segunda-feira, 14 de setembro de 2020

[0238] As palavras que dizemos (II): «sustentabilidade»

Na mensagem «0223» lembrei como Sérgio Godinho, numa das suas mais conhecidas composições, escrita pouco depois do 25 de Abril, insistiu para que usássemos a palavra liberdade apenas se lhe associássemos acções tão imprescindíveis, então como agora, como a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação

 

Por razões muito diferentes vale a pena pensar na palavra sustentabilidade, usada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como agregadora dos dezassete Objectivos que nos desafiou a ajudar a cumprir até ao ano de 2030 (ver mensagem «0080»):


Um exemplo de que há algo pouco convincente nesta palavra foi recentemente dado pelo sociólogo António Barreto. Escreveu ele, num comentário em que criticou a política seguida em relação ao interior do país, origem para o encerramento de tantos serviços: 

E pior do que tudo é a concepção de que as instituições têm de ser rentáveis. Uma escola? Um correio? Um centro de saúde? Um lar de idosos? Deve ser a isso que chamam «sustentabilidade».

 

Para percebermos a origem desta palavra é preciso recuarmos quase 50 anos, até à Conferência de Estocolmo, reunida em 1972, sob a égide da ONU, com a participação dos chefes de estado de 113 países e dos representantes de mais de 400 instituições governamentais e não-governamentais. Foram aí abordados, pela primeira vez em público, os problemas ambientais. E o conceito adoptado no final dos trabalhos foi o de ecodesenvolvimento. O destaque conceptual tinha sido colocado na ecologia.

No entanto, segundo Serge Latouche, devido “à pressão do lobby industrial americano e graças à intervenção pessoal de Henry Kissinger”, este conceito foi sendo abandonado e substituído, nofim dessa década, pelo de desenvolvimento sustentável. A ecologia deixara de ser o centro conceptual; e os negócios poderiam prosseguir, desde que fossem sustentáveis. Contrariamente à ecologia, a sustentabilidade era mais facilmente interpretada à luz da livre concorrência.

 

Ha-Joon Chang, um economista sul-coreano, mostrou uma das perversidades a que o conceito de sustentabilidade facilmente conduz. Ao argumentar contra a pressão feita pelos neoliberais para que o desenvolvimento de cada país seja feito em concorrência perfeita com todos os outros (isto é, nada de apoios externos, nada de proteccionismo interno), comparou-a, ironizando, com o modo como tratava do seu próprio filho:

Ele é sustentado por mim (…). Forneço-lhe alojamento, alimentação, educação e cuidados de saúde. Porém, milhões de crianças da sua idade já têm emprego. (…). Actualmente ele vive numa redoma económica sem noção do valor do dinheiro. Não tem a mínima noção dos esforços que a sua mãe e eu fazemos por ele, subsidiando a sua existência ociosa e afastando-o da dura realidade. Ele está superprotegido e precisa de ser exposto à concorrência, de modo a tornar-se uma pessoa mais produtiva. (…). Deveria tirá-lo da escola e arranjar-lhe emprego. (…). Já oiço o leitor a pensar que devo estar louco. Que sou míope. Cruel. Que o que tenho de fazer é proteger e criar a criança.

Pretender que cada pessoa, cada cidade, cada escola, cada associação, cada serviço, cada região, cada país, e assim por diante, seja sustentável, é dividir o mundo em fatias de tamanhos e capacidades diversas e afirmar que cada uma delas deve sobreviver sozinha, como se não existissem interrelações entre todas essas partes, que tanto provocam desigualdades como geram solidariedades.


O jornalista Guillaume Pitron, citado por Sébastien Broca, deu outro exemplo das perversidades a que a fé simplista na sustentabilidade conduz:

Os chineses e os ocidentais repartiram pura e simplesmente as tarefas da futura transição energética e digital: os primeiros sujarão as mãos para produzirem os componentes da green tech, enquanto que os segundos, comprando-os, poderão gabar-se de boas práticas ecológicas”.

Ou seja, nós, europeus, exultaremos com a sustentabilidade ecológica que atingimos, e culparemos os chineses por não serem capazes de fazer o mesmo …


Fontes: artigos jornalísticos de Barreto (2019) e de Broca (2020); livros de Latouche (2011; p. 23) e de Chang (2013; p. 83); e a Wikipédia, para a Conferência de Estocolmo

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