Têm sido
propostas e ensaiadas muitas formas de contrariar a dispersão introduzida pelas
«disciplinas» nos currículos escolares. Na minha primeira mensagem deste blogue
referi-me a uma delas, particularmente fascinante, a do Earth Science Curriculum Project,
elaborado e experimentado em meados da década de 1960.
Conforme se resume no prefácio do livro através do qual este projecto (norte-americano)
foi divulgado no Brasil, a sua elaboração começou por duas consultas: a
cientistas, que listaram os “princípios básicos dos
vários ramos da ciência” necessários para que o currículo permitisse
compor uma história integrada do planeta Terra; e a professores, que, depois de
ouvirem os seus alunos, descreveram “como poderiam
os jovens investigar e obter melhores resultados na aprendizagem.”
Com estas informações, seguiu-se a elaboração de um esboço de livro para
aprendizagem das ciências, focado na história da Terra, por um grupo de
professores e que depois um outro grupo, constituído por 40 cientistas e
professores, reunidos em Boulder (Colorado), reviu e transformou na primeira
versão pronta a ser testada.
No ano lectivo seguinte, 77 professores de diferentes escolas dos Estados
Unidos experimentaram essa versão com os seus 7500 alunos, tendo uns e outros
enviado comentários semanais para a equipa central. E foi com base nestes
comentários que, no Verão, e de novo em Boulder, outro grupo elaborou a segunda
versão do livro.
Mas esta ainda não seria a versão definitiva. Destinava-se a ser experimentada no novo ano lectivo, por mais uns tantos milhares de alunos, e a gerar mais uma vaga de comentários que, na Primavera e no Verão desse ano, apoiaram a elaboração da terceira e última versão do livro (que é a que conheço, com as inevitáveis adaptações destinadas a ser utilizada no Brasil):
Pode
dizer-se que se tratou de um projecto para «indisciplinar o currículo», evitando
sujeitar os alunos, precocemente, às subdivisões nas «disciplinas» de
Astronomia, de Biologia, de Ecologia, de Física, de Geografia, de Geologia, de Meteorologia,
de Paleontologia, de Química e, até, pelo apoio que que lhes dá, de Matemática.
E também se deve acrescentar que, processualmente, foi um projecto
particularmente participado, pois juntou, desde o início, os contributos de
cientistas, de professores e de alunos, contrastando fortemente com os processos
de «reforma currícular» que temos conhecido.
Sessenta anos depois de o Earth Science Curriculum Project ter sido realizado,
e quarenta e cinco anos depois de o ter conhecido, pergunto: até que ponto este projecto indisciplinou o
currículo?
Um primeiro aspecto a salientar é ele não ter incluido as Humanidades (ou seja:
as Línguas, as Artes, etc.), ou só muito pontualmente as ter mobilizado. Um seu
possível descendente, os agora em voga currículos STEM (Sciences, Technology,
Engineering and Mathematics) continuam a possuir a mesma limitação.
Depois, não é claro (pelo menos com os dados que possuo) se a motivação deste
projecto se centrava na emancipação dos alunos ou no aproveitamento
das suas aprendizagens (os Estados Unidos estavam, nos anos 60 do
século passado, particularmente receosos com os questionamentos de que estavam
a ser alvo no mundo). E a «necessidade de indisciplinar o currículo» depende,
principalmente, da resposta que se der a esta questão.
O projecto do Movimento
da Escola Moderna (MEM) tem sido mais consistente na resposta às
duas questões colocadas atrás. Para Sérgio Niza, seu fundador e animador, “A escola passou a ser uma instituição social atravessada
pelas dinâmicas sociais, pelas perturbações, pelas inquietações. Os saberes
académicos já não são pensáveis sem os saberes do quotidiano, sem o saber
espontâneo do quotidiano, das culturas não humanísticas e não científicas, não
académicas.” Por isso, o MEM tem em conta os processos de “construção dos conhecimentos” tanto “científicos” como “culturais”,
que ocorrem “fora da escola”, criando,
dentro da escola, “processos de aprendizagem e de
formação social” que lhe são homólogos.
Trata-se de uma construção pedagógica que deseja a aproximação entre as disciplinas,
pelo que é, no sistema público de ensino, particularmente viável em turmas do
1º Ciclo, as únicas a disfrutar das vantagens da monodocência. Nos ciclos
pedagógicos seguintes essa vantagem tem tendência a desvanecer-se: o caso concretizado
que melhor conheço esteve mais próximo da filosofia pedagógica de uma pequena
associação, alemã, a Mathematik-Unterrichts-Einheiten-Datei (MUED), cuja actividade central é a produção de materiais para o
ensino-e-aprendizagem da Matemática», e a sua permanente melhoria através de um
processo que envolve, potencialmente, todos os seus membros; tal como em
Portugal, os professores envolvidos nesta associação encontram-se limitados
pela disciplinarização das suas escolas (que são sobretudo públicas),
mas isso não os impede de organizar o seu trabalho pedagógico em torno da
interacção de três polos, o «Mundo», os «Alunos» e a «Matemática»; sob o ponto
de vista curricular, o caso que melhor conheço inspirado no MEM não se
distingue do que se faz a partir desta filosofia geral do MUED.
Muito diferentes, e certamente mais ilusórias, são as experiências de interdisciplinaridade.
Em 2014, num encontro sobre «Património e Educação», o arqueólogo Luís Raposo apresentou
uma proposta deste tipo, centrada na História. O problema mais simples que ela
levanta é o de não poder assumir o «presente». E o problema mais profundo,
comum a todas as propostas «interdisciplinares», é ter as «disciplinas» como
pontos de partida: para os professores, que são profundamente disciplinarizados,
faz sentido a pretensão de criar ligações entre disciplinas; mas para os
alunos, que ainda não foram disciplinarizados, não faz sentido ser-lhes
proposto estabelecer ligações entre aquilo que eles não dominam.
Qualquer
que seja o modo como a vontade de «indisciplinar» os currículos escolares procure
contrariar a dispersão neles introduzida pelas «disciplinas», encontrará uma
forte resistência por parte dos sistemas educativos, mesmo que estes a exerçam de
uma forma meramente passiva.
Portanto, se aqueles que possuem a vontade de caminhar para uma «indisciplina
curricular» não desistirem, terão de começar por o fazer por sua conta. Depois,
sabendo que há outros que também o tentam (plausivelmente por caminhos diversos,
como os exemplificados acima), poderão associar-se-lhes, para trocar ideias, para
experimentar novas indisciplinas, para ganhar mais apoios, para pressionar quem
persiste na dispersão curricular.
Talvez um traço comum a essas tentativas seja elas só terem sentido, para os
alunos, se se assumirem como «projecto»: quem aprende parte do que está à sua volta,
do que lhe é acessível, do que pode compreender e/ou transformar, e assim resiste
às «disciplinas» que lhe surgem do exterior como autoridade indiscutível.
E, para os professores que impulsionam estas tentativas de «indisciplinar os
currículos», o mais importante será não perderem de vista a vontade de «participar»
dos seus alunos e não esquecerem que educar é ajudar a emergir o Verdadeiro, o
Belo e o Bom, as três componentes axiológicas da educação propostas por
Landsheere.
Fontes: livro do Earth Science Curriculum
Project (1973, 1º volume; prefácio); sobre o MEM, livro com textos de Niza (2015;
pp. 340 e 438); sobre o MUED, livro de Esteves (2023; p. 24)
Imagem: capa do livro «Investigando a Terra» (tradução e adaptação do livro do Earth Science Curriculum Project)
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