Os regressos às aulas são os mais importantes momentos para se
pensar o futuro da Educação.
Vem pois a propósito a seguinte reflexão de António Nóvoa:
E agora, Escola?
Um novo ambiente educativo
Há muito tempo que a
educação escolar revela sinais de fragilidade. Por vezes, ouve-se mesmo dizer
que “as escolas do século XIX não servem para educar as crianças do século
XXI”. Como reinventar o modelo escolar, tal como o conhecemos nos últimos 150 anos?
Correndo o risco de uma simplificação excessiva,
recordo uma série de palestras que fiz no Brasil, há cerca de dez anos, nas
quais recorri às metáforas do quadro-negro e do celular[= telemóvel] para comparar dois ambientes
de aprendizagem.
O quadro-negro é um objeto vazio (precisa de
ser escrito), fixo (não se pode mover) e vertical (destina-se a uma comunicação
unidirecional). O celular é um objeto cheio (contém as enciclopédias do
mundo), móvel (desloca-se conosco) e horizontal (facilita uma comunicação
multidirecional).
Quer isto dizer que o quadro-negro é inútil? Não.
Nada substitui uma boa lição. Quer isto dizer que, a partir de agora, tudo será
digital? Não. Nada substitui um bom professor.
Precisamos de construir ambientes educativos
favoráveis a uma diversidade de situações e de dinâmicas de aprendizagem, ao
estudo, à cooperação, ao conhecimento, à comunicação e à criação. Nesse
sentido, a metáfora do celular é mais inspiradora do que a metáfora do quadro-negro.
Reações à pandemia
Em educação, a covid-19 não trouxe nenhum problema
novo. Mas revelou as fragilidades dos sistemas de ensino e do modelo escolar. O
que era assunto de debate entre especialistas passou a interessar toda a gente,
sobretudo as famílias confinadas com os seus filhos que, de repente, se
transformaram também em seus “alunos”.
Como têm sido as reações à pandemia?
Os governos têm sido imprudentes e até insensatos.
Devemos reconhecer o esforço para manter uma certa “continuidade educativa”,
com resultados aceitáveis para as classes médias, mas desfavoráveis para as
classes populares. Todos referem que o recurso ao digital provoca ainda mais
desigualdades, mas pouco, ou nada, tem sido feito para ultrapassar esta
situação.
Muitas instituições, e também universidades, sobretudo públicas, ficaram
bloqueadas numa discussão inútil sobre o uso ou desuso do digital e do “ensino
remoto”. Outras, sobretudo privadas, transformaram o digital no novo Deus da
educação. São dois disparates, do mesmo tamanho, ainda que de sinais
contrários.
O melhor foram as reações de muitos professores que, em condições dificílimas,
conseguiram inventar respostas úteis e pedagogicamente consistentes, através de
dinâmicas de colaboração dentro e fora das escolas. A Unesco identificou e
divulgou essas experiências, que constituem uma base importante para repensar o
ensino e o trabalho docente.
E agora?
Alguns, advogam um “regresso à normalidade”, opção impossível e indesejável.
Libertaram-se energias que não conseguimos colocar de novo dentro da caixa. E,
de todas as formas, não seria desejável voltar a rotinas desinteressantes.
Outros, aproveitam a oportunidade para explicar que “tudo vai mudar”,
rapidamente, com a desintegração das escolas e a transição para o digital. Na
verdade, esta solução já era defendida, pelo menos desde a viragem do século,
em discursos de “personalização” das aprendizagens, cientificamente legitimados
pelas neurociências e com recurso à inteligência artificial.
Não me revejo nessas opções. Defender o imobilismo da “normalidade” é o pior
serviço que podemos prestar à educação pública. Sustentar o confinamento, para
sempre, da educação em espaços domésticos ou familiares seria abdicar de uma
das mais importantes missões da escola: aprender a viver com os outros.
Acreditar que nada vai mudar ou que tudo vai mudar rapidamente são duas ilusões
igualmente absurdas. Em educação, as mudanças são sempre longas, fruto do
trabalho de várias gerações.
O recurso ao digital não é inocente, pois este “meio” influencia o acesso e a
organização do conhecimento. Para além disso, o seu uso público é condicionado
por ser controlado pelas grandes empresas privadas. Torna-se urgente assegurar
o acesso de todos ao digital e valorizar o software
livre, universal e gratuito. Mas a questão essencial nunca é sobre os
instrumentos, é sempre sobre o sentido da mudança.
O sentido da mudança
Duas perguntas principais marcam o ritmo das interrogações pedagógicas do nosso
tempo: como construir um ambiente educativo estimulante? Como entrelaçar o
trabalho educativo dentro e fora das escolas?
À primeira pergunta responde-se com a metáfora da biblioteca. O novo
ambiente escolar será parecido com uma grande biblioteca, na qual os alunos
podem estudar, sozinhos ou em grupo, podem aceder e construir o conhecimento
com o apoio dos seus professores, podem realizar projetos de trabalho e de
pesquisa… A pandemia mostrou que não se aprende apenas através de aulas.
À segunda pergunta responde-se com a metáfora da cidade. Há 50 anos, uma
geração notável de educadores construiu duas utopias: a educação faz-se em
todos os tempos e em todos os espaços. A primeira, deu lugar à educação
permanente, à educação ao longo da vida, que se tornou o mantra dos discursos e
das políticas. A segunda, ficou largamente por cumprir, até que a pandemia
mostrou que não se aprende apenas dentro das escolas. A educação faz-se em
todos os espaços, na cidade.
Nas mãos de professores e alunos, com sensibilidade e tato pedagógico, o
digital pode ser um instrumento importante para apoiar as mudanças necessárias
na educação e no ensino.
E as universidades?
Quando era reitor da Universidade de Lisboa perguntaram-me onde estava o futuro
das universidades. Respondi: na educação básica, no reforço de uma educação
pública de qualidade para todos. Sem isso, dificilmente teremos boas
universidades.
Mas é preciso fazer também a pergunta inversa: onde está o futuro da educação
básica? A minha resposta é simples: está, em grande parte, nas universidades,
porque são elas que formam os professores, porque são elas que têm a “massa
crítica” necessária para reforçar a educação como bem público e bem
comum.
Os problemas educativos, agora expostos com nitidez pela pandemia, não são
novos. Estamos, sim, a assistir a uma aceleração da história. Os próximos
tempos vão ser marcados por mudanças profundas. Hoje, mais do que nunca,
precisamos de universidades com grande autonomia e liberdade, com espírito
crítico, comprometidas com a inovação pedagógica e o reforço do espaço público
da educação. É por aqui que passa grande parte do futuro das sociedades do
século XXI.
Fonte (texto
e fotografia): https://jornal.usp.br/?p=347369,
no portal da Universidade de São Paulo
(aí publicado em 19 de Agosto de 2020)