quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

[0307] Factos e argumentos sobre a Educação (II): a «meritocracia» versus o «bem comum»

Num seu recente livro, A Tirania do Mérito, o filósofo Michael J. Sandel procede a uma crítica implacável da centralidade que a noção de «mérito» ganhou na nossa sociedade. Como pano de fundo dessa crítica está a pergunta que serve de subtítulo ao livro: O Que Aconteceu ao Bem Comum?


No início desta sua crítica, Sandel esclarece que não é, em absoluto, contra o «mérito»: quando pretendemos um serviço, como o de canalizador ou o de dentista, é importante que a pessoa escolhida para o desempenhar seja competente; e será justo que um bom candidato não seja rejeitado a favor de um menos bom, devido a preconceitos, raciais, religiosos, sexistas, ou outros.

Quais são, então, os «argumentos» de Sandel contra o «mérito»?

O seu argumento central é o seguinte: se os meritocratas estão contra os “benefícios” proporcionados a quem nasceu “no seio de uma família rica”, por que razão defenderão eles que os cargos, as boas remunerações e a fama sejam atribuídos a outras “ circunstâncias afortunadas – tais como possuir um dom natural”, por exemplo artístico, ou desportivo? Que direito tem alguém a reclamar benefícios pelos “talentos” e “capacidades” que possui se eles coincidem, “por acaso”, com aqueles que a sociedade onde nasceu valoriza?
Claro que o “esforço” para desenvolver esses dons também importa, continua Sandel, “pois ninguém, por muito talentoso que seja, alcança o sucesso a menos que faça um esforço para cultivar os seus talentos”. Por isso, os meritocratas gostam de enfatizar a importância do esforço, afirmando que, “nas condições certas”, e desde que se esforce, cada pessoa é responsável pelo seu “sucesso”, ou seja, dispõe da “liberdade” de que precisa para o alcançar. Mas … “o esforço não é tudo.”

A visão meritocrática, diz Sandel, já foi, historicamente, enunciada por Confúcio (a governação deveria ser entregue aos que se “destacavam em termos de virtude e de capacidade”), por Platão (o governo deveria estar nas mãos de “um rei-filósofo apoiado por uma classe de guardiães orientados para o bem comum”), por Aristóteles (“as pessoas de mérito deveriam ter maior influência nos assuntos públicos”) e, recentemente, por Thomas Jefferson (o governo deveria ser entregue a “uma «aristocracia natural» baseada na «virtude e no mérito»”, em vez de a “uma «aristocracia artificial fundada na riqueza e no nascimento»”). No entanto, acrescenta Sandel, esta “ligação entre mérito e juízo moral» tem vindo a ser rejeitada pela actual “versão tecnocrática da meritocracia”.

Em que se baseiam os actuais meritocratas? Escreve Sandel: “Em cada época, políticos e líderes de opinião, publicistas e anunciantes publicitários recorrem a uma linguagem valorativa de julgamento para fins de persuasão. Tal retórica baseia-se habitualmente em opostos de valoração: justo versus injusto, livre versus não livre, progressivo versus reaccionário, forte versus fraco, aberto versus fechado. Nas últimas décadas, em paralelo com a crescente influência dos modos meritocráticos de pensar, o contraste valorativo predominante tem sido o de inteligente versus estúpido.”
Ora, conclui Sandel, “Quanto mais o exercício da política é visto em termos de «inteligente versus estúpido», mais se defende que as decisões devem ser tomadas por pessoas «inteligentes» (peritos e elites), em vez de se permitir que os cidadãos debatam e decidam que políticas devem ser adotadas.”

Esta evolução de valores na nossa sociedade coloca leva a que se interrogue o papel desempenhado pelas universidades.
Hoje, um “diploma emitido por uma universidade de prestígio” tanto é “o principal meio de mobilidade ascendente” como é “o baluarte mais seguro contra a mobilidade descendente.” Mas a “maioria das atuais universidades, mesmo naquelas que gozam do mais alto prestígio”, não cuidam adequadamente de competências como a “sabedoria prática” e a “virtude cívica”, que são as bases para a “boa governação”. E isso mostra como a “versão tecnocrática da meritocracia” se desliga do “juízo moral”.

Max Weber, antes de esta evolução ter começado, já previra uma das suas mais dramáticas consequências: «O [indivíduo] afortunado raramente se contento com o facto de ser afortunado. Além disso, precisa de saber que também tem direito à sua boa fortuna. Quer estar convencido de que o “merece” e, sobretudo, que o merece em comparação com outros. Quer que lhe seja permitido acreditar que os menos afortunados recebem apenas o que merecem.»
E Michael Young, muitas décadas mais tarde, numa “altura em que o sistema de classes britânico estava a desmoronar-se e a dar lugar a um sistema de desenvolvimento educativo e profissional baseado no mérito”, previu que esta mudança iria gerar a “arrogância” dos afortunados e o “ressentimento” de todos os outros. E é este ressentimento, diz Sandel, que está hoje na base dos diversos populismos.

Como último argumento, Sandel defende que a inversão dos efeitos da «arrogância» e do «ressentimento» seja fundamentada num “bem comum” que olhe para o “nosso papel como produtores e não como consumidores”, contrariamente que fazem os “defensores da globalização baseada no mercado”. E, para o ilustrar, cita (entre outros) James Truslow Adams^, que sonhava com

uma ordem social em que cada homem e cada mulher são capazes de alcançar a expressão mais completa daquilo de que são naturalmente capazes, e ser reconhecidos por outros por aquilo que são, independentemente das circunstâncias fortuitas de nascimento ou posição.

Nota: a ordem de apresentação dos argumentos de Sandel, e a sua valorização relativa, são minhas, não são forçosamente as do autor

Fonte: livro de Sandel (2022; pp. 22, 37-38, 40, 42, 52, 110-111, 119, 126, 147-149, 243, 249 e 262)

Imagem: capa do livro de Sandel (2022)

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