sábado, 29 de novembro de 2025

[0364] Um exemplo de aprendizagem: o confronto das tentativas individuais com a experiência colectiva

As provas combinadas mais conhecidas no Atletismo são o Heptatlo, para as Mulheres, e o Decatlo, para os Homens.

Tratando-se de uma combinação de provas, e não de uma prova única, o Heptatlo e o Decatlo exigem o recurso a uma tabela que converta em pontos os resultados obtidos em cada uma das provas que os compõem (tempos das corridas e distâncias dos saltos e dos lançamentos). Assim, a competição entre os diferentes atletas é decidida confrontando as respectivas pontuações totais.

No início da década de 1960, a meio da minha adolescência, comecei a intere
ssar-me pelo Pentatlo e pelo Decatlo, pelo que me surgiu a necessidade de dispor de uma tabela, ferramenta que, naqueles anos, apenas era acessível a um muito restrito número de pessoas que, claro, não me incluía.
Decidi então criar uma tabela própria. Depois de pensar durante algum tempo cheguei a uma solução: os desempenhos nos saltos e nos lançamentos seriam pontuados aplicando a «proporcionalidade directa» à sua extensão; e os desempenhos nas corridas seriam pontuadas aplicando a «proporcionalidade inversa» à sua duração.
Seria portanto simples, só sendo necessário fixar a que marcas corresponderiam os 1000 pontos de cada prova (os «1000 pontos», conforme me apercebera pelos jornais, era a pontuação que, mais ou menos, equivalia a um resultado entre o «bom» e o «muito bom» numa prova não combinada, portanto ainda um pouco distante do correspondente máximo mundial).
Já não me recordo das marcas a que decidi atribuir os 1000 pontos, mas vou agora supor que seriam a de 10,4 segundos para a corrida de 100 metros e a de 7,76 metros para o salto em comprimento (estas são as marcas a que as tabelas actualmente adoptadas nas competições internacionais fazem corresponder os 1000 pontos).
Então, os 13 segundos de que eu precisava para terminar a primeira destas provas equivaleriam a (10,4 x 1000) / 13 = 800 pontos.
E os 5,7 metros que saltava no comprimento equivaleriam a (5,7 x 1000) / 7,76 = 734 pontos.

Este meu modo de estabelecer pontuações para as provas individuais tinha várias fraquezas. Uma delas tornou-se-me evidente pelo facto de eu ser melhor no salto em comprimento do que na corrida de 100 metros e, no entanto, obter melhor pontuação nesta segunda prova.
Uma outra tinha a ver com a atribuição de pontos a desempenhos que nunca ocorrem nas competições de atletismo, como os saltos em comprimento excessivamente curtos (por exemplo: meio metro) e as corridas de 100 metros demasiado lentas (por exemplo: 10 minutos); deste modo, a acuidade do meu método era muito enfraquecida.
E a última fraqueza tinha a ver com os valores mais altos da curva de pontos correspondente a cada prova: quanto mais um resultado estivesse próximo de ser «excepcional», mais difícil seria a sua progressão (pois se está no limiar das potencialidades humanas); portanto, nestas circunstâncias, qualquer progresso (por exemplo: meio metro no salto em comprimento; ou meio segundo nos 100 metros) deve ser pontualmente valorizado do que se fosse obtido se o resultado fosse «médio» ou «bom» (aonde as proporcionalidades directa e inversa se aplicam melhor).

Algum tempo depois deste meu esforço foram publicadas as tabelas de Fernando Amado (1899 – 1968) para as provas combinadas do Atletismo, que chegaram a ser adoptadas nalguns países, mas não nas provas internacionais. Comprei um exemplar dessas tabelas, tendo-me então apercebido de elas se baseavam no estudo estatístico dos resultados das várias provas, tendo deste modo em conta os resultados situados nos extremos das curvas de pontuação (o 2º e o 3º pontos fracos do meu método). Era algo que estava para além das ferramentas de que eu dispunha …

Desde as tabelas de Fernando Amado até hoje foram construídas diversas outras tabelas, que têm tido crescentes apoios estatísticos e a colaboração internacional dos respectivos estudiosos. As que actualmente têm a aprovação da IAAF (Federação Internacional das Associações de Atletismo) atribuem 1 ponto a uma corrida de 100 metros que dure 17,83 segundos e a um salto em comprimento de 2,25 metros. E segundo elas os meus 13 segundos na corrida dos 100 metros equivaleriam a 468 pontos e os 5,7 metros no salto em comprimento a 523 pontos.

Por curiosidade, aqui vai a comparação entre as tabelas actualmente em vigor para a IAAF e as que, implicitamente, corresponderiam ao meu método, primeiro para a corrida dos 100 metros, depois para o salto em comprimento (uso valores arredondados):


Não me importou muito ir descobrindo as limitações desta minha tentativa de autonomia como adolescente: se não o tivesse feito não perceberia tão bem o que depois fui descobrindo no trabalho daqueles que tinham muito mais experiência do que eu!


Fontes: PDF do IAAF (2001); Wikipédia (para Fernando Amado)
Gráficos: Pedro Esteves

sábado, 15 de novembro de 2025

[0363] Matemática Cultural (I): uma proposta de definição

O modo mais comum de associar a Matemática à Cultura é considerar a Matemática como parte do «Património Cultural da Humanidade». Assim, a diversidade interna da Matemática, que tanto é origem como consequência da sua história, fica encoberta por um véu de aparente uniformidade.

Para começar a destapar o que esse véu encobre pode-se seguir três grandes caminhos, o da Antropologia, o da História e o da própria Matemática. As considerações e exemplos que se seguem não palmilham estritamente nenhum deles, pois, como se irá tornando evidente, eles se cruzam constantemente.

Ubiratan d`Ambrósio afirmou que a Etnomatemática (de que é considerado pai) corresponde à “matemática que é praticada em grupos culturais identificáveis, tais como as sociedades nacionais-tribais, grupos de trabalho, crianças de uma determinada idade, classes profissionais, etc.” Deste modo, ele encara a «Etnomatemática» como abarcando toda a História, desde os primórdios até à actualidade, embora a pareça querer manter um pouco distinta daquilo a que, hoje, se chama «Matemática».

Para Philip Davis e Reuben Hersh, dois matemáticos, “Não é possível compreender a matemática de períodos anteriores sem penetrar a consciência individual e colectiva da respectiva época.” Ou seja, eles admitem que tanto hoje como no passado se fez Matemática, embora de modos diferentes, pois os ambientes em que se viveu outrora possuíam particularidades que inevitavelmente se lhe associaram. No entanto, e simetricamente a d`Ambrósio, parece que eles têm alguma reservas em considerar, na actualidade, a existência de diversas consciências colectivas associadas à Matemática.

Um primeiro exemplo que nos desafia a pensar nestes dois pontos de vista é o seguinte objecto, que já divulguei na mensagem «0317» deste blogue:



Para as tribos Tucano do Rio Negro, que vivem na fronteira amazónica do Brasil com a Colômbia, trata-se de um Suporte para Panelas (está uma panela no seu topo), feito com canas, fixas através de fibras vegetais. Mas, para um membro da actual tribo dos matemáticos profissionais, trata-se de uma concretização de um Hiperbolóide de Revolução, uma superfície que é «regrada», isto é, que pode ser gerada através da rotação (sob certas condições) de uma recta (cada «cana» representa essa «recta»).
Será adequado dizer que o acto que produziu este objecto é equivalente a «fazer Matemática», ou dizer que objecto produzido é um «objecto matemático»?
A resposta a estas duas perguntas não pode ser dada pelos membros das tribos Tucano, pois o seu mundo era concebido de modo diferente do mundo que hoje olha para este objecto. Essas duas perguntas só podem ser respondidas por nós, a partir do nosso mundo, e do conceito (um bocado vago) que a palavra «Matemática» nele tem; e a nossa resposta habitual tem sido a de incorporar na Matemática actual, como suas manifestações juvenis, os procedimentos e/ou objectos que nela se encaixam, como é o caso deste «Suporte», por ele ser uma concretização prática do sofisticado «Hiperbolóide de Revolução» que entretanto teorizámos.

Um segundo exemplo - um dos muitos que Dirk Struik, especialista em História da Matemática, nos oferece - é o da vida e obra de um mercador chamado Leonardo, que viveu, aproximadamente, entre 1170 e 1240. Ele viajou pelo Oriente e, no regresso, escreveu um livro onde descreveu as diferentes aritméticas e álgebras que conhecera nas suas viagens. A principal consequência desta divulgação terá sido a de o sistema de numeração indo-árabe ter sido adoptado na Europa ocidental (já tinha surgido pontualmente na Península Ibérica mas fora esquecido), apesar da lentidão com que o foi e apesar de, paralelamente, se ter mantido por muito tempo o uso dos ábacos para proceder a cálculos numéricos e de os respectivos resultados terem continuado a ser registados no sistema de numeração romano. O livro que tornou famoso o mercador Leonardo foi o «Liber Abaci» (1202) e ele acabou por ficar conhecido como Fibonacci.
A seguinte gravura mostra a coexistência, e também a competição, em plena Renascença, entre duas diferentes tradições algorítmicas para o cálculo numérico:

Algoritmos em competição: a escrita versus o ábaco
(gravura de Gregor Reisch, 1508)

Um terceiro exemplo mostra como os próprios objectos matemáticos, já depois de terem sido consagrados como tal, podem ser associados a concepções do mundo que nada têm a ver com a Matemática tal como ela é vista hoje. O célebre astrónomo Kepler (1571-1630), que tão bem soube usar os instrumentos matemáticos que teve à sua disposição, defendeu, no seu «Misterium Cosmographicum» (1596), que os cinco poliedros regulares (ou platónicos), conhecidos e estudados desde a Grécia Clássica, correspondiam ao plano geométrico que Deus elaborara para o Universo (naquela altura só eram conhecidos cinco planetas do Sistema Solar):

As meias Esferas são as órbitas dos planetas
(Saturno, Júpiter, Marte, Terra e Mercúrio)
e estes são representados pelos Poliedros
(cada Esfera inscreve um Poliedro e cada
Poliedro, excepto o último, inscreve uma Esfera)


Mais tarde Kepler rejeitou este seu modelo de juventude; mas esta sua tentativa falhada encaixa-se muito bem no «Platonismo», uma Filosofia da Matemática que defende a existência dos objectos matemáticos numa espécie de céu divino, cabendo-nos a nós descobri-los com o nosso trabalho - foi o que Kepler tentou fazer, tendo dessa vez errado.

Se Davis e Hersh não arriscam muito no que respeita à diversidade de consciências colectivas associadas à actual Matemática, eles não deixam de lhe deixar as portas um pouco abertas. Por um lado, escreveram eles, houve “pessoas de todas as condições” que, no “passado”, se dedicaram à Matemática: Thomas Bradwardine (1325) era arcebispo de Canterbury. Ulugh Beg, o das tábuas trigonométricas, era neto de Tamerlão. Luca Pacioli (1470) era monge. Ferrari (1548), cobrador de impostos. Cardano (1550), professor de medicina. Viète (1580) era jurista do conselho privado real. Van Ceulen (1610), mestre de esgrima. Fermat (1635) era advogado.” Mas, prosseguem, se os antigos contributos para aquilo que hoje se chama Matemática eram relativamente desconectados, isso contrasta com a forte unificação da Matemática actual, o que não se verifica apenas na articulação conceptual desta, sendo também evidente entre os seus produtores e os seus utilizadores: “Na medida em que todas as crianças aprendem algo de Matemática, e que a linguagem comum contém uma pequena fracção de noções matemáticas, a comunidade dos matemáticos e o conjunto da população poderiam, em princípio, considerar-se idênticas. Não obstante, nos níveis mais elevados desta profissão, os níveis em que se criam e transmitem novos conhecimentos matemáticos, somos um colectivo francamente reduzido.” Portanto, poderiam eles ter resumido: existe, hoje, uma «comunidade de matemáticos única», embora com uma enorme diferença de papéis no seu seio, entre a grande maioria dos «utilizadores» e a pequena minoria dos «criadores». Mas, pergunto eu: se no passado houve criadores «de todas as condições», por que não admitir que, na actualidade, entre os que se suporia apenas utilizarem a Matemática, haja variantes na forma de interpretar e de operacionalizar a Matemática, em função de «consciências colectivas» que podem ser profissionais, regionais ou outras?

Um último exemplo - que Davis e Hersh poderiam ter acrescentado à sua lista de «pessoas de todas as condições» que deram contributos para a Matemática - é o do Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). Ele foi sobretudo um naturalista, tendo, quando jovem, por curiosidade, desenvolvido um método experimental que permite calcular, como limite, o valor do número p através do lançamento de uma agulha; ele é hoje considerado, na Estatística, como o primeiro exemplo do chamado Método de Monte Carlo. Segundo Jason Roberts, “Os cientistas atuais usam técnicas que descendem da Agulha de Buffon para contabilizar o número de células de uma amostra de tecido, para calcular a área da superfície interna de um pulmão e para quantificar o número de neurónios num cérebro humano. Os meteorologistas usam-nas para prever o desenvolvimento de tempestades. As firmas financeiras usam-nas para calcular riscos de investimento e os governos para criarem políticas económicas.” Ou seja, quem usa este método (e talvez quem lhe impulsiona novas aplicações) são sobretudo os cientistas, os técnicos e, talvez, muitos de nós, deixando aos matemáticos profissionais (é certamente assim que a distribuição de trabalho acontece) o desafio de investigar os seus fundamentos e de os validar.

Buffon lançando as suas agulhas

Então, o que será «Matemática Cultural»?
A definição de Ubiratan D`Ambrósio poderia ser a primeira resposta, faltando-lhe apenas incluir nela a Matemática que resulta da cultura do grupo dos matemáticos profissionais. Ou até as suas várias culturas: Davis e Hersh, por exemplo, referem-se-lhes como divididos entre os que adoptam a posição filosófica do «platonismo», do «formalismo» e do «construtivismo», o que é apenas um exemplo da sua diversidade interna e, portanto, das suas possíveis «comunidades culturais».
Se olharmos para outros campos da actividade humana, encontramos preocupações semelhantes às de D`Ambrósio. Por exemplo, Eva Maria Blum e Gisela Welz (inspiradas em Sanyal), ao procurarem uma boa definição para as «culturas de planeamento» (no âmbito das questões colocadas pelo Urbanismo), propuseram a seguinte: as “culturas de planeamento” devem ser entendidas como “um processo cultural no qual os atores incorporam as suas ideias e orientações”, introduzindo-lhe adaptações e reconfigurações resultantes da sua “prática quotidiana”, da “articulação de discursos” entre “grupos e especialistas” e do “resultado dos conflitos políticos e sociais” em que estão envolvidos. Também aqui não existe uma só cultura; e todas elas se influenciam mutuamente (o que por vezes até é conflitual).

Proporei, então, a seguinte definição: a Matemática Cultural é aquela que é ou foi produzida e utilizada na actividade das comunidades cidadãs, de vida e de trabalho, incluindo as dos matemáticos profissionais, estando portanto associada a opções, a saberes e a decisões individuais e colectivas.
Se esta definição permite que se arrisque afirmar que toda a Matemática é Etnomatemática e que toda a Matemática é Cultural, com ela não se esgota a atenção que é preciso prestar ao que é designável por «processo intercultural das matemáticas», que por um lado as «unifica» e, por outro, as faz entrar nas escolas …



Fontes: livros de Gerdes (2007; d`Ambrósio é citado na p. 187), de Davis & Hersh (1989; pp. 26 e 40; as traduções são minhas), de Roberts (2025; pp. 81-83) e de Struik (1989; pp. 138-140); artigo de Blum (pp. 266-267)
Imagens (por ordem): 1ª, fotografia de Eva Maria Blum; 2ª e 3ª, Wikipédia; 4ª, livro de Roberts