de Matemática também “é um Centro de Recursos”, “tem de possuir informação - com origem no exterior e nas actividades que desenvolve -, instrumentos de trabalho e matéria prima”, e, “como consequência da sua vocação para promover as explorações e as elaborações matemáticas, tem de possuir um Plano de Trabalho, isto é,
- objectivos sistematizados,
- dinâmicas de experimentação / elaboração,
- memória de pesquisas,
- avaliação regular e
- organização a longo prazo”.


Em 1994, a Associação de Professores de Matemática reconheceu a importância da constituição de Laboratórios de Matemática.
E em 1997 o próprio Ministério da Educação, num documento com indicações sobre os novos programas para o ensino da Matemática, a nível do Secundário, afirmou claramente: “Deve tender-se para a constituição nas Escolas Secundárias de Laboratórios de Matemática que integrem [os] recursos [pedagógicos] e outros que se venham a revelar necessários.” Esta tomada de posição, situada no plano das tendências a prazo foi depois reforçada por uma disposição legal conjunta das Direcções-Regionais de Educação, destinada a vigorar em 1997-98: o Projecto de Desdobramento em Turnos das Turmas do Ensino Secundário, estabeleceu para a Matemática o mesmo princípio de gestão que vigorava na utilização de laboratórios por outras disciplinas.

Se institucionalização da ideia de Laboratório de Matemática seria sempre um passo necessário à sua sobrevivência, e ainda mais à sua expansão, este seu início de institucionalização veio provocar o primeiro choque entre a realidade em construção e a riqueza de potencialidades evidenciada ao longo da sua demorada gestação: deveria este espaço ser destinado somente a um nível de ensino, o do Secundário? e deveria ser destinado apenas às actividades lectivas?

Ainda em 1997, a Rita Vieira e eu, dois dos professores que haviam tomado a iniciativa de ressuscitar os Laboratórios de Matemática, escrevemos: sendo evidente a actual aceleração do “movimento de renovação dos espaços de aprendizagem da Matemática”, será nas suas “profundas implicações sobre os currículos e a Escola que é necessário encontrar o desafio com que todos os actores educativos se defrontam. E em particular, no modo de articular, na aprendizagem, a Matemática formalizada, a Matemática produzida na própria Escola e a que é praticada pelas comunidades de onde os alunos provêm.



Fontes:
Actas «ProfMAT 92»: intervenção de Nunes (1994; pp. 32 e 33)
Actas «PrfMAT 93»: intervenção de Esteves, Nascimento e Vieira (1993; p. 164)
Blogue «Aprendizagens»: testemunhos «049» e «055» (2023 e 2024)
Boletim «APM Informação», nº 21 (1994): artigo da Direcção da APM
Circulares de: Ministério da Educação (1997; p. 10); Direcções-Gerais da Educação (135/97, de 8/7)
Livros de: Ambrósio (1986; p. 105); Davis & Hersh (1989; pp. 240-241, 251-252 e 254); Mellin-Olsen (1987; pp. 11 e 15); Matos (1989; pp. 27, 28, 35, 37 e 84); e Silva (1977; p. 89)
Revista «Educação e Ensino» (1997): artigo de Esteves e Vieira (p. 29)
Revista «Educação e Matemática», nº 33 (1995): artigo da Direcção da APM
Revista «Noesis», nº 21 (1991): Mesa Redonda

Revista «Review of Research in Education», vol. 15: artigo de Stiegler e Baranes (1988; p. 258)

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