Como se o professor da mensagem anterior dissesse aos seus
alunos, fechados em casa por tempo indeterminado:
Desta vez o texto a ler é este,
mas não pensem muito: imaginem o mundo em que gostariam de viver depois desta
crise; e procurem fundamentar as razões para as mudanças que serão necessárias
e o modo como as podem fazer acontecer.
Efeito colateral do coronavírus: o regresso do Estado
Estas semanas trouxeram a convicção, certa ou ilusória, de que a pandemia marca uma ruptura mais funda do que o 11 de Setembro ou a crise financeira de 2008. Será mesmo uma ruptura de época.
Estamos
numa viragem de época. De momento, ocupam-nos a sobrevivência e a contenção da
epidemia. Os humanos são curiosos e, mesmo no pico da crise, não conseguem
deixar de imaginar que mundo vai nascer da pandemia. Seria estúpido morrer
agora - e ainda mais se for por culpa própria - sem ter sequer uma pista sobre
esse “mundo depois do coronavírus”. O sentimento dominante é o de que
assistimos ao fim de uma era e à inauguração de outra. Certo, parece ser o
reforço do papel do Estado.
Explico.
Num texto publicado no dia 8 de Fevereiro (As duas pestes de 2000), escrevi: “A grande dúvida é
saber se a epidemia se mantém como crise sanitária internacional ou se vai
transformar-se num fenómeno geopolítico susceptível de alterar os equilíbrios
do sistema internacional.”
A
resposta dos factos foi rápida: O coronavírus pode remodelar a ordem global
– é o título de um artigo da revista Foreign Affairs, análogo a muitos
outros. Estas semanas trouxeram a convicção, certa ou ilusória, de que o
coronavírus marca uma ruptura mais funda do que o 11 de Setembro ou a crise
financeira de 2008. Será mesmo uma ruptura de época. O colunista americano
Thomas Friedman propôs há dias, no New York Times, um título que
exprime o este novo sentimento: A nossa nova divisão histórica: A.C e D.C – o
mundo Antes do Corona e Depois do Corona. (Em inglês, B.C e A.C. de Before e
After). Friedman não tem dúvidas sobre a ruptura mesmo se não sabe
desenhar os traços do futuro.
A ordem global
Descontada a
retórica, temos razões para pensar que vai mudar muito mais do que os
equilíbrios entre as potências. Este é um terreno em que é inútil especular,
pois estamos em plena pandemia e não no seu fim. Há um mês, a imagem da China
estava destroçada. Hoje, Pequim está apressadamente a recuperar o seu soft power, tentando
assumir a liderança da cooperação no combate à Covid-2, lugar ostensivamente
deixado vazio pelos Estados Unidos. Teremos outras surpresas nas próximas
semanas.
Paralelamente,
a explosão do coronavírus na América baralhou as cartas políticas. É um terreno
em que Trump não se sabe mover e em que, desde o início, perdeu toda e qualquer
autoridade. Os economistas prevêem uma recessão até ao fim do ano, o que faz
lembrar um velho e pragmático princípio: o Presidente em funções será reeleito
se a economia estiver a crescer. Trump saiu ileso do processo de impeachment
mas o coronavírus subverteu todos os seus planos de campanha.
Por tudo isto,
é muito cedo para imaginar as mudanças nas relações de força entre as
potências, designadamente na competição Pequim-Washington.
A previsível
recessão dará aos Estados um motivo para “limitar a globalização”. É um
diagnóstico crescentemente partilhado por políticos e economistas. Os Estados
europeus são os primeiros a assinalar a necessidade de travar a deslocalização
do trabalho e a autonomia da esfera financeira. Mas, apesar das pulsões
proteccionistas, é impossível regressar a um mundo de espaços autárcicos, como
nos anos 1930.
A emergência sanitária e as quarentenas conduzirão inevitavelmente a uma
dramática crise económica. Não é por acaso que se multiplicam as propostas de
um novo Plano Marshall para a Europa, o que pressupõe uma mudança no paradigma
económico dominante. Subitamente, a França e a Itália parecem decididas a
salvar as suas últimas “jóias”. O ministro da Economia francês admite recorrer
à sua nacionalização. “Para grandes males, grandes remédios”, dizem
economistas. A crise sanitária força a repensar o papel do Estado na sociedade.
E a crise económica, cujos efeitos ainda mal se sentem, vai impor um regresso
da intervenção estatal na economia.
É possível que o futuro da União Europeia se venha a jogar num plano
inesperado: ser capaz ou não de voltar a pensar a longo prazo, com o horizonte
da década e abandonar a “gestão corrente”. Este é o momento mais baixo da UE.
Resta saber se, perante a emergência, e depois dela, os grandes desafios vão
reensinar aos europeus a retomar a “grande política”.
Regressando à política internacional, cito um comentário do politólogo
americano Stephen Walt: “Primeiro, e muito obviamente, a presente emergência
lembra-nos que os Estados são ainda os principais actores da política global.
Até há poucos anos, académicos e colunistas sugeriam que os Estados estavam a
tornar-se menos relevantes nos assuntos mundiais substituídos por outros
actores ou forças sociais. (…) No entanto, quando crescem os novos perigos, os
humanos olham primeiro, e principalmente, para os governos nacionais buscando
protecção.”
O princípio de Quarantelli
Na Itália, que continua a funcionar como laboratório europeu, a epidemia não beneficiou o populismo. Provocou uma onde de “orgulho nacional” e reuniu o país em volta do primeiro-ministro, Giuseppe Conte, que recolhe o apoio de 71% dos italianos, a taxa mais alta dos últimos dez anos.
Para lá do apoio ao governo, um inquérito do Instituto Demos indica uma natural e unânime aprovação do sistema sanitário. Mas indica também uma avaliação positiva das instituições - incluindo políticos e jornalistas. A antipolítica saiu da cena. “Ao contrário do passado, quase todo o país se reuniu em volta do primeiro-ministro e do governo”, escreve o sociólogo Ilvo Diamanti, responsável pelo inquérito.
“A emergência do vírus, além das vítimas, gerou medo. E produziu também um resultado, talvez inesperado, gerando um clima de opinião pública imprevisível até há poucas semanas. Isto é, reconstruiu a unidade nacional.”
Antes, o alvo do medo foi o “outro”, o “estrangeiro” que vem de África ou de outras paragens. Os italianos têm medo. Mas agora o “outro”, resume Diamanti, tornou-se um “inimigo invisível”, que não pode ser parado fechando as fronteiras.
Na segunda-feira, La Repúbblica, inaugurou a semana com um título: A primeira coisa bela de segunda-feira 16 de Março de 2020. Era uma evocação de Enrico Quarantelli, um sociólogo americano que dedicou a sua vida científica ao estudo das reacções aos desastres. Ao contrário do senso comum, demonstrou que os acontecimentos catastróficos trazem à tona o que a humanidade tem de melhor. “A solidariedade prevalece sobre o conflito. A sociedade torna-se mais democrática.” É sempre útil ler os clássicos.
Fonte: artigo
de opinião de Fernandes (2020)
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