Num artigo de opinião recentemente publicado num hebdomadário, Jaime Carvalho e Silva conclui não ser possível “ter uma Democracia plena sem Matemática avançada.”
A sua argumentação apoia-se em dois exemplos.O primeiro veio de uma publicação da UNESCO onde se mostra “como a Matemática nos permite compreender a evolução da pobreza e da fome no mundo, a progressão das epidemias e das vacinas, a gestão da água e do saneamento básico, a sustentabilidade da industrialização, a sustentabilidade do consumo e da produção, as mudanças climáticas, a conservação do oceanos e dos ecossistemas terrestres, etc., etc., etc..” Ou seja, para poder intervir e decidir no que aos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável diz respeito. Portanto, compreende-se que a “educação matemática” seja “importante para o desenvolvimento de cidadãos reflexivos e críticos”, e que isso facilite formas mais avançadas de democracia.
O segundo exemplo diz respeito aos sistemas eleitorais, a partir de uma breve análise dos resultados das últimas eleições, em Portugal, para o Parlamento Europeu.
São comparados dois métodos para quantificar o número de deputados correspondentes aos votos obtidos pelos diversos partidos, o Método de Hondt (também nas nossas eleições legislativas) e o Método de Sainte-Laguë. A conclusão a que Jaime Carvalho e Silva chega é a de que a distribuição dos deputados seria muito parecida, no entanto com uma ligeiríssima vantagem do segundo método no que respeita à maior diversidade de partidos representados.
Os resultados da aplicação do Método de Hondt geram, no entanto, um paradoxo: a afirmação de que ele pouco ou nada se desvia do que seria uma distribuição dos eleitos proporcionalmente aos votos obtidos verifica-se em todos os exemplos apresentados nos sítios da internet que nos explicam como este método funciona (e também nos manuais escolares que abordam este tema); mas ela não se verifica em muitas das eleições reais!
Vou ilustrar este paradoxo com as eleições legislativos de 2024 em Portugal.
Participaram nelas 6 473 789 votantes. Destes, 89 823 votaram em branco e 189 676 viram o seu voto anulado. Portanto, para o cálculo da distribuição dos 230 deputados foi necessário subtrair ao total de votantes estes dois subtotais, sendo então de 6 194 290 os votantes que indicaram, validamente, o partido da sua preferência.
A base para o cálculo dos deputados resultantes destas eleições será então a seguinte:
Com base nestes números, a tabela seguinte mostra: o número de deputados resultante do processo de apuramento oficial; o número de deputados que teriam sido eleitos se o Método de Hondt lhes fosse aplicado (em vez de o ser aos votos em cada distrito); e o número de deputados que teriam sido eleitos pela aplicação do Método Proporcional (o que, sem uma regra para os arredondamentos, implica números decimais):
O «processo não oficial» utilizou uma calculadora acessível em https://ciberforma.pt/metodo-de-hondt-calculadora/;
Para o Método Proporcional dividi 6 194 290 votos por 230 deputados (dá 26 932 votos, arredondados por excesso, número que, por este processo, corresponde a 1 deputado (a atribuição dos deputados correspondentes às partes «decimais» patentes na tabela exige uma regulamentação própria).
O paradoxo está à vista, mas agora com a sua solução mais visível: o Método de Hondt usado no processo não oficial proporciona, de facto, resultados bastante próximos dos obtidos pelo Método Proporcional, diferindo ambos fortemente dos proporcionados pela forma como o Método de Hondt é usado no processo oficial.
Porquê?
Porque o processo oficial se baseia não num círculo eleitoral, mas sim em 18 círculos eleitorais (os nossos distritos). E como em cada distrito há uma pequena tendência para o favorecimento dos partidos mais votados (desfavorecendo os outros), fenómeno que o próprio Ministério da Administração Interna reconhece no seu sítio (sem se referir à existência de vários círculos eleitorais), a multiplicação destas pequenas vantagens por 18 distritos vai gerar as grandes discrepâncias que se constatam na tabela acima.
Em relação às eleições europeias acontece o mesmo: cada país é um círculo eleitoral; em Portugal podemos não nos queixarmos de discrepâncias no que respeita à nossa representação, mas podemos e devemos queixar-nos das discrepâncias que podem surgir a nível europeu.
Há uma (muito enganadora) desvantagem do Método Proporcional em relação ao Método de Hondt: tal como deixei propositadamente sugerido na última tabela, o número dos representantes eleitos aparece-nos não como um inteiro.
É isto, de facto, um problema?
Qualquer método enfrenta a necessidade de arredondamentos, incorporando a respectiva solução ou na própria técnica de cálculo (como o faz o Método de Hondt) ou acrescentando regras de «desempate» (como se faz, por exemplo, no desporto).
Uma regra muito simples para o Método Proporcional (aplicado às eleições ou a qualquer outro fim) é a aproximação ser sempre feita por defeito, sendo depois escolhidos os melhores «restos» para atribuir as unidades (neste caso deputados) que falta distribuir.
Utilizando esta regra ao Método Proporcional, o resultado dos três métodos aplicados às nossas últimas eleições legislativas seria então o seguinte:
É absolutamente
claro neste exemplo, que é real, a vantagem dos três partidas mais votados em
relação a todos os outros, incluindo aqueles que, não tendo deputados, não puderam
contribuir para aumentar a diversidade dos representados na Assembleia.
Um «democracia mais avançada» não depende especialmente da Matemática; depende
sobretudo da vontade de perceber a realidade e de não perdermos o sentido da
«exigência democrática».
A Matemática, no entanto, tem um importante papel na escolha dos sistemas
eleitorais, o de nos apresentar a demonstração (ou a refutação) das pequenas vantagens
que um método pode ter em relação a outros e da transformação dessas pequenas em
grandes vantagens quando se passa de um para vários círculos eleitorais.
Fontes: artigo de Silva (2024); sítio do Ministério da
Administração Interna (para os resultados das eleições legislativas)