sexta-feira, 21 de junho de 2024

[0346] O paradoxo do Método de Hondt

Num artigo de opinião recentemente publicado num hebdomadário, Jaime Carvalho e Silva conclui não ser possível ter uma Democracia plena sem Matemática avançada.

A sua argumentação apoia-se em dois exemplos.

O primeiro veio de uma publicação da UNESCO onde se mostra “como a Matemática nos permite compreender a evolução da pobreza e da fome no mundo, a progressão das epidemias e das vacinas, a gestão da água e do saneamento básico, a sustentabilidade da industrialização, a sustentabilidade do consumo e da produção, as mudanças climáticas, a conservação do oceanos e dos ecossistemas terrestres, etc., etc., etc..” Ou seja, para poder intervir e decidir no que aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável diz respeito. Portanto, compreende-se que a “educação matemática” seja “importante para o desenvolvimento de cidadãos reflexivos e críticos”, e que isso facilite formas mais avançadas de democracia.

O segundo exemplo diz respeito aos sistemas eleitorais, a partir de uma breve análise dos resultados das últimas eleições, em Portugal, para o Parlamento Europeu.
São comparados dois métodos para quantificar o número de deputados correspondentes aos votos obtidos pelos diversos partidos, o Método de Hondt (também nas nossas eleições legislativas) e o Método de Sainte-Laguë. A conclusão a que Jaime Carvalho e Silva chega é a de que a distribuição dos deputados seria muito parecida, no entanto com uma ligeiríssima vantagem do segundo método no que respeita à maior diversidade de partidos representados.

Os resultados da aplicação do Método de Hondt geram, no entanto, um paradoxo: a afirmação de que ele pouco ou nada se desvia do que seria uma distribuição dos eleitos proporcionalmente aos votos obtidos verifica-se em todos os exemplos apresentados nos sítios da internet que nos explicam como este método funciona (e também nos manuais escolares que abordam este tema); mas ela não se verifica em muitas das eleições reais!

Vou ilustrar este paradoxo com as eleições legislativos de 2024 em Portugal.
Participaram nelas 6  473  789 votantes. Destes, 89  823 votaram em branco e 189  676 viram o seu voto anulado. Portanto, para o cálculo da distribuição dos 230 deputados foi necessário subtrair ao total de votantes estes dois subtotais, sendo então de 6  194  290 os votantes que indicaram, validamente, o partido da sua preferência.
A base para o cálculo dos deputados resultantes destas eleições será então a seguinte:


Com base nestes números, a tabela seguinte mostra: o número de deputados resultante do processo de apuramento oficial; o número de deputados que teriam sido eleitos se o Método de Hondt lhes fosse aplicado (em vez de o ser aos votos em cada distrito); e o número de deputados que teriam sido eleitos pela aplicação do Método Proporcional (o que, sem uma regra para os arredondamentos, implica números decimais):

Notas:
O «processo não oficial» utilizou uma calculadora acessível em https://ciberforma.pt/metodo-de-hondt-calculadora/;
Para o Método Proporcional dividi 6  194  290 votos por 230 deputados (dá 26  932 votos, arredondados por excesso, número que, por este processo, corresponde a 1 deputado (a atribuição dos deputados correspondentes às partes «decimais» patentes na tabela exige uma regulamentação própria).

O paradoxo está à vista, mas agora com a sua solução mais visível: o Método de Hondt usado no processo não oficial proporciona, de facto, resultados bastante próximos dos obtidos pelo Método Proporcional, diferindo ambos fortemente dos proporcionados pela forma como o Método de Hondt é usado no processo oficial.
Porquê?
Porque o processo oficial se baseia não num círculo eleitoral, mas sim em 18 círculos eleitorais (os nossos distritos). E como em cada distrito há uma pequena tendência para o favorecimento dos partidos mais votados (desfavorecendo os outros), fenómeno que o próprio Ministério da Administração Interna reconhece no seu sítio (sem se referir à existência de vários círculos eleitorais), a multiplicação destas pequenas vantagens por 18 distritos vai gerar as grandes discrepâncias que se constatam na tabela acima.

Em relação às eleições europeias acontece o mesmo: cada país é um círculo eleitoral; em Portugal podemos não nos queixarmos de discrepâncias no que respeita à nossa representação, mas podemos e devemos queixar-nos das discrepâncias que podem surgir a nível europeu.

Há uma (muito enganadora) desvantagem do Método Proporcional em relação ao Método de Hondt: tal como deixei propositadamente sugerido na última tabela, o número dos representantes eleitos aparece-nos não como um inteiro.
É isto, de facto, um problema?
Qualquer método enfrenta a necessidade de arredondamentos, incorporando a respectiva solução ou na própria técnica de cálculo (como o faz o Método de Hondt) ou acrescentando regras de «desempate» (como se faz, por exemplo, no desporto).
Uma regra muito simples para o Método Proporcional (aplicado às eleições ou a qualquer outro fim) é a aproximação ser sempre feita por defeito, sendo depois escolhidos os melhores «restos» para atribuir as unidades (neste caso deputados) que falta distribuir.
Utilizando esta regra ao Método Proporcional, o resultado dos três métodos aplicados às nossas últimas eleições legislativas seria então o seguinte:



É absolutamente claro neste exemplo, que é real, a vantagem dos três partidas mais votados em relação a todos os outros, incluindo aqueles que, não tendo deputados, não puderam contribuir para aumentar a diversidade dos representados na Assembleia.

Um «democracia mais avançada» não depende especialmente da Matemática; depende sobretudo da vontade de perceber a realidade e de não perdermos o sentido da «exigência democrática».

A Matemática, no entanto, tem um importante papel na escolha dos sistemas eleitorais, o de nos apresentar a demonstração (ou a refutação) das pequenas vantagens que um método pode ter em relação a outros e da transformação dessas pequenas em grandes vantagens quando se passa de um para vários círculos eleitorais.


Fontes: artigo de Silva (2024); sítio do Ministério da Administração Interna (para os resultados das eleições legislativas)

quinta-feira, 13 de junho de 2024

[0345] Grandes números: população, armamento, lucros

A população humana actual é de aproximadamente 8  200 milhões de pessoas.

Dos vinte países mais populoso, dez estão situados na Ásia, quatro em África, três nas Américas, dois na Eurásia e um na Europa:


Na Europa, vivem 750 milhões de pessoas; na União Europeia, 450 milhões. E em Portugal, 10 milhões.

Os
vinte países com maiores gastos militares em 2023, segundo um relatório publicado este ano pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), foram (valores em milhares de milhões de dólares americanos, calculados com base nas actuais taxas de câmbio):



Há dias, o Congresso norte-americano aprovou uma ajuda militar à Ucrânia no montante de 61 mil milhões de dólares (montante que corresponde a cerca de um quinze avos do que os EUA gastaram em armamento em 2023).

Os 65 maiores bancos e empresas financeiras operando na Europa obtiveram, no ano passado, um lucro excessivo de 590 mil milhões de €uros (um pouco mais de metade do orçamento militar norte-americano).

Os cinco maiores bancos que operam no mercado português (BPI, CGD, Millennium BCP, Novo Banco e Santander), tiveram no primeiro trimestre deste ano resultados líquidos superiores a 1,22 mil milhões de €uros (qualquer coisa como 560 mil €uros por hora, ou 13,46 milhões por dia, ao longo destes três meses.
Este valor pode ser comparado com o custo estimado do
novo aeroporto de Lisboa: pelo menos 6 mil milhões de €uros. Ou seja, com o actual ritmo dos seus resultados líquidos, aqueles cinco bancos podiam construir o novo aeroporto ao fim de 15 meses.


Fonte
:  sítios da Countrymeters, para a população mundial; da Wikipédia (versão portuguesa), para os gastos militares; e da «Esquerda.net» (17 de Maio de 2024), para os bancos portugueses; e jornal «Público» (15 de Maio de 2024, pp. 2-3 e 21; 16 de Maio de 2024, p. 24), para as restantes informações