segunda-feira, 28 de outubro de 2019

[0196] Uma estratégia flexível para a Educação para a Cidadania


Especialmente nas duas últimas décadas tem sido proposto que a Educação para a Cidadania desempenhe um papel central nas nossas escolas. Para o concretizar, no entanto, tanto se tem exagerado por excesso (criando-lhe referenciais muito detalhados), como por defeito (deixando cada professor entregue a si próprio).
Se, por exemplo, adoptarmos como referência, de forma muito aberta, os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável que as Nações Unidas propuseram aos governos e aos cidadãos do mundo cumprir entre 2015 e 2030, a Educação para a Cidadania corresponderia a pensarmos como responsáveis globais, a valorizarmos o esforço que as grandes organizações internacionais têm feito para nos chamarem a atenção para isso e, porque somos nós que estamos em contacto directo com os problemas, a dispormos do nosso direito à interpretação crítica daqueles objectivos.

Neste blogue, os dezassete Objectivos do Desenvolvimento Sustentável foram até agora genericamente apresentados na mensagem «0080», tendo os primeiros sido referidos nas mensagens «0154» (erradicar a pobreza), «0157» (erradicar a fome), «0169» (saúde de qualidade), «0176» (educação de qualidade) e «0178» (igualdade de género).
Uma estratégia de abordagem é a da recorrência: abordar cada um, ou mais do que um, mais aprofundadamente ou mais ligeiramente, conforme as oportunidades que se aproveitam ou se criam.

Tendo o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza Extrema ocorrido há dias, em 17 de Outubro, é altura de dar uma nova vista de olhos pelo primeiro dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável, erradicar a pobreza. Esta data começou a ser comemorada em 1992 e este objectivo foi depois escolhido como um dos oito Objectivos do Milénio, que as Nações Unidas definiram para serem implementados entre 2000 e 2015 (portanto imediatamente antes dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável).

Em Portugal, segundo os dados da Rede Europeia Anti-Pobreza, 18 % dos portugueses são pobres, uma condição que se aplica a quem, na Europa, tenha um vencimento mensal inferior a 406 euros.
No mundo, 43 % da população vivia em pobreza extrema em 1990, com menos de 1,25 dólares por dia. Entretanto esta percentagem diminuiu para 21%, mas há ainda muito trabalho pela frente, especialmente no continente africano.

Também há dias, o Prémio Nobel da Economia referente a 2019foi atribuído a Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer, pelos seus contributos para as políticas que visam reduzir a pobreza:

Da esquerda para a direita: Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer

Entre as fortes razões para a atribuição deste prémio, foram salientados os casos das mais de 700 milhões de pessoas que ainda vivem com rendas extremamente baixas, das perto de cinco milhões de crianças menores de cinco anos que morrem anualmente devido a doenças que poderiam ser prevenidas ou curadas com tratamentos não dispendiosos e das cerca de uma em cada duas crianças que abandonam todos os anos a escola apenas com capacidades básicas de leitura e aritmética.

Fontes: sítios do Calendarr Portugal e do El Pais Brasil

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

[0195] Uma ave invulgar: o Charneco


Estes Charnecos foram fotografados há poucos dias quando se mostravam muito interessados na comida que se compra nos supermercados para dar aos Gatos:

Fotografia de Adelaide Silva

Estes bonitos pássaros fazem parte da família dos Corvídeos, onde estão incluídas as Pegas, as Gralhas, e também os Corvos, os Gaios e os Quebra-Nozes. São aves de dimensão média ou grande, com patas e bicos fortes, sempre atentas, muito sociais e que aprendem depressa. Sendo omnívoras, não admira que procurem experimentar as novidades alimentares que estejam ao seu alcance … (deixando, como testemunhou a fotógrafa deste grupo de Charnecos, alguns membros do grupo a vigiar).

O Charneco (cujo nome científico é Cyanopica cyanus) tem cerca de 31 a 35 centímetros de comprimento, incluindo a cauda, sendo bastante parecido com a Pega (Pica pica), que é um pouco maior e quase exclusivamente preta e branca.

Na Europa, os Charnecos são residentes exclusivos da Península Ibérica:


Os Charnecos fazem os seus ninhos nas copas das árvores. E fora da época da reprodução deslocam-se alegremente em grupo.

Fonte: livro de Svensson & outros (2014; pp. 360-361)

terça-feira, 15 de outubro de 2019

[0194] A corrida dos 10 mil metros e os limites do nosso corpo


A queniana Brigid Kosgei obteve antes-de-ontem, em Chicago, uma nova melhor marca mundial feminina na Maratona: 2 horas, 14 minutos e 4 segundos.
A melhor marca masculina é de Eliud Kipchogue, também queniano, e foi obtida em 2018, em Berlim: 2 horas 1 minuto e 39 segundos.
Há mais de 12 minutos de diferença entre estas duas marcas mas, há quase um século, quando estes registos começaram a ser feitos e reconhecidos, a diferença era bem maior.

A Maratona corre-se pelas ruas e estradas, ao longo de 42, 195 quilómetros, condições que se inspiram numa lenda da Grécia Antiga: o soldado Fidipídes terá corrido aproximadamente esta distância, entre o campo de batalha de Maratona e Atenas, para anunciar aos seus compatriotas que os atenienses tinham vencido os persas, morrendo de seguida, exausto.

A Maratona para Homens foi incluída em todos os Jogos Olímpicos modernos (a sua primeira edição foi realizada na Grécia, em 1896), tendo a sua extensão variado ligeiramente até ser fixada em 1924 (nos Jogos Olímpicos de Paris). Mas as Senhoras só começaram a disputar esta prova nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, embora já corressem esta distância fora das Olimpíadas desde há décadas.

As mais antigas melhores marcas mundiais reconhecidas pela International Association of Athletics Federation (IAAF) são a do norte-americano Johnny Haynes, em 1908 (2 horas 55 minutos e 18 segundos), e a da britânica Violet Pierc, em 1926 (3 horas 49 minutos e 22 segundos). Até hoje, já se verificaram 41 registos de melhores marcas para os Homens e 34 para as Senhoras. E evolução desses registos é visível nos seguintes gráficos (faltando registar no segundo a marca conseguida antes-de-ontem por Brigid Kosgei):

HOMENS

MULHERES

Há uma grande diversidade de questões que podem ser colocadas a estas informações, as quais podem ser a base para o desenvolvimento de projectos interdisciplinares com alunos:

Como se explicam os constantes progressos da «melhor marca» de cada prova?
Em particular, quais são os aspectos fisiológicos e sociológicos dessa evolução?
Haverá uma «melhor-marca-limite» para cada prova?
Como nasceram e se desenvolveram historicamente as diferentes competições desportivas individuais?
Que ferramentas matemáticas se pode usar para descrever e modelar (e também para prever) a evolução de cada «melhor marca»?

Outras mensagens que abordaram este tema: «0068» (corrida dos 100 metros, masculina) e «0102» (natação dos 100 metros, masculina)

Fontes: livro de Guillén (1987; p. 37) e sítio da Wikipédia (versão em inglês)

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

[0193] Uma mesa na cidade


O actor e dramaturgo Ivam Cabral explicou assim o modo como lhe surgiu a ideia de que é possível intervir nas cidades:

A minha relação com o espaço urbano veio da minha relação com Lisboa, onde vivia. Quando procurámos um espaço para trabalhar encontrámos o Teatro Ibérico, que ficava no sítio onde depois se construiu a Expo 98. Em 1993 era um lugar muito distante, muito escuro, onde não havia comércio nem luz à noite. O nosso trabalho era acender a luz que ficava à frente do teatro. Por causa disso, quem estava perto ou passava interessava-se por aquilo que estava a acontecer. Era como se ao acender aquelas luzes chamássemos as pessoas. A partir daí, o acender a luz de algum lugar passou a ser um gesto político.

Depois, explicou como usou essa ideia para intervir na Praça Roosevelt, um dos lugares mais perigosos de São Paulo, com muitos problemas com furto, alguns assassinatos, uma presença muito forte do tráfico:

Quando procurámos um lugar para nos instalarmos, queríamos mesmo um espaço escuro e problemático. Queríamos executar essa ideia que trazíamos de Lisboa de que a grande revolução é uma mesa na rua. Foi o que aconteceu. Colocámos uma mesa em frente ao nosso espaço e enquanto estávamos ali sentados nenhum problema acontecia naquele lugar. Quando tomamos a cidade para nós, afastamos a criminalidade. Porque ela acontece, em geral, no escuro. Quando jogamos uma luz sobre a cidade estamos a chamar as pessoas para a conversa. E nós começamos a chamar os traficantes, as pessoas que estavam por ali ...

Num primeiro momento tinham muito medo. Depois, quando percebiam que era um lugar seguro, um lugar iluminado, ficaram. Ao trazer cidadãos que estavam a traficar, em geral menores de idade, para dentro de portas começámos a dar-lhes um nome, um mote para a vida. Passavam a ser alguém. Muitos foram trabalhar connosco, na técnica, operando som e luz, na limpeza do espaço. Havia muitos travestis e prostitutas e chamamos vários para conversar e trabalhar. Alguns tornaram-se importantes na equipa.
Um deles foi o Emerson Fernandes. Tinha 17 anos. Um dia chamámo-lo para fazer um pequeno serviço no nosso teatro, criámos uma ponte. Ele acabou por sair das ruas e hoje é funcionário da Escola de Teatro, casado, pai de dois filhos. Transformou-se num dos técnicos mais importantes do teatro de São Paulo. A grande mudança deu-se através do encontro com o teatro. Hoje ele tem uma vida que os irmãos dele, que não encontraram a arte, não têm.

Esse trabalho começou a ser conhecido e um dia o presidente da câmara de São Paulo, José Serra, veio visitar Os Satyros, a nossa companhia de teatro. Pediu para pensarmos numa escola profissional e técnica de teatro. Surgiu dessa encomenda do poder público. O projecto pedagógico da escola construiu-se do encontro de vários artistas. Não tínhamos, no início, nenhum pedagogo. Mas tínhamos uma frase: «Em que escola gostaria de ter estudado?» Fomos respondendo a essas perguntas e criando um sistema pedagógico que quebra com o ensino formal. Trabalhamos com a experiência. Ensinamos aprendendo e aprendemos ensinando.



E explicou porque distingue, nestas intervenções, a «inclusão» da «acessibilidade»:

Eu sou filho de uma costureira e de um pedreiro analfabeto que tiveram seis filhos. Éramos muito pobres, vivíamos no interior do país. Mas tudo o que o Ivam não precisava enquanto criança e adolescente era ser incluído. Precisava de acesso a bons livros, a boas escolas, a cultura. Há uma diferença muito grande entre inclusão e acessibilidade. A inclusão contrapõe-se à exclusão. E isso é terrível. Quando se inclui alguém, em geral, apenas se inclui. A acessibilidade dá acesso ao ir e vir.
A acessibilidade está numa linha horizontal. Eu dou a possibilidade de alguém conhecer a minha cultura e o que penso, mas quero também conhecer o que ele pensa. Um português que emigrou para Paris nos anos 1970 teve de ser incluído, porque o parisiense não queria saber da cultura dele. Não havia troca. Raramente assimilamos a cultura de alguém que tentamos incluir.

Fonte: Cabral, entrevistado por Pinto (2019)