sexta-feira, 31 de outubro de 2025

[0362] Factos e argumentos sobre a educação (VI): a vontade de indisciplinar os currículos

Têm sido propostas e ensaiadas muitas formas de contrariar a dispersão introduzida pelas «disciplinas» nos currículos escolares. Na minha primeira mensagem deste blogue referi-me a uma delas, particularmente fascinante, a do Earth Science Curriculum Project, elaborado e experimentado em meados da década de 1960.
Conforme se resume no prefácio do livro através do qual este projecto (norte-americano) foi divulgado no Brasil, a sua elaboração começou por duas consultas: a cientistas, que listaram os “princípios básicos dos vários ramos da ciência” necessários para que o currículo permitisse compor uma história integrada do planeta Terra; e a professores, que, depois de ouvirem os seus alunos, descreveram “como poderiam os jovens investigar e obter melhores resultados na aprendizagem.
Com estas informações, seguiu-se a elaboração de um esboço de livro para aprendizagem das ciências, focado na história da Terra, por um grupo de professores e que depois um outro grupo, constituído por 40 cientistas e professores, reunidos em Boulder (Colorado), reviu e transformou na primeira versão pronta a ser testada.
No ano lectivo seguinte, 77 professores de diferentes escolas dos Estados Unidos experimentaram essa versão com os seus 7500 alunos, tendo uns e outros enviado comentários semanais para a equipa central. E foi com base nestes comentários que, no Verão, e de novo em Boulder, outro grupo elaborou a segunda versão do livro.

Mas esta ainda não seria a versão definitiva. Destinava-se a ser experimentada no novo ano lectivo, por mais uns tantos milhares de alunos, e a gerar mais uma vaga de comentários que, na Primavera e no Verão desse ano, apoiaram a elaboração da terceira e última versão do livro (que é a que conheço, com as inevitáveis adaptações destinadas a ser utilizada no Brasil):


Pode dizer-se que se tratou de um projecto para «indisciplinar o currículo», evitando sujeitar os alunos, precocemente, às subdivisões nas «disciplinas» de Astronomia, de Biologia, de Ecologia, de Física, de Geografia, de Geologia, de Meteorologia, de Paleontologia, de Química e, até, pelo apoio que que lhes dá, de Matemática. E também se deve acrescentar que, processualmente, foi um projecto particularmente participado, pois juntou, desde o início, os contributos de cientistas, de professores e de alunos, contrastando fortemente com os processos de «reforma currícular» que temos conhecido.

Sessenta anos depois de o Earth Science Curriculum Project ter sido realizado, e quarenta e cinco anos depois de o ter conhecido, pergunto: até que ponto este projecto indisciplinou o currículo?
Um primeiro aspecto a salientar é ele não ter incluido as Humanidades (ou seja: as Línguas, as Artes, etc.), ou só muito pontualmente as ter mobilizado. Um seu possível descendente, os agora em voga currículos STEM (Sciences, Technology, Engineering and Mathematics) continuam a possuir a mesma limitação.
Depois, não é claro (pelo menos com os dados que possuo) se a motivação deste projecto se centrava na emancipação dos alunos ou no aproveitamento das suas aprendizagens (os Estados Unidos estavam, nos anos 60 do século passado, particularmente receosos com os questionamentos de que estavam a ser alvo no mundo). E a «necessidade de indisciplinar o currículo» depende, principalmente, da resposta que se der a esta questão.

O projecto do Movimento da Escola Moderna (MEM) tem sido mais consistente na resposta às duas questões colocadas atrás. Para Sérgio Niza, seu fundador e animador, “A escola passou a ser uma instituição social atravessada pelas dinâmicas sociais, pelas perturbações, pelas inquietações. Os saberes académicos já não são pensáveis sem os saberes do quotidiano, sem o saber espontâneo do quotidiano, das culturas não humanísticas e não científicas, não académicas.” Por isso, o MEM tem em conta os processos de “construção dos conhecimentos” tanto “científicos” como “culturais”, que ocorrem “fora da escola”, criando, dentro da escola, “processos de aprendizagem e de formação social” que lhe são homólogos.
Trata-se de uma construção pedagógica que deseja a aproximação entre as disciplinas, pelo que é, no sistema público de ensino, particularmente viável em turmas do 1º Ciclo, as únicas a disfrutar das vantagens da monodocência. Nos ciclos pedagógicos seguintes essa vantagem tem tendência a desvanecer-se: o caso concretizado que melhor conheço esteve mais próximo da filosofia pedagógica de uma pequena associação, alemã, a Mathematik-Unterrichts-Einheiten-Datei (MUED), cuja actividade central é a produção de materiais para o ensino-e-aprendizagem da Matemática», e a sua permanente melhoria através de um processo que envolve, potencialmente, todos os seus membros; tal como em Portugal, os professores envolvidos nesta associação encontram-se limitados pela disciplinarização das suas escolas (que são sobretudo públicas), mas isso não os impede de organizar o seu trabalho pedagógico em torno da interacção de três polos, o «Mundo», os «Alunos» e a «Matemática»; sob o ponto de vista curricular, o caso que melhor conheço inspirado no MEM não se distingue do que se faz a partir desta filosofia geral do MUED.

Muito diferentes, e certamente mais ilusórias, são as experiências de interdisciplinaridade. Em 2014, num encontro sobre «Património e Educação», o arqueólogo Luís Raposo apresentou uma proposta deste tipo, centrada na História. O problema mais simples que ela levanta é o de não poder assumir o «presente». E o problema mais profundo, comum a todas as propostas «interdisciplinares», é ter as «disciplinas» como pontos de partida: para os professores, que são profundamente disciplinarizados, faz sentido a pretensão de criar ligações entre disciplinas; mas para os alunos, que ainda não foram disciplinarizados, não faz sentido ser-lhes proposto estabelecer ligações entre aquilo que eles não dominam.

Qualquer que seja o modo como a vontade de «indisciplinar» os currículos escolares procure contrariar a dispersão neles introduzida pelas «disciplinas», encontrará uma forte resistência por parte dos sistemas educativos, mesmo que estes a exerçam de uma forma meramente passiva.
Portanto, se aqueles que possuem a vontade de caminhar para uma «indisciplina curricular» não desistirem, terão de começar por o fazer por sua conta. Depois, sabendo que há outros que também o tentam (plausivelmente por caminhos diversos, como os exemplificados acima), poderão associar-se-lhes, para trocar ideias, para experimentar novas indisciplinas, para ganhar mais apoios, para pressionar quem persiste na dispersão curricular.
Talvez um traço comum a essas tentativas seja elas só terem sentido, para os alunos, se se assumirem como «projecto»: quem aprende parte do que está à sua volta, do que lhe é acessível, do que pode compreender e/ou transformar, e assim resiste às «disciplinas» que lhe surgem do exterior como autoridade indiscutível.
E, para os professores que impulsionam estas tentativas de «indisciplinar os currículos», o mais importante será não perderem de vista a vontade de «participar» dos seus alunos e não esquecerem que educar é ajudar a emergir o Verdadeiro, o Belo e o Bom, as três componentes axiológicas da educação propostas por Landsheere.



Fontes: livro do Earth Science Curriculum Project (1973, 1º volume; prefácio); sobre o MEM, livro com textos de Niza (2015; pp. 340 e 438); sobre o MUED, livro de Esteves (2023; p. 24)

Imagem: capa do livro «Investigando a Terra» (tradução e adaptação do livro do Earth Science Curriculum Project)

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

[0361] Onde estão, hoje, a «Liberdade», a «Igualdade» e a «Fraternidade»?

Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII esta trilogia de princípios foi sendo apurada no seio do pensamento europeu. Em 1780, no outro lado do Atlântico, a Constituição do Estado de Massachusetts adoptou dois deles, a Liberdade e a Igualdade, e em 1789, em pleno início da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão fez o mesmo: o seu primeiro artigo postula que “Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos”.

Nos últimos anos do século XVIII os três princípios foram por diversas vezes juntos e propostos como divisa nacional francesa, mas só com a Constituição de 1848 eles foram oficialmente adoptados.
Perto do final do século XIX, com a comemoração do centenário da Revolução Francesa, foi decidido que os três princípios, Liberdade, Igualdade e Fraternidade
, passaria a ser declarados em todos os edifícios públicos:


Também a República Haitiana, uma ex-colónia francesa, adoptou estes mesmos princípios através da sua Constituição de 1987.

A génese das ideias que levaram a que a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade fossem popularmente adoptadas não pode descansar na sua adopção oficial. É notório, hoje, o conflito entre quem, genericamente, adopta estes princípios (ou outros semelhantes) e os que, com o seu poder ou a sua ignorância, os procuram sabotar.
São particularmente preocupantes afirmações como a que Elon Musk fez recentemente:
A fraqueza fundamental da civilização ocidental é a empatia.” Terá sido para combater o crescimento de visões como esta, profundamente egoistas, que o Papa Francisco escreveu, em 2020, a encíclica Fratelli Tutti («Todos Irmãos»), com ela nos exortando à Fraternidade.
E são particularmente preocupantes as constatações como as do académico israelita, Ori Goldberg, que interpretou deste modo o sentimento dominante no seu país em relação ao Próximo Oriente (e ao mundo): “Achamos que devemos ser separados porque somos superiores, porque o mundo nos deve algo, porque devemos poder fazer o que quisermos”; “somos feitos de fogo sagrado”, pelo que “se alguém se aproximar, tem de morrer.” O repúdio popular internacional (e não tão fortemente o repúdio oficial) por esta filosofia nacionalista mostra que a Liberdade, sem a Igualdade e a Fraternidade, pode ser profundamente perversa.



Fonte: Wikipédia (língua francesa), para a imagem e para a história dos três princípios; artigo de António Rodrigues no jornal «Público» de 17 de Setembro de 2025, para a citação de Ori Goldberg