O modo mais comum de associar a Matemática à Cultura é considerar a Matemática como parte do «Património Cultural da Humanidade». Assim, a diversidade interna da Matemática, que tanto é origem como consequência da sua história, fica encoberta por um véu de aparente uniformidade.
Para começar a destapar o que esse véu encobre pode-se seguir três grandes caminhos, o da Antropologia, o da História e o da própria Matemática. As considerações e exemplos que se seguem não palmilham estritamente nenhum deles, pois, como se irá tornando evidente, eles se cruzam constantemente.Ubiratan d`Ambrósio afirmou que a Etnomatemática (de que é considerado pai) corresponde à “matemática que é praticada em grupos culturais identificáveis, tais como as sociedades nacionais-tribais, grupos de trabalho, crianças de uma determinada idade, classes profissionais, etc.” Deste modo, ele encara a «Etnomatemática» como abarcando toda a História, desde os primórdios até à actualidade, embora a pareça querer manter um pouco distinta daquilo a que, hoje, se chama «Matemática».
Para Philip Davis e Reuben Hersh, dois matemáticos, “Não é possível compreender a matemática de períodos anteriores sem penetrar a consciência individual e colectiva da respectiva época.” Ou seja, eles admitem que tanto hoje como no passado se fez Matemática, embora de modos diferentes, pois os ambientes em que se viveu outrora possuíam particularidades que inevitavelmente se lhe associaram. No entanto, e simetricamente a d`Ambrósio, parece que eles têm alguma reservas em considerar, na actualidade, a existência de diversas consciências colectivas associadas à Matemática.
Um primeiro exemplo que nos desafia a pensar nestes dois pontos de vista é o seguinte objecto, que já divulguei na mensagem «0317» deste blogue:
Para as
tribos Tucano do Rio Negro, que vivem na fronteira amazónica do Brasil com a
Colômbia, trata-se de um Suporte para Panelas
(está uma panela no seu topo), feito com canas, fixas através de fibras
vegetais. Mas, para um membro da actual tribo dos matemáticos profissionais,
trata-se de uma concretização de um Hiperbolóide de Revolução, uma superfície que
é «regrada», isto é, que pode ser gerada através da rotação (sob certas
condições) de uma recta (cada «cana» representa essa «recta»).
Será adequado dizer que o acto que produziu este objecto é equivalente a «fazer
Matemática», ou dizer que objecto produzido é um «objecto matemático»?
A resposta a estas duas perguntas não pode ser dada pelos membros das tribos
Tucano, pois o seu mundo era concebido de modo diferente do mundo que hoje olha
para este objecto. Essas duas perguntas só podem ser respondidas por nós, a
partir do nosso mundo, e do conceito (um bocado vago) que a palavra
«Matemática» nele tem; e a nossa resposta habitual tem sido a de incorporar na
Matemática actual, como suas manifestações juvenis, os procedimentos e/ou
objectos que nela se encaixam, como é o caso deste «Suporte», por ele ser uma
concretização prática do sofisticado «Hiperbolóide de Revolução» que entretanto
teorizámos.
Um segundo exemplo - um dos muitos que Dirk Struik, especialista em História da
Matemática, nos oferece - é o da vida e obra de um mercador chamado Leonardo, que
viveu, aproximadamente, entre 1170 e 1240. Ele viajou pelo Oriente e, no
regresso, escreveu um livro onde descreveu as diferentes aritméticas e álgebras
que conhecera nas suas viagens. A principal consequência desta divulgação terá
sido a de o sistema de numeração indo-árabe ter sido adoptado na Europa
ocidental (já tinha surgido pontualmente na Península Ibérica mas fora
esquecido), apesar da lentidão com que o foi e apesar de, paralelamente, se ter
mantido por muito tempo o uso dos ábacos para proceder a cálculos numéricos e
de os respectivos resultados terem continuado a ser registados no sistema de
numeração romano. O livro que tornou famoso o mercador Leonardo foi o «Liber
Abaci» (1202) e ele acabou por ficar conhecido como Fibonacci.
A seguinte gravura mostra a coexistência, e também a competição, em plena
Renascença, entre duas diferentes tradições algorítmicas para o cálculo
numérico:
![]() |
| Algoritmos
em competição: a escrita versus o
ábaco (gravura de Gregor Reisch, 1508) |
Um terceiro exemplo mostra como os próprios objectos matemáticos, já depois de terem sido consagrados como tal, podem ser associados a concepções do mundo que nada têm a ver com a Matemática tal como ela é vista hoje. O célebre astrónomo Kepler (1571-1630), que tão bem soube usar os instrumentos matemáticos que teve à sua disposição, defendeu, no seu «Misterium Cosmographicum» (1596), que os cinco poliedros regulares (ou platónicos), conhecidos e estudados desde a Grécia Clássica, correspondiam ao plano geométrico que Deus elaborara para o Universo (naquela altura só eram conhecidos cinco planetas do Sistema Solar):
Mais
tarde Kepler rejeitou este seu modelo de juventude; mas esta sua tentativa
falhada encaixa-se muito bem no «Platonismo», uma Filosofia da Matemática que
defende a existência dos objectos matemáticos numa espécie de céu divino,
cabendo-nos a nós descobri-los com o nosso trabalho - foi o que Kepler tentou
fazer, tendo dessa vez errado.
Se Davis e Hersh não arriscam muito no que respeita à diversidade de
consciências colectivas associadas à actual Matemática, eles não deixam de lhe
deixar as portas um pouco abertas. Por um lado, escreveram eles, houve “pessoas de todas as condições” que, no “passado”, se dedicaram à Matemática: “Thomas Bradwardine
(1325) era arcebispo de Canterbury. Ulugh Beg, o das tábuas trigonométricas,
era neto de Tamerlão. Luca Pacioli (1470) era monge. Ferrari (1548), cobrador
de impostos. Cardano (1550), professor de medicina. Viète (1580) era jurista do
conselho privado real. Van Ceulen (1610), mestre de esgrima. Fermat (1635) era
advogado.” Mas, prosseguem, se os antigos contributos para aquilo que
hoje se chama Matemática eram relativamente desconectados, isso contrasta com a
forte unificação da Matemática actual, o que não se verifica apenas na
articulação conceptual desta, sendo também evidente entre os seus produtores e os
seus utilizadores: “Na medida em que todas as
crianças aprendem algo de Matemática, e que a linguagem comum contém uma
pequena fracção de noções matemáticas, a comunidade dos matemáticos e o
conjunto da população poderiam, em princípio, considerar-se idênticas. Não
obstante, nos níveis mais elevados desta profissão, os níveis em que se criam e
transmitem novos conhecimentos matemáticos, somos um colectivo francamente
reduzido.” Portanto, poderiam eles ter resumido: existe, hoje, uma
«comunidade de matemáticos única», embora com uma enorme diferença de papéis no
seu seio, entre a grande maioria dos «utilizadores» e a pequena minoria dos
«criadores». Mas, pergunto eu: se no passado houve criadores «de todas as
condições», por que não admitir que, na actualidade, entre os que se suporia
apenas utilizarem a Matemática, haja variantes na forma de interpretar e de
operacionalizar a Matemática, em função de «consciências colectivas» que podem
ser profissionais, regionais ou outras?
Um último exemplo - que Davis e Hersh poderiam ter acrescentado à sua lista de
«pessoas de todas as condições» que deram contributos para a Matemática - é o
do Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). Ele foi
sobretudo um naturalista, tendo, quando jovem, por curiosidade, desenvolvido um
método experimental que permite calcular, como limite, o valor do
número p através do
lançamento de uma agulha; ele é hoje considerado, na Estatística, como o primeiro
exemplo do chamado Método de Monte Carlo. Segundo Jason Roberts, “Os cientistas atuais usam técnicas que descendem da
Agulha de Buffon para contabilizar o número de células de uma amostra de
tecido, para calcular a área da superfície interna de um pulmão e para
quantificar o número de neurónios num cérebro humano. Os meteorologistas
usam-nas para prever o desenvolvimento de tempestades. As firmas financeiras
usam-nas para calcular riscos de investimento e os governos para criarem
políticas económicas.” Ou seja, quem usa este método (e talvez quem lhe impulsiona
novas aplicações) são sobretudo os cientistas, os técnicos e, talvez, muitos de
nós, deixando aos matemáticos profissionais (é certamente assim que a
distribuição de trabalho acontece) o desafio de investigar os seus fundamentos
e de os validar.
![]() |
| Buffon lançando as suas agulhas |
Então, o
que será «Matemática Cultural»?
A definição de Ubiratan D`Ambrósio poderia ser a primeira resposta,
faltando-lhe apenas incluir nela a Matemática que resulta da cultura do grupo
dos matemáticos profissionais. Ou até as suas várias culturas: Davis e Hersh,
por exemplo, referem-se-lhes como divididos entre os que adoptam a posição
filosófica do «platonismo», do «formalismo» e do «construtivismo», o que é
apenas um exemplo da sua diversidade interna e, portanto, das suas possíveis
«comunidades culturais».
Se olharmos para outros campos da actividade humana, encontramos preocupações
semelhantes às de D`Ambrósio. Por exemplo, Eva Maria Blum e Gisela Welz (inspiradas
em Sanyal), ao procurarem uma boa definição para as «culturas de planeamento» (no
âmbito das questões colocadas pelo Urbanismo), propuseram a seguinte: as “culturas de planeamento” devem ser entendidas como
“um processo cultural no qual os atores incorporam
as suas ideias e orientações”, introduzindo-lhe adaptações e
reconfigurações resultantes da sua “prática
quotidiana”, da “articulação de discursos”
entre “grupos e especialistas” e do “resultado dos conflitos políticos e sociais” em
que estão envolvidos. Também aqui não existe uma só cultura; e todas elas se influenciam
mutuamente (o que por vezes até é conflitual).
Proporei, então, a seguinte definição: a Matemática Cultural é aquela que é ou foi produzida e utilizada na
actividade das comunidades cidadãs, de vida e de trabalho, incluindo as dos
matemáticos profissionais, estando portanto associada a opções, a saberes e a
decisões individuais e colectivas.
Se esta definição permite que se arrisque afirmar que toda a Matemática é Etnomatemática
e que toda a
Matemática é Cultural, com ela não se esgota a atenção que é preciso
prestar ao que é designável por «processo intercultural das matemáticas»,
que por um lado as «unifica» e, por outro, as faz entrar nas escolas …
Fontes: livros de Gerdes (2007; d`Ambrósio
é citado na p. 187), de Davis & Hersh (1989; pp. 26 e 40; as traduções são
minhas), de Roberts (2025; pp. 81-83) e de Struik (1989; pp. 138-140); artigo
de Blum (pp. 266-267)
Imagens (por ordem): 1ª, fotografia
de Eva Maria Blum; 2ª e 3ª, Wikipédia; 4ª, livro de Roberts
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