domingo, 26 de julho de 2020

[0232] A Prancheta: um instrumento de medição a usar na Matemática escolar (IV)

A descrição sobre como os dois primeiros instrumentos de medição que descrevi (nas mensagens «0228» e «0229») foram e são utilizados mostra que eles efectuam uma única observação (num caso, da árvore; no outro, da sombra da Grande Pirâmide) e que precisam de duas medidas auxiliares, sendo que uma delas exige a deslocação até ao objecto observado.

Existem outros instrumentos que permitem determinar a distância a que se está de um objecto inacessível, ou a distância entre dois objectos inacessíveis, desde que sejam feitas duas observações e algumas medições apenas nas proximidades do próprio instrumento.

 

A Prancheta é um desses instrumentos.

Supondo que, numa planície, se pretende determinar a distância entre duas árvores (A e B) e que elas estão inacessíveis aos observadores (a turma e o professor), devido à presença de um pequeno rio:



Os observadores estabelecem, do seu lado do rio, duas estações de observação (E1 e E2) e medem a distância entre elas.

Depois:

·      Colocam a prancheta (um rectângulo de madeira, coberto com papel de desenho, bem fixo) sobre E1, fazendo corresponder o ponto desta estação com um ponto que a representa no papel;

·      Definem uma escala e marcam no desenho o ponto correspondente a E2, adequadamente distante, de acordo com a escala, de E1;

·      Com a prancheta bem horizontal, e ainda em E1, traçam no desenho as linhas segundo as quais observam A e B;

·      Deslocam a prancheta para E2, tendo o cuidado de fazer coincidir este ponto com o do desenho e de manter as linhas que unem as duas estações (na realidade e no desenho) sobrepostas;

·      De novo com a prancheta bem horizontal, traçam no desenho as linhas segundo as quais observam A e B.

O desenho resultante é o seguinte (cada estação está simbolizada por algo parecido com um transferidor, como se objectivo fosse a medição de ângulos; A e B ficam situados onde se cruzam as linhas segundo as quais foram observados a partir de E1 e E2):



O troço entre E1 e E2 é uma base (ver mensagem «0225»), sendo a partir do seu comprimento que se determina a distância entre A e B, pois as figuras do DESENHO e as da REALIDADE são semelhantes:



Conheci este instrumento através da descrição feita por Franklin Guerra de um problema surgido num livro antigo, significativamente intitulado «O Engenheiro Português», onde é explicado como pode ser determinada, por intermédio da «Prancheta», a distância entre dois pontos inacessíveis. É dado o exemplo da Torre de Belém e da torre Velha de Lisboa, cuja distância se pretende conhecer a partir de Almada: colocando a prancheta sucessivamente em duas estações situadas nas falésias de onde se vê Lisboa a partir de Almada, visando de cada uma delas um ponto saliente das duas torres e conhecendo a distância entre as duas estações, a construção geométrica sobre a prancheta dá em escala reduzida a distância procurada.

 

Tenho, no entanto, de fazer uma advertência sobre este tipo de «medição», destinada, sobretudo, a professores: no seu planeamento é preciso cuidar do equilíbrio entre (1) o comprimento da «base», (2) a distância estimada entre os «objectos» e (3) a distância entre a «base» e os «objectos» - é que todos estes elementos têm de caber no desenho!

 

Fonte: livro de Guerra (1995; pp. 137-138)


quinta-feira, 23 de julho de 2020

[0231] Comentários sobre os «instrumentos de medição para usar nas escolas» (III)

O escritor francês Jules Verne (1828 – 1905), no célebre conto A Ilha Misteriosa, publicado em 1874-75, descreveu como um grupo de náufragos, dispondo de escassos recursos, calculou aproximadamente a altura de uma falésia. O desenhador italiano Franco Caprioli (1912 - 1974) fixou assim esse episódio:



É muito plausível que este método tenha sido inspirado no modo como Tales de Mileto (626 - 545 a.C.) calculou, no tempo dos Faraós, a altura da Grande Pirâmide do Egipto (ver mensagem «0229»), embora Tales tenha utilizado a sombra de uma vara (o Gnómon) enquanto este engenheiro utilizou a vista para alinhar o topo da falésia com o topo da vara, de modo a determinar o ponto onde colocaria a estaca.

A escolha de Tales foi mais elegante. E também mais rigorosa (o engenheiro terá tido dificuldades para colocar os olhos ao nível da areia).


A simplicidade deste método tem-lhe proporcionado uma longa vida: segundo o cientista norte-americano Carl Sagan (1934 - 1996), foi com base nele que a altura das montanhas da Lua foi determinada; e, nas escolas, os professores que acreditam que ensinar e aprender não se deve limitar às salas de aula (em particular tratando-se da Matemática) recorrem a este e a outros métodos simples (ver a mensagem «0228») para o conseguir.


Os dois métodos já abordados neste blogue baseiam-se na semelhança de triângulos, tal como o engenheiro imaginado por Jules Verne nos explica acima. Mas, seja qual for o método, raramente se aplica sem revelar alguma dificuldade. E as dificuldades são um dos aspectos mais importantes a trabalhar na educação.

No caso do Triângulo do Lenhador, foi necessário acrescentar a altura do observador:



E no caso da Grande Pirâmide, foi necessário medir o comprimento da sombra até ao início da sua base, acrescentando-lhe metade do comprimento do seu lado:



Partiu-se do princípio de que, em ambos os casos, o chão sobre que se trabalha é plano.

E se não fosse?


Fontes: Wikipédia (para as datas); banda desenhada de Caprioli (1983; p. 27); livro de Sagan (1984; p. 205)

domingo, 12 de julho de 2020

[0230] Jogos para os quais há material em casa (IV)



Este jogo foi inventado por um grupo de crianças, num clube de Matemática. Elas foram desafiadas a criar um novo jogo, baseado no Jogo do Galo. Elas assim fizeram, inspirando-se também no Jogo do Xadrez.

Trata-se de um jogo para dois jogadores, sendo apenas necessário desenhar um tabuleiro quadriculado com 5 x 5 casas.

 O primeiro jogador escolhe uma casa do tabuleiro, desenhando nela a sua marca, por exemplo um O (para poder registar o jogo ela é simbolizada na figura por O1, ou seja, a primeira jogada, realizada por O).

De seguida o segundo jogador escolhe uma casa livre, desenhando nela a sua marca, por exemplo um X (representado, na figura, por X2, isto é, a segunda jogada, realizada por X), situada a um salto de cavalo (tal como se faz no Xadrez) em relação à anterior.

E assim sucessivamente, até não ser possível dar um novo salto.

Na figura seguinte estão representados os 6 primeiros movimentos dos dois jogadores:



O objectivo de qualquer dos jogadores é realizar o máximo de alinhamentos com as suas marcas (ou cavalos), quer na vertical, quer na horizontal, quer na diagonal.

A pontuação atribuída baseia-se em quatro regras (os alinhamentos só são considerados se as marcas estiverem colocadas sem intervalos entre elas):

·      alinhamento de três cavalos, 1 ponto;

·      alinhamento de quatro cavalos, 2 pontos;

·      alinhamento de cinco cavalos, 3 pontos;

·      última jogada, 1 ponto.

No exemplo figurado, o jogador das marcas O já conseguiu dois alinhamentos de três cavalos (as marcas O7, O9 e O11 não constituem um alinhamento, pois têm um intervalo entre as duas primeiras) e o das marcas X conseguiu um alinhamento de três cavalos. Mas, para que o jogo termine, ainda há muitos lances pela frente …


As regras deste jogo (e um tabuleiro para imprimir, sobre o qual se pode jogar com marcas materiais, como moedas ou peões), está acessível através da página «Documentos» deste blogue (clicar em «Jogos de Reflexão»).

Fonte: Bolt (1991; pp. 61-63)


domingo, 5 de julho de 2020

[0229] O Gnómon: um instrumento de medição para usar nas escolas (II)

O Gnómon é um estilete (ou, matematicamente, é um segmento de recta) que é usado, desde há muito tempo, nos Relógios de Sol. Na imagem seguinte, em que se vê um complexo Relógio de Sol Equatorial, o gnómon é o fio metálico que une os polos da esfera:


Junto ao rio Meno (em Frankfurt, Alemanha)

Tales de Mileto usou um gnómon como instrumento de apoio a uma célebre medida que lhe tem sido atribuída.

Tales (626 - 545 a.C.) viveu em Mileto, uma cidade da Jónia (região debruçada sobre o Mediterrâneo, actualmente parte da Turquia), tendo visitado a Babilónia e o Egipto, os mais importantes centros intelectuais da sua época nas proximidades. A Matemática que aí se fazia estava ainda orientada para responder a questões do tipo como fazer? Considera-se que Tales terá sido o primeiro a introduzir na matemática um outro tipo de questões: porquê? Deu, deste modo, um dos contributos para que a Grécia iniciasse a ascensão a novo centro intelectual do Ocidente.

Conta-se que Tales, ao visitar o Egipto, calculou a altura da Grande Pirâmide. Para tal, terá conjugado a sombra da pirâmide e a sombra de um gnómon. Quando este extraordinário cálculo foi feito, esta pirâmide já ali estava há cerca de 2000 anos, e ainda  muito bem conservada, apresentando um revestimento em calcário branco, polido, que reflectia fortemente a luz do Sol.


Da esquerda para a direita:
a pirâmide de Miquerinos, a de Quéfren e a Grande Pirâmide, ou de Queops

A história (ou a lenda) não nos descreve os pormenores do método que Tales seguiu. Mas é admissível que o gnómon (à esquerda na figura, com cor verde) tenha sido colocado verticalmente de tal modo que a sua sombra coincidisse perfeitamente com a sombra do topo da pirâmide:



Podia-se abstrair desta situação o seguinte esquema (ou modelo), em que está indicada a altura da pirâmide (P), a altura do gnómon (g) e os catetos horizontais dos dois triângulos rectângulos (S e s):



Dado que os dois triângulos são semelhantes (os lados correspondentes são paralelos), a proporção entre eles é igual (P / S = g / s), donde se tira que:

 

P = (S g) / s

 

Fontes: Pappas (1989; p. 36); Struik (1989; p. 73); Wikipédia (sobre a Grande Pirâmide)

Notas: há grandes discrepâncias nas datas vitais que têm sido conjecturadas para Tales de Mileto (segui as sugeridas por Struik); a altura original da Grande Pirâmide andaria pelos 147 metros; hoje só tem cerca de 139 metros, devido à perda do revestimento original (sobretudo após a ocorrência de um violento terramoto e do uso das pedras caídas para a reconstrução das casas próximas)

Fotografias: Pedro Esteves (8 de Abril de 2008), para o relógio de Sol; Eduard Spelterini (21 de Novembro de 1904, tirada de um balão), para as pirâmides (mostrado acima apenas um detalhe)

Desenhos: Pedro Esteves